Operações de combate à prostituição, deflagradas em todo o Brasil, têm colocado em debate questões importantes relativas aos direitos individuais: cabe ao Estado legislar e gerir sobre corpos e prazeres entre pessoas adultas, livres e autônomas? Deve o Estado reprimir o «sexo comercial»?
As ações, que têm sido realizadas em diferentes partes do país com apoio dos governos locais e federal, nasceram, segundo os órgãos responsáveis, para combater a exploração sexual de crianças e adolescentes. “O problema é que essas operações, que seriam inicialmente de proteção a crianças e adolescentes, rapidamente se transformaram em uma cruzada moralista e repressora contra a prostituição adulta”, afirma o psicólogo Roberto Pereira, coordenador do Centro de Educação Sexual (CEDUS), na cidade do Rio de Janeiro.
Autora da tese de doutorado em sociologia pela Universidade de Brasília (UNB), Polícia e Prostituição Feminina em Brasília – um estudo de caso, a professora Marlene Teixeira avaliou, ao longo de cinco anos, como se dá a atuação da polícia do Distrito Federal contra a prostituição feminina. “É fundamental distinguir quando o que se reprime é a prostituição e quando o foco é a exploração sexual. Porque, no dia a dia, a ação policial nessa esfera, embora se ancore no discurso de combate à exploração sexual, resulta em prejuízos fundamentalmente para as mulheres e homens que exercem a prostituição – independente de se configurar a existência ou não do crime”, diz ela. “Essa situação nega o reconhecimento das prostitutas como cidadãs de direitos”.
Em relação ao papel do Estado nessa discussão, ambos acreditam que não cabe ao poder público reprimir ou regular o sexo comercial. “Ao Estado cabe prover políticas sociais que garantam às mulheres condições para se constituírem autonomamente. No caso daquelas que exercem a prostituição, o direito a um tratamento digno e à segurança”, observa Marlene.
Prostituição e Lei Quando o assunto é prostituição, a legislação brasileira é dúbia: de um lado não criminaliza o ato da prostituição em si, mas por outro lado criminaliza quem favorece a sua prática. Pelo Código Penal (capítulo 5, artigos 227 a 231), a prostituição não é considerada crime, somente sua exploração ou lenocínio. “Mas quem acaba sendo penalizado são sempre os(as) profissionais do sexo que são na maioria das vezes ‘detidos(as) para averiguação’ e impedidos de exercer sua atividade laborativa”, explica Roberto Pereira.
Segundo ele, ações desse tipo acabam intimidando também quem procura os serviços de profissionais do sexo. Recentemente, a Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro desencadeou uma operação que visava multar os carros que paravam ao longo da orla de Copacabana para abordar mulheres e travestis. Além disso, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro analisa a possibilidade de propor uma ação civil pública pedindo o fechamento de todos os estabelecimentos da Vila Mimosa, tradicional reduto da prostituição carioca. Pensa-se ainda em outra iniciativa que inclui a instalação de câmeras para flagrar possíveis clientes em outro reduto de prostituição na cidade – desta vez de travestis.
“Considerando que estamos falando de pessoas adultas exercendo por vontade própria uma atividade que de forma alguma fere a Lei ou qualquer outra disposição legal, qualquer atividade coercitiva por parte do Estado se configura como uma violação dos seus direitos básicos de cidadania. Impedir ou dificultar o livre exercício dessa atividade baseado unicamente em fundamentações moralistas, é uma afronta”, afirma Pereira.
A repressão, segundo os estudiosos, é determinada por vários motivos. Para Marlene Teixeira, essa tendência associa-se em grande medida à prevalência da percepção da prostituição enquanto um “mal”, que deve ser mantido sob estreita vigilância e controle para não colocar em perigo a sociedade. “Embora a prostituição não seja considerada crime em nosso Código Penal, seu exercício produz ‘incômodos’ muitas vezes considerados e enquadrados como atentatórios contra a ordem pública”, observa ela.
Segundo Roberto Pereira, as ações têm também outras motivações. “As igrejas e os parlamentares a elas ligados têm defendido com muita ênfase ações na contramão dos direitos básicos de cidadania dos segmentos costumeiramente excluídos, ou invisíveis da população, tais como prostitutas, travestis, homossexuais e usuários de drogas, entre outros”, diz.
Ambos acreditam que as ações são orientadas fundamentalmente pela abordagem moralista da prostituição, e não pela definição legal dos delitos relacionados à prostituição, ou seja, ao lenocínio ou exploração sexual.
Bush entre nós? Alguns vêem essas ações como influência da política ultra-conservadora do governo de George W. Bush no Brasil, através dos programas de combate ao tráfico de pessoas financiados pela USAID, a Agência Americana para Desenvolvimento Internacional. “Elas têm paralelo com fatos que estão acontecendo em outros países, como é caso da Índia, onde ONGs americanas andam resgatando crianças em bordéis e pelo menos um financiamento da USAID foi suspenso”, ressalta a pesquisadora Sonia Correa, coordenadora para saúde e direitos sexuais e reprodutivos da Rede DAWN. “É fundamental denunciar esta tendência e buscar identificar suas motivações macropolíticas”.
O coordenador do CEDUS também identifica tais motivações por trás das operações. “Um claro exemplo disso foi a pressão exercida recentemente pela USAID, através de sua representante – PACT Brasil – que, de forma unilateral, desrespeitando abertamente um acordo de cooperação bilateral entre Estados Unidos e Brasil, intimou ONGs brasileiras conveniadas a terem que assinar um documento onde qualquer forma de prostituição fosse sumariamente condenada e que essas instituições se comprometessem a não atuar em defesa do seu reconhecimento enquanto profissão”, lembra Roberto Pereira. “A USAID não se intimidou em anunciar que quem não assinasse tal documento teria seus convênios sumariamente suspensos”.
Já Marlene Teixeira descarta a teoria de influências externas. “Não acredito em análises desse tipo. O cenário que determina a inserção social estigmatizada das prostitutas se caracteriza pela continuidade de práticas e relações sexuais e sociais desiguais e opressivas e inclui ainda a pauperização crescente das mulheres, as desigualdades nas relações de gênero, a violência masculina, e o acesso diferenciado de homens e mulheres à educação, saúde, emprego, renda, e oportunidades de qualificação profissional”.
A idéia de que as operações tenham alguma inspiração ou apoio externo pode não ser consenso entre pesquisadores, mas o que todos concordam é que elas encontram um terreno muito fértil em determinados setores reconhecidamente reacionários e elitistas da sociedade brasileira.
A política do governo George W. Bush apóia-se na visão conservadora de que toda prostituição deve ser erradicada porque ofende a dignidade das mulheres. Lançado em 2004, o documento O Kamasutra de Bush – muitas posições sobre sexo: implicações globais das políticas nacionais e internacionais sobre sexualidade implementadas pelo Governo dos Estados Unidos, da advogada canadense Françoise Girard, dedica um capítulo ao trabalho sexual e mostra como o governo americano enxerga a questão.
“Os(as) trabalhadores(as) do sexo são apresentados(as) como vítimas que devem sempre ser resgatadas dessa forma de violência sexual. A autonomia e o livre arbítrio das mulheres são considerados como sendo inexistentes. A indústria sexual, o tráfico de pessoas para essa indústria e a violência sexual são causas adicionais e um fator na propagação da epidemia de HIV/AIDS”, relata Françoise no livro.
Todas essas ações acontecem no Brasil ao mesmo tempo em que tramita no Congresso Nacional um Projeto de Lei do Deputado Fernando Gabeira (Partido Verde) que propõe a legalização da atividade de «Profissional do Sexo”. A Classificação Brasileira de Ocupações de 2002, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), reconhece a existência das profissionais do sexo ( a atividade está catalogada), mas o exercício desse trabalho ainda não foi regulamentado por lei.