O Supremo Tribunal Federal brasileiro tomou, na tarde da quinta-feira (12/4), uma decisão histórica: julgou procedente ação que pedia a descriminalização do aborto em casos de anencefalia (ausência de encéfalo e da caixa craniana no feto, condição incompatível com a vida extra-uterina). O julgamento teve 8 votos a favor e 2 contra, entre os 11 ministros que compõem a Suprema Corte (um dos ministros se declarou impedido de participar da votação). A garantia deste direito às mulheres é um marco para o Brasil, cujas discussões e medidas em favor dos direitos reprodutivos das mulheres estão sob constante ataque de setores religiosos ultraconservadores. Atualmente, os permissivos legais do aborto no país se restringem aos casos de risco de morte à mulher ou gestação resultante de estupro.
O ministro-relator da ação, Marco Aurélio Mello, já tinha emitido liminar a favor da autorização em 2004, durante o primeiro julgamento da ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 54) proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS). Naquela ocasião, no entanto, apesar do voto a favor do ministro-relator, a ação foi cassada alguns meses depois pelo plenário. O recuo manteve a necessidade das mulheres, mesmo com o diagnóstico de anencefalia, recorrerem à Justiça para obter a autorização de interromper a gestação.
Os dias que antecederam a votação no tribunal foram de intensa mobilização de setores religiosos. Manifestações foram organizadas em diferentes partes do país. Em Brasília, grupos contrários ao aborto se manifestaram no entorno do prédio do STF. Parte do movimento religioso contrário ao aborto acusou o ministro-relator de crime de responsabilidade por julgar que ele antecipara o voto à imprensa.
Em sua exposição, o ministro Marco Aurélio Mello destacou a importância do princípio da laicidade para as decisões do Estado. “A garantia do Estado laico obsta que dogmas de fé determinem o conteúdo de atos estatais. Concepções morais religiosas, quer unânimes, quer majoritárias, quer minoritárias, não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada. A questão dos anencéfalos não pode ser examinada sob os influxos de orientações morais e religiosas. A laicidade impede que o estado adote idéias religiosas, as religiões não guiarão os direitos fundamentais, inclusive no que diz respeito à liberdade de orientação sexual e de decisão reprodutiva (…) Deuses e Césares têm espaços apartados. O Estado não é religioso, tampouco é ateu. O Estado é neutro”, argumentou.
Marco Aurélio Mello lamentou a demora de anos para concluir a análise da ação, afirmando que é uma página triste na história do STF, na medida em que obrigou muitas mulheres a sofrer na espera por uma decisão da Justiça. “O ato de obrigar a mulher a continuar a gestação é mantê-la em cárcere privado em seu próprio corpo. Assemelha-se à tortura, que não pode ser pedida a qualquer pessoa ou ser dela exigida”, afirmou o ministro-relator.
A ministra Carmem Lucia argumentou que anencefalia e vida não são compatíveis. “Numa democracia, a vida impõe respeito. E este feto não tem vida, mas a mãe e o pai desta criança têm e sofrem com esta gravidez. Eu fundamentei meu voto a partir do princípio da dignidade da vida. Por isso, voto a favor da descriminalização do aborto de anencéfalos”, justificou Carmem Lucia. “O luto que a mulher passa ao optar pela interrupção da gravidez de anencéfalo é o luto de libertação”, completou a ministra.
O voto da ministra Rosa Weber foi permeado pela lógica da liberdade da mulher. “A proibição da antecipação do parto fere a liberdade de escolha da gestante, que se encontra na situação de carregar feto anencéfalo no seu ventre. O crime de aborto diz respeito à interrupção de uma vida em desenvolvimento, e a anencefalia não é compatível com as características que substanciam o conceito de vida para o Direito”, defendeu a ministra.
O ministro Luiz Fux argumentou a favor questionando se é justo criminalizar uma mulher que gesta um bebê anencéfalo. “O STF evidentemente respeita as mulheres que desejarem realizar o parto mesmo que anencéfalo. Temos que avaliar se é justo, sob o âmbito criminal, colocar essa mulher no banco do júri por conta de um aborto. É lamentável que a mulher a padecer dessa tragédia [carregar o feto anencéfalo] durante nove meses seja criminalizada, e jogada no banco do Tribunal do Júri”, justificou.
Contrário à ação, o ministro Ricardo Lewandowski argumentou que a decisão para o assunto cabe ao Poder Legislativo. De acordo com o ministro, a permissão para este tipo de aborto abriria um precedente perigoso. “Além de discutível do ponto de vista ético e jurídico, [a medida] abriria as portas para a interrupção de inúmeros embriões que sofrem ou venham a sofrer de problemas genéticos que levem ao encurtamento de suas vidas intra ou extrauterinas”, justificou Lewandowski, aludindo a uma volta ao tempo dos antigos romanos.
O advogado da CNTS Luís Roberto Barroso sustentou que o Estado não tem direito de fazer a escolha de abortar ou não um feto anencéfalo em nome da mulher. “Trata-se de uma tortura psicológica a que se submete essa mulher grávida de um feto anencefálico, que não sairá da maternidade com um berço, mas com um pequeno caixão e terá que tomar remédios para secar o leite que produziu. O diagnóstico da anencefalia é feito em torno do terceiro mês de gravidez. Nesse contexto, obrigar a mulher a levar a gestação a termo significa impor a ela, por seis meses, um sofrimento imenso e inútil. Ela passará por todas as transformações físicas e psicológicas da gravidez, só que, no seu caso, preparando-se para o filho que não chegará”, argumentou.
Na retomada do julgamento, que havia sido suspenso na noite anterior, coube ao ministro Ayres Britto dar o voto que garante às mulheres o direito de interromper a gravidez quando o problema é diagnosticado. A exemplo dos diversos votos do primeiro dia de julgamento do mérito da ADPF 54, o ministro também ressaltou os direitos da mulher, ao dizer que «o grau de civilidade de uma sociedade se mede pela liberdade da mulher”. Ayres Britto apontou ainda contradições na Constituição por considerar o aborto como crime sem contextualizar claramente o conceito de vida. “É estranho criminalizar a interrupção voluntária do parto se não há definição do que é a vida humana. Sobre o início da vida, a Constituição é de um silêncio de morte”, declarou. E observou ainda que “se os homens engravidassem, a interrupção da gravidez de anencéfalo estaria autorizada desde sempre”.
Em seu pronunciamento, o ministro Gilmar Mendes também votou a favor, ressaltando haver dissenso nas audiências públicas sobre o conceito de morte cerebral. O ministro defendeu a criação de um protocolo de atendimento para o aborto de anencéfalos pelo Ministério da Saúde, para garantir a segurança da mulher. Gilmar Mendes falou ainda das leis do aborto em diversos pontos do mundo, como a lei americana com o debate Roe X Wade, em 1973, que despenalizou o aborto. Segundo ele, proteção ao feto não precisaria ser feita por medidas repressivas penais.
O voto de Celso de Mello, a exemplo de outros votos proferidos pela Corte, como o do relator Marco Aurélio, ressaltou o princípio da laicidade do Estado e discorreu sobre a separação entre a Igreja e o Estado. Celso de Mello reiterou que com a decisão da ADPF 54 não se está legitimando o aborto, mas apenas a interrupção da gravidez em caso de anencefalia. Segundo ele, a discussão do aborto poderá ser analisada pelo STF em outro momento, mas não é o que se discute agora. “O crime de aborto pressupõe gravidez em curso e que o feto esteja vivo. E mais, a morte do feto vivo tem que ser resultado direto e imediato das manobras abortivas. A interrupção da gravidez em decorrência da anencefalia não satisfaz esses elementos”, argumentou Celso de Mello.
O presidente do STF, Cezar Peluso, foi o último a expor seus argumentos. Manifestando-se contra a autorização proposta pela ADPF 54, o ministro afirmou que há vida em fetos nestas condições e que interromper a gestação equivale à eutanásia e à eugenia. “O feto anencéfalo tem vida, ainda que breve, e que deve ser juridicamente protegida”, observou, questionando o argumento de sofrimento da mulher. “O sofrimento em si não é uma coisa que degrade a vida humana, ele é inerente à vida. A questão é saber se do ponto de vista jurídico e constitucional, excluindo outras concepções, essa carga de sofrimento e dor, associada à liberdade de escolha, deve permitir a eufemisticamente chamada interrupção terapêutica da gravidez. Voto que não.»”, justificou.
O ministro José Antônio Dias Toffoli se declarou impedido de participar do julgamento da ADPF, pois, em 2009, quando era advogado-geral da União, emitiu parecer favorável à legalidade interrupção da gestação nos casos de anencefalia.
Marco histórico
Defensores dos direitos reprodutivos das mulheres comemoram a decisão. De acordo com a presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB-RJ, Maíra Fernandes, que acompanhou a votação em Brasília, a iniciativa do Supremo Tribunal Federal é um marco histórico para o Brasil. “A mulher será poupada de um sofrimento torturante. O STF presta um grande serviço à sociedade brasileira, pois reconhece os direitos da mulher no tocante a sua saúde, a sua autonomia reprodutiva, a sua dignidade e privacidade. É um grande passo para o fortalecimento dos direitos reprodutivos das mulheres brasileiras”, observa Maíra Fernandes.
A advogada Beatriz Galli, integrante das comissões de Bioética e Biodireito da OAB-RJ e assessora de políticas para a América Latina do Ipas, concorda. “Vitória para a cidadania e os direitos reprodutivos das mulheres brasileiras. Finalmente, o Supremo coloca um fim à insegurança jurídica que abrange o tema até hoje no Brasil, declarando o direito constitucional das mulheres de optar por continuar ou interromper a gravidez nestas condições, com base na sua autonomia, dignidade, liberdade, saúde física e mental. O Brasil, assim, honrará compromissos e obrigações internacionais decorrentes da ratificação dos principais tratados internacionais de direitos humanos”.
Nas palavras de Sonia Corrêa, pesquisadora associada da Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids) e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW), “num mundo em que o poder e influência do dogmatismo religioso se espraiam e penetram, incessantemente, nas instituições públicas – foi um momento de re-fundação dos princípios da laicidade, movimento necessário nas condições contemporâneas”, avalia.
Para o médico ginecologista e obstetra Aníbal Faúndes, professor titular da Unicamp, as justificativas apresentadas não mudam o conceito legal atual. Segundo ele, um resultado diferente teria sido absurdo, mas o fato de a Suprema Corte discutir se uma mulher pode ou não interromper a gravidez de um anencéfalo mostra que o país ainda está em um patamar muito atrasado em relação à questão do aborto no contexto global.
“A decisão vai ajudar na liberação do aborto relacionado a outras circunstâncias – às vezes até muito piores que a anencefalia, porém menos conhecidas –, mas a aprovação deste requerimento não parece ser um grande avanço, uma vez que nada agrega à discussão do aborto, debate incipiente no país e que ainda se resume a se a pessoa é contra ou a favor da prática. Ninguém é a favor do aborto. Ainda não se leva em conta o conceito de saúde, que é a situação de perfeito bem-estar físico, mental e social da pessoa. Nesta perspectiva, a mulher deveria decidir que não é bom para ela continuar com uma gravidez”, afirma, lembrando que todas as vezes que esteve à frente de uma investigação do Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp), entre 70% e 90% das pessoas entrevistadas estavam de acordo que a mulher que gesta um feto inviável teria direito de interromper aquela gravidez.