Cazu Barroz convive há 22 anos com o HIV. Nesse período de tempo, os avanços na medicina proporcionaram uma gama de medicamentos eficazes no combate à Aids, possibilitando que os infectados não mais tenham uma vida breve. O Brasil também avançou nessas duas décadas, tornando-se referência internacional por causa de seu modelo de tratamento da doença. No entanto, apesar dos progressos, graves problemas na distribuição dos remédios e na rede de assistência pública no Estado do Rio de Janeiro têm manchado a imagem do programa brasileiro. Cazu é uma das vítimas.
Denúncias veiculadas esta semana na imprensa brasileira expuseram a situação: pacientes que tiveram que esperar semanas para serem alocados em leitos, falta de medicamentos contra o HIV e doenças oportunistas nos postos de saúde e ausência de profissionais especializados compõem o estado atual do programa.
O processo de compra dos medicamentos para doenças oportunistas é responsabilidade do governo estadual, que os distribui junto com os municípios. O Ministério da Saúde é responsável pelos medicamentos que combatem diretamente o HIV, enviando-os posteriormente para as gestões locais distribuírem. A raiz dos atuais problemas por que passam o Estado, afirma Cazu Barros, está na descentralização da gestão do Programa Nacional de DST/Aids, efetuada em meados da década passada no Rio de Janeiro. A gerência do Programa tinha mais poder de deliberação, o que agilizava a tomada de decisões e facilitava a resolução de impasses. “Com a descentralização, houve uma perda de autonomia nas decisões. Atualmente, é preciso um sem número de assinaturas e procedimentos internos administrativos para que as coisas aconteçam. Os contratos demoram para ser assinados. Esta burocratização emperrou as iniciativas do Programa de Aids”, observa Cazu Barros.
A partir da lei nº 9.313/1996, todos os portadores do HIV adquiriram o direito de receber gratuitamente a medicação necessária ao tratamento. Através da iniciativa, o Brasil se qualificou internacionalmente como modelo de referência no tratamento da Aids. Além da burocratização, Cazu Barroz aponta que há falta de vontade política para reverter a situação. “Há dinheiro para a compra dos remédios. O que dificulta a distribuição é um problema de gestão, por causa do descaso dos agentes públicos responsáveis pelas políticas públicas de enfrentamento da Aids. Infelizmente, a falta de medicamentos é uma tradição”, critica.
No final de 2010, o Fórum de ONGs Aids do Estado do Rio de Janeiro, que congrega 120 organizações da sociedade civil envolvidas na luta contra a Aids, protocolou no Ministério Público denúncia contra o descaso e a negligência das políticas públicas.
O combate ao vírus HIV também enfrenta problemas no que diz respeito à distribuição dos medicamentos antirretrovirais, apesar da determinação do país para quebrar patentes, permitindo a produção de alguns desses medicamentos em território nacional. O Brasil fabrica a classe de antirretrovirais existentes antes da lei de patentes de 1996, os chamados medicamentos de "primeira linha" ou "primeira geração" – os primeiros inibidores de protease e de transcriptase. A partir daquele ano, os novos medicamentos (de “segunda linha” ou “segunda geração”) vieram cobertos de patentes, então o país só pôde vir a fabricá-los através de licença compulsória, a chamada quebra de patentes, como aconteceu no caso do medicamento Efavirenz, em 2007. Apesar da produção nacional, o CLAM apurou que o remédio Efavirenz não está sendo distribuído no Instituto de Infectologia São Sebastião, no Rio de Janeiro. A Secretaria Municipal de Saúde, em resposta ao CLAM, afirmou, no entanto, que o repasse mensal do medicamento está sendo feito regularmente.
De acordo com Veriano Terto, coordenador-geral da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), o Efavirenz é o único medicamento que obteve licença compulsória para fabricação nacional, em maio de 2007. “É necessário haver um zelo nessa questão, que é vital, diferente de quando faltam preservativos, por exemplo. Estamos falando da vida de pessoas. A falha no acesso ao medicamento viola uma lei. De uma forma geral, o sistema nacional funciona bem, mas temos que ter atenção porque a distribuição gratuita da medicação é responsável pelos bons resultados do tratamento da Aids no Brasil”, observa o coordenador da Abia, segundo o qual o que está havendo no Rio de Janeiro seria uma falha na distribuição local, e não um desabastecimento.
“Nesse momento, não há uma crise na questão dos medicamentos, nem desabastecimento, como ocorreu com o Atazanavir em 2011, quando um evento como a eleição federal causou um atraso no seu abastecimento. Na ocasião, a compra do medicamento já estava feita e o laboratório já o tinha disponibilizado, mas por conta da mudança de cargos no governo – houve uma demora da presidente em nomear o novo ministro da Saúde – faltou assinar contratos que ainda não haviam sido assinados e a medicação acabou faltando na rede pública. Desabastecimento tem a ver com problemas de logística e de definição dos contratos e das compras. Mas mesmo não havendo um problema de desabastecimento no momento, tem que haver um controle social, princípio do Sistema Único de Saúde (SUS)”, completa Veriano.
Em 2011, o pesquisador argentino naturalizado brasileiro Jorge Beloqui, professor assistente do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME/USP) e pioneiro na luta contra a Aids, fez uma cronologia (de 2004 a 2011) do desabastecimento de antirretrovirais e exames no Brasil. “As causas dos desabastecimentos são de uma enorme variedade. Vale a pena ressaltar que estes fatos não devem estar restritos à AIDS nem tampouco à esfera federal. Estados e municípios também faltam com frequência com a assistência farmacêutica”, afirma Beloqui, na conclusão do trabalho. (Clique aqui para acessar)
Segundo especialistas, a interrupção no tratamento, mesmo que de apenas alguns dias, pode ocasionar a resistência do vírus HIV a uma determinada droga. Pode interferir também na regularidade com que o usuário vai procurar o serviço de saúde e fazer uso da medicação. "Com a interrupção, o paciente pode se sentir desestimulado a continuar o tratamento, uma vez que ter que tomar remédios diariamente já não é tarefa das mais agradáveis para ninguém. Imagina alguém que já se acostumou a isso e de repente tem que parar por falta do remédio. Voltar a se acostumar a toma-lo não será tão fácil", aponta Veriano Terto.
O problema pelo qual passa a distribuição de remédios acontece em um momento de aumento da infecção de HIV na população jovem e na população gay (para cada 10 heterossexuais contaminados, há 16 homossexuais), conforme dados de 2011 do Ministério da Saúde. Em 2010, houve 34 mil novos casos registrados e 11,9 mil óbitos decorrentes da Aids – um leve recuo ante as 12 mil mortes de 2009. O coeficiente de mortalidade, no entanto, manteve-se igual: 6,3 por 100 mil habitantes.
Tais óbitos, afirma Cazu Barroz, devem ser vistos como consequência do poder público. “Não é o HIV que mata. Temos todos os mecanismos para assistir e medicar quem é soropositivo. E, no entanto, as coisas funcionam mal. O Estado do Rio de Janeiro terceiriza a culpa, alegando problemas alfandegários, laboratoriais ou burocráticos para justificar as falhas na distribuição dos medicamentos. Mas o responsável legal pela distribuição é o Estado. O nosso modelo de sistema de saúde e de tratamento da Aids é perfeito, quando visto no papel. Na prática, é outra história, não funciona. O reconhecimento internacional do Brasil decorre única e exclusivamente da gratuidade da medicação para o tratamento contra o HIV. Se olhar mais de perto, os que proferem este discurso irão mudar de opinião. Afinal, além dos remédios, o acesso a exames, especialistas e leitos está constantemente em regime de falha. O tratamento de Aids no Brasil está em descompasso com os direitos humanos”, finaliza o ativista.