*por Regina Facchini e Carolina B. C. Ferreira
Pioneira em tomar o campo sexológico norte-americano como objeto sociológico, Janice Irvine, professora no departamento de sociologia da Universidade de Massachusetts Amherst (EUA), publicou, na década de 1990, o livro Disorders Of Desire: Sexuality and Gender in Modern American Sexology pela Temple University Press.
Em 2005 o livro contou com uma reedição expandida pela mesma editora. A edição contemporânea conta com prefácio no qual a autora, além de situar o leitor no campo pesquisado e inserir conexões com elementos contemporâneos, também explica porque decidiu não revisar exaustivamente o material, justamente para ser visto como “produto de um momento histórico particular”. Outra novidade da reedição foi a inserção do texto Regulated Passions: the invention of inhibited sexual desire and sex addiction traduzido para o português na edição atual de Sexualidad, Salud e Sociedad – revista latinoamericana.
A tradução deste texto que trata da emergência das categorias de inibição do desejo sexual e da adicção sexual, na década de 1980 nos Estados Unidos, surge em um momento interessante, principalmente por conta dos diálogos que podem ser estabelecidos com o campo de pesquisas que articulam temáticas a respeito de formas contemporâneas de medicalização, sexualidade e gênero no Brasil (confira o Dossiê Medicalização, sexualidade e gênero: sujeitos e agenciamentos – número 14 -2013 da revista Sexualidad, Salud y Sociedad).
Na entrevista a seguir, Janice Irvine comenta seu livro e o insere no cenário contemporâneo de estudos sobre a sexualidade.
Seu texto “Paixões Reguladas: a invenção da inibição do desejo sexual e da adicção sexual”, que compõe a reedição de 2005 do livro Disorders Of Desire, está sendo publicado em português na revista Sexualidade, Saúde e Sociedade. Quase 23 anos depois da publicação deste seu trabalho, o que mudou e o que permaneceu em relação à ciência sexual, as políticas sexuais e a profissionalização no campo da sexologia?
Muitas coisas têm mudado enquanto outras permanecem as mesmas (embora nada seja realmente o mesmo). Por um lado, quando eu escrevi Disorders Of Desire, a sexologia era a única rubrica profissional para pesquisas e/ou para pesquisadores/as no campo da sexualidade. Por outro lado, em meados da década de 1990, as pesquisas sobre sexualidade dentro da academia e da medicina se expandiram. Subcampos dentro das ciências sociais e humanas – em particular a sociologia, a história, a literatura e os estudos culturais – criaram espaços acadêmicos críticos para a investigação nesta área.
Além disso, a interdisciplinaridade (e a sobreposição) de campos como os estudos sobre sexualidade, LGBT e queer fez com que germinasse uma produção sobre o tema intrinsicamente ligada com influências intelectuais do pós-estruturalismo e de teorias feministas, bem como bastante próximas do ativismo político no âmbito dos movimentos feministas, queer, trans e de enfrentamento da epidemia do HIV/Aids.
Os estudos contemporâneos sobre sexualidade diferem dos discursos biomédicos e essencializadores que integram as principais correntes da sexologia norte-americana. Isso porque tais estudos passaram a abordar o âmbito da sexualidade e dos gêneros como domínios sociais amplos, os quais envolvem variados campos de poder, diversos sistemas de conhecimento e conjuntos de discursividades institucionais, políticas e culturais.
O argumento construcionista afirma que a sexualidade é mais bem estudada e entendida como um domínio cujos significados mudam através das culturas e da história, ao invés de tomá-la como uma unidade biológico-universal, como tem sido postulada pela maioria dos sexólogos. A visão construcionista tem suscitado estudos ricos em uma variedade de níveis de análise: a nação, instituições sociais, culturas públicas e comunidades, corporalidades e muitos outros, explorando os cruzamentos e articulações entre sexualidade e gênero – incluindo uma crítica de suas manifestações antes mesmo da constituição do campo da sexologia – ponto que tem sido sempre central para estas investigações.
É fundamental para este eixo teórico crítico das ciências sociais e das humanidades localizar os estudos contemporâneos sobre sexualidade a partir de um mercado terapêutico informado por uma sexologia biomédica e comportamental. Pesquisadores críticos nos estudos sobre sexualidade não produzem livros de autoajuda, terapias ou produtos farmacêuticos para apoiar qualquer promessa de um “sexo melhor amanhã”. Com efeito, estes/as pesquisadores/as têm mais probabilidades de serem críticos/as com tais tecnologias. Sendo assim, não surpreendentemente, é improvável que tais pesquisas sejam financiadas pela fonte corporativa primária do sexo, a indústria farmacêutica. Os/as estudiosos/as contemporâneos nas ciências humanas e sociais trabalham sem a vantagem de um mercado terapêutico, mas sobre condições de vulnerabilidade referente ao estigma no local de trabalho.
Apesar da crescente aceitação dos estudos de sexualidade, o estigma e as controvérsias sobre o tema persistem. Isso foi verdade para os sexólogos e continua sendo para os pesquisadores contemporâneos deste campo, em todas as disciplinas. Recentemente, em uma pesquisa que realizei sobre sociólogos que atuam no campo da sexualidade nos Estados Unidos, muitos deles relataram a vulnerabilidade ao preconceito no local de trabalho, como resultado de suas investigações sobre sexualidade. Um artigo sobre esta questão sairá no próximo número de Sexualities, e contará com comentários de estudiosos da sexualidade no âmbito internacional, que irão discutir a situação em seus países.
No livro Disorders Of Desire a sra. mostra a heterogeneidade do campo da sexologia nos Estados Unidos, bem como os grupos e atores sociais que atuam sob alianças e disputas para produzir discursos legitimadores no campo de uma cientificidade sobre o sexo. Atualmente poderíamos pensar a indústria farmacêutica como um importante ator social neste campo? Como ela tem atuado? Quais são as implicações desta atuação?
Absolutamente, agora a indústria farmacêutica é um importante ator corporativo na área da sexualidade. Esta influência tem se intensificado desde a década de 1980, e tem tido várias consequências.
Por um lado, a indústria farmacêutica tem expandido a medicalização da sexualidade. O desenvolvimento das drogas para a disfunção erétil, a descoberta do “viagra feminino” e a sedução das pílulas para aumentar o desejo sexual reforçam o enquadramento essencialista da sexualidade, no qual os fatores biológicos são primários. A mídia popular tem ajudado a espalhar esta (falsa) promessa de pílulas e de outras panaceias biológicas para curar problemas sexuais e melhorar o comportamento sexual.
Eu acrescentaria que talvez a indústria farmacêutica tem sido a fonte financiadora mais importante dos sexólogos. Isto acontece em parte, por causa do estigma ligado à pesquisa sobre sexualidade, e a relutância de órgãos federais nos Estados Unidos – tais como a National Science Foundation e o National Institute of Health – em financiá-la.
A indústria farmacêutica também vê os sexólogos como aliados na promoção de seus comprimidos e cremes. Isto levou Leonore Tiefer, uma sexóloga crítica, a advertir sobre o perigo de a sexologia ser cooptada e tornar-se apenas "uma subsidiária da indústria farmacêutica".
Em última análise, a empresa farmacêutica continuará a promover uma visão da sexualidade como biológica, e não como social. Continuará a evitar qualquer análise política dos problemas sexuais, e ao invés disso, proporcionará ineficazes "curas" para as pessoas comprarem. Essa expansão da medicalização reforçará o estigma sexual e hierarquias sexuais, e ainda, mercantiliza a sexualidade enquanto regula as formas de self.
Disorders Of Desire nos mostra como a heterogeneidade do campo da sexologia nos Estados Unidos está relacionada a uma disputa política em torno de significados considerados cientificamente legítimos em relação às práticas sexuais, corpos, desejos e prazeres. Além disso, sua pesquisa mostra como os conceitos de grupos feministas e gays neste campo são frequentemente acusados de não científicos. Isso mudou atualmente? O que a sra. acha, por exemplo, da New ViewCampaign?
Eu amo a New ViewCampaign, que foi iniciada por Leonore Tiefer, que mencionei acima. Tiefer inspirou um movimento pequeno, mas poderoso que tem desafiado este papel asqueroso da crescente medicalização da sexualidade e do corpo das mulheres. Tal movimento tem sido bastante efetivo.
Minha preocupação é que eu não consigo pensar em outras organizações que também estão fazendo o mesmo. Tiefer é um tesouro nacional, mas me preocupo com a continuidade desta nova visão em longo prazo.
Como eu mencionei acima, as investigações no campo da sexualidade se expandiram. Há pesquisadores em sociologia e em outros campos disciplinares que têm investigado e escrito sobre estas questões. Minha esperança é que com a expansão de estudos críticos sobre este tema – de cunho político progressista – tais pesquisas passarão a ocupar um lugar importante na luta política e no desafio contra a medicalização e mercantilização da sexualidade.
*Regina Facchini é doutora em Ciências Sociais, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu e professora dos programas de pós-graduação em Ciências Sociais e em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
*Carolina Branco de Castro Ferreira é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)