CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

A encruzilhada dos direitos sexuais

Por Fábio Grotz

Em matéria de direitos sexuais e cidadania LGBT, o Brasil tem testemunhado um processo político tenso e muitas vezes ambíguo. De um lado, o poder público, em suas distintas instâncias, oscila entre medidas de avanço e recuos conservadores. Do outro lado, movimentos sociais, pesquisadores e órgãos internacionais intensificam a mobilização em prol da garantia e do aumento dos direitos a esta população.

O quadro atual tem sido conflituoso. Em audiência pública da Câmara dos Deputados, no final de junho, esteve em pauta o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 234/2011, do deputado João Campos (PSDB-GO), que busca sustar a resolução 1/1999  do Conselho Federal de Psicologia (CFP) brasileiro. A resolução considera que a homossexualidade não constitui doença, desvio ou perversão, e proíbe os psicólogos de proporem qualquer tratamento ou ação a favor de uma ‘cura’, ou seja, práticas de patologização da homossexualidade. Assim, ela normatiza a atuação dos profissionais do campo, impedindo que comportamentos e práticas homoafetivas sejam tratados por eles como patologias. Caso aprovado, o projeto abrirá as portas para que “tratamentos de cura gay” sejam estipulados. O evento, ligado à bancada religiosa do Congresso, é mais um sinal das pressões direcionadas contra os direitos sexuais no bojo de um processo de atropelamento da laicidade do Estado.

No final do ano passado, o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro já tinha entrado com uma ação civil pública alegando ilegalidade na resolução do CFP. O argumento do MP é que a resolução exacerba a competência do Conselho, pois a lei (nº 4119/62) já regulamenta a profissão de psicólogo no país. Além disso, a proibição de psicólogos manifestarem teses que associem homossexualidade à doença, fora dos meios acadêmicos, seria uma forma de cercear a liberdade de expressão. “Ambas as ações estão fora dos marcos dos direitos humanos. O Conselho Federal tem autonomia para definir regras sobre a profissão e atuação dos psicólogos. Quem exacerba suas funções são os deputados que sustentam o PDL, pois o que eles propõem é uma forma de aviltar a sociedade, na direção contrária da promoção e garantia de direitos das pessoas homossexuais proposta pela resolução”, critica Clara Goldman, vice-presidente do Conselho Federal de Psicologia.

A definição da homossexualidade como doença é um aspecto já ultrapassado no pensamento científico. Na segunda metade do século passado, uma série de organizações e entidades reconheceram a orientação sexual como uma expressão humana legítima e não como enfermidade. Em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria excluiu a homossexualidade do rol dos distúrbios mentais. Dois anos depois, a mesma atitude foi tomada pela Associação Americana de Psicologia. Em 1985, o Conselho Federal de Medicina do Brasil deixou de considerar o homossexual como um doente. Em 1990, por sua vez, a Organização Mundial da Saúde retirou a homossexualidade da lista de Classificação Internacional de Doenças (CID). No primeiro semestre deste ano, outro momento marcante: o psiquiatra norte-americano Robert Spitzer, referência mundial na Psiquiatria, veio a público pedir desculpas à comunidade gay por ter proposto a chamada terapia de reparação para “curar” a homossexualidade.

“A proposta de lei não tem sustentabilidade científica. O diagnóstico de transtorno, assim como a execução de terapias de cura não são mais reconhecidos pela comunidade científica internacional. Não dialogam com a evolução da ciência, com o movimento dos direitos humanos. Estão na contramão da história. O projeto, da forma como está, fomenta a homofobia. É uma expressão da violência preconceituosa e desvirtua o papel do psicólogo, que deve trabalhar nos marcos dos direitos humanos, reconhecendo a autonomia das pessoas. A resolução 01/1999 é uma referência internacional e deve prevalecer”, observa Clara Goldman.

“Tratar terapeuticamente o homossexual não é uma alternativa. O correto e justo é que a orientação sexual e a identidade de gênero sejam vistas de forma ética, sob a perspectiva da autonomia e da liberdade dos indivíduos. Jamais como uma doença”, completa a vice-presidente do CFP, que enfatiza o apoio e a necessidade da sociedade civil de enfrentar este tipo de medida. O próprio CFP emitiu nota de repúdio à iniciativa.

As duas ações compõem um cenário contraditório, que se desenha há alguns anos. Em maio, durante a Revisão Periódica Universal (RPU), procedimento da Organização das Nações Unidas (ONU) que avalia a situação dos direitos humanos nos países-membros, o Brasil foi recomendado, pela Finlândia, a aprovar legislação que garanta direitos para casais do mesmo sexo e a adotar medidas contra crimes de homofobia e transfobia. O processo da RPU foi marcado pela atuação da sociedade civil, que sinalizou a precariedade dos direitos humanos no Brasil, especialmente em termos de direitos sexuais e reprodutivos. No final do ano passado, o país já tinha sido cobrado pelo Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos a investigar crimes motivados por orientação sexual e identidade de gênero e a promulgar leis antidiscriminatórias contra tais crimes. Também na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA), o país foi interpelado, no início deste mês, a apurar o assassinato de duas travestis, em São Paulo e no Paraná, no final de junho.

De um lado, o país vem sendo periodicamente cobrado e instado a arrostar o quadro de homofobia evidenciado com frequência na mídia. Do outro, sucessivas medidas institucionais parecem levar o país – ator importante nos anos 1990 nas deliberações internacionais sobre direitos sexuais (Conferência do Cairo, 1994) – na contramão das demandas de promoção e defesa dos direitos da população LGBT. Ainda que o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha reconhecido, no ano passado, a união civil entre pessoas do mesmo sexo – um marco nos avanços da população LGBT brasileira -, outras instâncias do poder público têm adotado posturas regressivas.

Para o sociólogo e coordenador do Ser-Tão (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade/Univerisidade Federal de Goiás), Luiz Mello, vivemos um quadro contraditório. “O cenário atual é complexo. A situação do Brasil, comparada a outros países do mundo, não é tão desesperadora. Ainda há Estados que criminalizam e punem com morte as relações entre pessoas do mesmo sexo. Nós discutimos a criminalização da homofobia, o que já é um avanço. As recomendações e admoestações que o Brasil têm levado são, porém, muito bem-vindas. Deveriam ser feitas para todos os países. Estamos muito distantes do que seria o justo. No Brasil, sobretudo porque o poder público, como já tem feito o Judiciário, poderia contribuir muito mais na garantia da cidadania da população LGBT”, observa Luiz Mello.

Ele afirma que o Executivo tem se omitido em matéria de direitos sexuais. Após a aprovação da união civil pelo Supremo Tribunal Federal, a presidente Dilma Rousseff não veio a público para falar sobre o avanço. Logo depois, houve o recuo no kit anti-homofobia. “Não vemos um compromisso da presidenta com os direitos sexuais como observamos na Argentina, por exemplo, onde a presidenta Cristina Kirchner abraçou como prioridade as leis de matrimônio igualitário e de identidade de gênero. É uma situação paradoxal, pois vemos ações, ainda que pontuais, nos Ministérios da Saúde e da Educação, além da existência do Conselho Nacional LGBT, e, entretanto, o governo parece ter medo expô-las”, afirma.

No Parlamento, lembra Luiz Mello, a situação também é preocupante. Há anos, o PL 122, que criminaliza a homofobia, está parado ante as pressões da bancada religiosa “Os setores conservadores conseguem imprimir sua pauta de maneira muito forte. É curioso, porque, numericamente, não é uma bancada muito grande diante da amplitude do Congresso [composto por 513 deputados e 81 senadores]. Nota-se a dificuldade de se discutir as questões de sexualidade no âmbito dos direitos humanos, tendo em vista que constitui um tema moralmente manipulado no jogo das barganhas políticas e alianças eleitorais. Apesar de sermos um país cuja Constituição prevê separação entre religião e Estado, vemos uma atuação persistente de setores dogmáticos prejudiciais às questões da população LGBT”, observa Luiz Mello.

Em matéria de sexualidade, enfatiza Luiz Mello, a promoção de direitos têm uma dinâmica irregular, não havendo implementação sistemática de tais prerrogativas. “Se olharmos para o caso das pessoas transexuais, temos um exemplo claro do paradoxo atual. O Ministério da Saúde oferece na rede pública acesso ao processo de transexualização, no qual a pessoa é acompanhada por uma equipe de profissionais da saúde de modo a realizar as transformações corporais. No entanto, a pessoa sai deste processo e não tem respaldo legal para mudar o nome e o sexo em seus documentos civis. É necessário entrar na Justiça para lutar por tal prerrogativa. Há uma fragmentação na garantia dos direitos, e isso não apenas para transexuais.”, afirma. Ele lembra que o padrão de promoção de direitos tem seguido uma lógica pontual, como a iniciativa de órgãos públicos de reconhecer benefícios – como pensão e declaração conjunta de imposto de renda – para casais do mesmo sexo. “É uma situação problemática, pois deixa entrever a falta de vontade política para encontrar soluções gerais, como políticas de Estado, para tais questões”, completa Luiz Mello.

Apesar de alguns avanços, nos últimos anos, o panorama geral ainda é decepcionante, na opinião de Luiz Mello. “A invisibilidade da população LGBT permanece como o principal empecilho para a ampliação dos direitos. O governo Dilma Rousseff, assim como o governo Lula, não transformou a agenda dos direitos sexuais como uma prioridade em suas ações próprias e em suas propostas no Parlamento, apesar de alguns acenos, como as Conferências Nacionais LGBT. Esta falta de iniciativa integra o contexto em que iniciativas como a do PDL 234 florescem. Resta aos movimentos sociais o papel de brigar pela garantia destes direitos, com todo o tipo de pressão contrária existente”, avalia Luiz Mello.

O jornal Folha de São Paulo publicou nota (10/07) afirmando que a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, pretende apresentar em agosto o plano de trabalho para comitês nacional e estadual de combate à homofobia, durante reunião do Conselho Nacional LGBT. A intenção do governo, segundo o jornal, é ampliar e promover nos Estados o disque anti-homofobia, utilizado para a denúncia de casos de violência contra gays. Será uma oportunidade para que o governo projete os direitos sexuais sob a ótica da liberdade, do respeito e da autonomia, e não da restrição. Haverá empenho institucional e espaço político para tanto? Será apenas mais uma medida pontual? “O cenário é incerto e imprevisível diante da conjuntura atual. É preciso que a sociedade civil esteja sempre atenta e mobilizada para se colocar nessas questões e fazer as pressões necessárias”, conclui Luiz Mello.