O relatório “Situação da População Mundial 2007: desencadeando o potencial do crescimento urbano”, lançado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) no final de junho, adverte que, a partir de 2008, mais da metade dos atuais 6,6 bilhões de habitantes do planeta viverá em cidades. Até 2030, a população urbana aumentará para quase 5 bilhões, ou 60% do total. Embora o crescimento maior ocorra na África e na Ásia, diversos países da América Latina, justamente os mais pobres, também vão ter acréscimos importantes. Na discussão do processo de urbanização, o relatório trata da questão do direito à cidade e suas implicações para outros direitos.
Autor principal do relatório, o demógrafo George Martine ressalta a necessidade de uma melhoria na governança para fazer frente a esse crescimento massivo e inevitável. “Políticos e administradores frequentemente procuram impedir o crescimento urbano, inibindo a migração para as cidades ou deixando que elas se tornem inabitáveis – com a esperança de que isso vá desestimular o crescimento adicional. Na realidade, o principal fator que alimenta o aumento populacional nas cidades é o crescimento vegetativo”, aponta Martine. Nesse ponto, o relatório toca também na questão dos direitos na área de saúde reprodutiva e de eqüidade de gênero.
De origem canadense, George Martine é atualmente presidente da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP). Foi diretor da Equipe de Apoio Técnico do UNFPA para a América Latina e o Caribe, pesquisador sênior no Centro de População e Desenvolvimento da Universidade de Harvard, presidente da ONG Instituto Sociedade, População e Natureza e coordenador de projetos de assistência técnica das Nações Unidas ao governo brasileiro na área de desenvolvimento social. Nesta entrevista, o demógrafo fala da relação entre a urbanização e os direitos reprodutivos, explica que iniciativas relativas ao empoderamento das mulheres, à educação e à saúde poderiam ser incentivadas e afirma que, como pesquisador e cidadão, acha correta e coerente a postura do ministro da Saúde do Brasil, José Gomes Temporão, de defesa do direito ao planejamento familiar não coercitivo, de controle das doenças sexualmente transmissíveis e do tratamento do aborto como uma questão de saúde pública e não de polícia.
O que significa “o direito à cidade” e como está sendo usurpado?
O relatório privilegia o “direito à cidade” – conceito muito interessante desenvolvido por um Grupo Tarefa sobre as Metas do Milênio. As cidades oferecem, em princípio, melhores condições para resolver os problemas sociais e econômicos da população mais pobre. Mas, medidas de vários tipos – coercitivas, burocráticas, ou omissivas – impedem que os pobres desfrutem de tudo aquilo que a cidade tem a oferecer. A principal iniciativa dentro dessas medidas de exclusão é tentar impedir a migração. O relatório afirma que isto é uma medida ineficaz, contraproducente e contrária ao “direito à cidade.” O relatório procura incentivar mudanças de atitudes e políticas, de modo a aproveitar melhor as vantagens inerentes às cidades.
De que maneira o “direito à cidade” está ligado aos direitos reprodutivos?
Nos países marcados pelo crescimento urbano rápido e desordenado, é comum observar atitudes políticas que refletem um desconhecimento de aspectos demográficos e sociais básicos. Isto gera uma série de políticas inadequadas, inclusive a tentativa de evitar o crescimento da cidade via o controle da migração. Ora, na maioria dos países, o fator principal que gera o aumento acelerado da população urbana é, cada vez mais, o crescimento vegetativo. Portanto, mesmo que os controles migratórios funcionassem – e raramente funcionam por muito tempo – as cidades continuariam crescendo. Parte do crescimento vegetativo, especialmente nos países mais pobres, se deriva das dificuldades que a população encontra para exercer seus direitos básicos na área de saúde reprodutiva. Ou seja, muitas pessoas ainda não têm acesso a informações e serviços de qualidade que lhes permitiriam planejar suas famílias de acordo com suas preferências.
Quais são as medidas sugeridas no Relatório para reduzir a taxa de crescimento urbano? Como isto pode ser feito sem ferir os princípios relativos aos direitos sexuais e reprodutivos já conquistados (em Cairo e Pequim)?
É importante entender que a principal iniciativa que está sendo sugerida não é de reduzir taxas de crescimento urbano, e sim de tomar atitudes pró-ativas para conviver com o crescimento – o qual é mais ou menos inevitável. As vantagens de escala e proximidade, numa localidade urbana, deveriam permitir maior acesso a todos os serviços sociais. Entretanto, muitos dos índices de saúde e bem-estar nos bairros mais pobres são similares aos de áreas rurais pobres. Essa discrepância entre o potencial e a realidade das cidades mostra claramente um problema de governança. Caso o ritmo de crescimento urbano seja considerado um obstáculo real, o relatório sugere, seguindo o Programa de Ação do Cairo, que isto ressalta ainda mais o valor de avanços sociais, do empoderamento das mulheres e da melhoria dos serviços de saúde reprodutiva. O que o relatório sugere, portanto, é que cumprir com os direitos da pessoa — nas áreas de eqüidade social, de eqüidade de gênero e de saúde reprodutiva — é uma forma melhor de abordar a questão, do que tentar privar as pessoas do seu direito de ir e vir, ou do seu “direito à cidade”.
O relatório afirma que a urbanização por si só é um fator poderoso de redução da fecundidade. Por quê?
Historicamente, a urbanização oferece poucos incentivos para uma família numerosa. Ao contrário, as novas aspirações sociais e econômicas, conjugada às dificuldades práticas da vida urbana, terminam desestimulando a fecundidade elevada. Por isso, em qualquer parte do mundo, a fecundidade urbana tende a ser bastante mais baixa que a rural. No Brasil mesmo, parte importante da queda acelerada da fecundidade observada nas últimas décadas pode ser atribuída ao processo de rápida urbanização experimentado pelo país. Entretanto, a falta de apoio no exercício dos direitos reprodutivos da população fez com que essa rápida queda da fecundidade fosse realizada através de métodos “radicais” como o aborto em condições precárias e a esterilização. O custo real destas “soluções” para a saúde das mulheres brasileiras é incalculável.
Que tipos de iniciativas relativas ao empoderamento das mulheres, à educação —particularmente das mulheres e meninas — e à saúde, incluindo serviços de saúde reprodutiva e de planejamento familiar, poderiam ser incentivadas?
A urbanização abre muito mais oportunidades de participação social, econômica e política das mulheres. A convivência urbana inevitavelmente traz mais oportunidades de contato com uma maior diversidade de informações e relações sociais. O próprio fato de trabalhar fora de casa dá maior autonomia e mais poder de voz à mulher no âmbito familiar. Por outro lado, as mulheres são mais sujeitas a diversos tipos de violência na cidade. Também são fortemente concentradas em ocupações do setor informal, continuam ganhando menos do que os homens pelos mesmos trabalhos e continuam muitas vezes sem um poder político efetivo. Muitas vezes, elas não têm efetivamente acesso aos serviços de saúde, ou a serviços com qualidade, inclusive no terreno de saúde sexual e reprodutiva. As iniciativas preconizadas, portanto, são aquelas que continuam a ser patrocinadas pelos movimentos de mulheres e por outros movimentos sociais. O que se acrescenta no relatório é a insistência na melhoria da governança para cumprir com o potencial urbano.
O sr. acha que a política recentemente implementada no Brasil, pelo ministro da Saúde, José Gomes Temporão, ao lançar o Plano de Planejamento Familiar, pode ser um exemplo de melhoria (ou tentativa de melhoria) da “governança”?
O relatório evidentemente não trata das posturas políticas de governos ou autoridades específicas. Entretanto, a nível pessoal, como pesquisador e cidadão, acho as posturas do ministro Temporão corretas e coerentes com os princípios estabelecidos na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, do Cairo, em 1994, e na IV Conferência Internacional de Mulheres, de Beijing, em 1995. Estes princípios também já foram definidos na Constituição Brasileira e na Lei do Planejamento Familiar. Pelo que entendo, o ministro defende o direito ao planejamento familiar não coercitivo, como parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher e ao homem, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde. Isto exige, entre outras coisas, que pessoas de todas as camadas sociais, e não apenas aquelas de maiores recursos, tenham acesso às informações e aos meios necessários para formar livremente suas famílias. Defende também coisas que me parecem absolutamente essenciais numa sociedade eqüitativa, como o controle das doenças sexualmente transmissíveis e o tratamento do aborto como uma questão de saúde pública e não de polícia. Pessoalmente, considero que qualquer retrocesso nessas questões seria realmente lamentável.