Grande responsável pela patologização da homossexualidade no passado, o campo psi – formado pela Psicanálise, Psiquiatria e Psicologia – parece estar se retratando, em compasso com os 40 anos da rebelião de Stonewall. Por ocasião do último 28 de junho, aniversário de quatro décadas do episódio no bar novaiorquino, dois eventos foram realizados por profissionais do campo: o Colóquio “As homossexualidades na Psicanálise”, organizado pelo Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, e o seminário Psicologia e Diversidade Sexual, organizado pelo Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro.
Embora na psicanálise ainda não haja consenso em relação à homossexualidade, a realização do Colóquio “As homossexualidades na Psicanálise” é sinal de avanço. Pelo menos no Brasil, o colóquio foi pioneiro em debater diretamente o tema das homossexualidades na psicanálise. “Mostramos que não existe a homossexualidade como categoria nem clínica nem teórica. Existem homossexualidades: manifesta, latente ou sublimada. Essa retomada é efetivamente necessária, pois determinadas leituras parciais da obra de Freud podem levar à estigmatizar a homossexualidade”, avalia o psicanalista Antonio Quinet, professor do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da UVA e um dos organizadores do evento.
O Colóquio trouxe à luz algumas dessas leituras, presentes em determinadas obras dos franceses Melman e Valas, e do brasileiro Zuzsman, em que colocam a homossexualidade como perversão. “Eles fazem uma leitura apressada da questão e não levam em conta a teoria da pulsão, a bissexualidade estruturada pelo Complexo de Édipo completo, e a sexualidade como em si mesma perversa. Perversão como estrutura clínica , no entanto, para a psicanálise, não é doença, é uma modalidade sexual. Por outro lado, Jacques-Alain Miller faz uma leitura deturpada da obra de Lacan e reduz a diferença de posição sexual e modalidades de gozo à diferença anatômica dos sexos, psicologizando os gêneros e estabelecendo padrões prévios de comportamento para os homens e as mulheres e hetero e homossexuais”, afirma Quinet.
No entanto, segundo ele, não se pode atribuir à psicanálise a origem de toda a atual homofobia, termo criado em 1972 pelo psicólogo norte-americano George Weinberg.e hoje usado por ativistas para descrever atitudes violentas e preconceituosas contra pessoas LGBT. “O preconceito em relação à homossexualidade é anterior à psicanálise. A homossexualidade já foi considerada pecado, crime e depois doença. Mas em muitos lugares as três concepções coexistem. Não me parece culpa da psicanálise. É verdade, porém, que ela pode ter sido utilizada de forma deturpada, paradoxalmente e contra tudo o que ela possibilita como (não)recalcamento do sexo, para acentuar a homofobia”.
Quinet lembra que não à toa o evento foi pensado nos 40 anos de Stonewall, sem dúvida um marco no redirecionamento e no fortalecimento das manifestações pró-liberação dos homossexuais e luta contra a homofobia. Além de ser o evento fundador do movimento homossexual e inspirador das Paradas do Orgulho Gay – a primeira delas foi realizada exatamente no primeiro aniversário da rebelião (1970) e se espalhou para o mundo todo – Stonewall deixou um legado que vai além. “Principalmente se pensarmos que a retirada da homossexualidade como doença do DSM, em 1973, já é uma conseqüência da reconsideração da American Psyquiatry Associtaion (APA) no início dos anos setenta, quando ativistas do movimento gay invadiram, por duas vezes, sua reunião anual protestando contra a idéia da homossexualidade como doença”, observa Quinet.
Depois que a APA retirou a homossexualidade da lista de doenças psiquiátricas – após ativistas gays, por duas vezes (1970 e 1971), invadirem o seu encontro anual, fortalecidos e motivados por Stonewall – a Organização Mundial de Saúde (OMS) fez o mesmo em 1993. Porém, mesmo depois da retirada da homossexualidade do DSM e do rol de doenças da OMS, a idéia de que homossexualidade seja doença ainda persiste. A transexualidade, por exemplo, ainda se encontra nessa categoria no DSM. No Brasil, apesar de a cirurgia de mudança de sexo poder ser realizada gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), para uma pessoa se submeter a ela é necessário que esta apresente o diagnóstico de transexualidade, isto é, a.cirurgia ainda está condicionada a uma doença do sujeito, que, estando doente, precisaria de uma cirurgia reparadora.
“É lamentável que essa idéia da homossexualidade como doença persista ainda hoje. No entanto, há discussões na equipe que elabora o novo DSM para retirar todas as formas de sexualidade e identidades sexuais das listas de doença. Espero que cheguem a isso”, afirma Quinet.
A cura da homossexualidade
Quatro décadas depois de Stonewall, ainda se propõem tratamentos de cura da homossexualidade, a exemplo do que faz a psicóloga evangélica Rozângela Justino, que no momento aguarda julgamento pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) por tais práticas. Justino é acusada de violar a Resolução 001/99, que versa sobre as diretrizes éticas sobre a atuação dos psicólogos em relação à diversidade sexual, proibindo toda forma de tratamento clínico à homossexualidade por parte de seus profissionais. Para marcar os dez anos da Resolução, o Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro organizou o seminário “Psicologia e Diversidade Sexual: assim se passaram dez anos”, também acontecido às vésperas do 28 de junho. Segundo o psicólogo Igor Torres, membro do GT Diversidade Sexual do CRP-RJ, o Conselho Federal de Psicologia já vem se retratando frente à homossexualidade há dez anos, quando surgiu a resolução depois que uma clínica no estado do Espírito Santo, que propunha fazer a cura de homossexuais, foi denunciada.
No entanto, o psicólogo admite que a homofobia está presente nas práticas de muitos profissionais da Psicologia, “como aquele que trabalha, por exemplo, no setor de recursos humanos de uma empresa e não seleciona uma travesti para um cargo por conta da sua identidade de gênero”, diz.
Segundo ele, outro problema é a forte associação do campo com a religião. “Psicologia e Religião têm uma proximidade desde o início. Hoje continuamos vendo essa proximidade tanto em psicólogos como a Rozângela Justino como também por ser este um curso procurado por religiosos. Uma intersecção entre as duas áreas se explica porque ambas atuam no campo do cuidado. Na atuação, essas pessoas acabam por inserir suas crenças religiosas no desenvolvimento da prática profissional. Porém, por mais próximos que estes campos possam parecer, são domínios distintos. A prática da psicologia tem que ser regida pelo código de ética”, analisa Igor.
Mas como pensar situações e demandas se, ainda hoje, apesar da resolução, de Stonewall e de toda a visibilidade que a homossexualidade alcançou, uma mãe ainda leva o filho homossexual a uma clinica para “se tratar” e a direção de uma escola ainda encaminha uma criança ao psicólogo do colégio por esta apresentar uma perfomance de gênero destoante das demais?
“Uma coisa é aceitar essa demanda, outra é colocar em análise esse sofrimento. As demandas da homossexualidade nas escolas se devem ao fato de a homossexualidade ser presumida a partir de uma performance de gênero. O ‘problema’ é entregue ao psicólogo da escola, para que um menino deixe de brincar com meninas, por exemplo”, analisa o psicólogo.
A proposta do evento do CRP era analisar, dez anos depois da resolução, que desafios a temática da diversidade sexual ainda oferece à psicologia. A patologização da transexualidade pode ser vista como um desses desafios. “O processo transexualizador está sendo implantado no SUS, mas não há uma normatização feita pelo Conselho Federal de Psicologia. As normas existentes são do Conselho de Medicina, embora o processo envolva psicólogos”, questiona Igor.
Profissionais de áreas afins, mas que seguem métodos distintos na compreensão da psique humana, Quinet e Torres concordam que o caminho ainda é longo até que mais debates sobre o tema tenham espaço entre os profissionais do campo psi. Para o primeiro, a discussão deve sair das Escolas e Sociedades de psicanálise para chegarem à sociedade. “Mas o primeiro passo é que a própria homofobia seja superada e abolida nas instituições psicanalíticas assim como na clínica e na teoria”, diz Quinet.
Na análise do psicólogo Igor Torres, “é preciso, antes de tudo, que outras sexualidades – que não a hetero – sejam consideradas legítimas, para que não sejam mais necessárias outras resoluções”, finaliza.