Anna Paula Uziel*
Artigo originalmente publicado no jornal O Globo (30/10/2013)
Uma Comissão do Senado aprovou na quarta-feira (16/10) uma alteração na Lei de Registros Públicos, igualando o direito de pais e mães no registro dos filhos. A mudança na lei é necessária, apesar de tardia e extemporânea, sobretudo porque a Constituição Federal, 25 anos atrás, em seu Art. 5º, sobre igualdade já garantiu que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
Até que a presidente Dilma Rousseff sancione as modificações, a presunção da paternidade se mantém viva: a prerrogativa do registro é do pai, e a mãe só pode registrar a criança em seu nome e do pai se comprovar casamento com ele. Ao exigir o casamento, a atual legislação – vigente desde a década de 1970 – insiste em atrelar a parentalidade à conjugalidade, esferas que o movimento feminista levou décadas para ajudar a separar. E não considera a possibilidade de geração de bebês sem que se conheça a identidade do doador de gametas, o que pode gerar filhos sem pai ou sem mãe, reconhecidos legalmente em nosso país, com os mesmos direitos de todos os outros. No registro feito pela mãe, sem um documento legal que comprovasse sua união, só constaria o nome dela. Além disso, a legislação atual também corrobora a ideia do homem como chefe da família, o que a Constituição há muito extinguiu e a prática desconstruiu: de acordo com os dados do último Censo do IBGE (2010), mulheres já são chefes de família em 37% dos lares brasileiros. Nesses domicílios, a maioria vive sozinha com filhos, e só 46,4% são casadas.
Enfrentando o desafio de compreender por que a lei foi feita assim e se sustenta até hoje, duas suposições: primeiro, a desconfiança na mulher, que poderia atribuir a qualquer homem, por motivos variados, a paternidade de seu filho; e uma forma de equiparar o homem ao poder que tem a mulher sobre a enunciação de quem é o pai da criança. Se só a mulher sabe quem é o pai – tudo isso muito antes do exame de DNA –, só o homem tem o direito ao registro, uma espécie de compensação. A palavra do homem é suficiente para concessão da paternidade, a da mulher, não. Cabe a ela provar, e a ele, assumir. Com a nova proposta, isso desaparece.
A mudança na lei vem adequá-la à posição que o Brasil tomou, 25 anos atrás, e que ainda precisa ser ratificada em muitas esferas. A desigualdade de gênero é capilar. Desconstruí-la continua sendo uma batalha diária.
*Anna Paula Uziel é professora do Instituto de Psicologia da UERJ