A agenda dos direitos sexuais da população LGBT tem conquistado espaço na sociedade brasileira. Reflexo disso é a crescente movimentação dos três poderes em relação ao tema. E, no entanto, ao lado disso fica a sensação é de que o recrudescimento de forças conservadoras também aumenta. A publicação “Direitos Sexuais de LGBT no Brasil: Jurisprudência, Propostas Legislativas e Normatização Federal”, fruto de consultoria realizada pela advogada e pesquisadora do Núcleo Pagu (Unicamp) Rosa Oliveira ao Ministério da Justiça, traça um desenho da situação institucional sobre um segmento da população vulnerável e carente de direitos básicos.
De um lado, em nível federal os três poderem têm sido provocados a se posicionar e propor soluções para demandas que têm surgido na sociedade, capitaneadas pelos movimentos sociais. Do outro lado, concepções conservadoraes e tradicionais permanecem interferindo na produção deditando políticas públicas, leis e decisões judiciais.
De acordo com o estudo de Rosa Oliveira, feito a partir de decisões tomadas pelos Tribunais Superiores (Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior do Trabalho, Tribunal Superior Eleitoral e Superior Tribunal Militar), de projetos do Legislativo disponíveis e de medidas do Executivo colhidos nos sites oficiais de referência destas áreas, a temática dos direitos sexuais está longe de ter uma unidade conceitual e normativa consolidada. Pelo contrário, afirma a pesquisadora, “o que temos visto é a explosão de discursos e projetos sobre o tema que refletem visões de mundo distintas, opondo muitas vezes a ótica religiosa à ótica dos movimentos sociais”.
Nos Tribunais Superiores, tem havido mais abertura em relação ao reconhecimento dos direitos sexuais. Dentre tantos assuntos, como reconhecimento de união estável, mudança de registro civil de transexuais e crimes de ódios, muitos casos vêm crescendo, possibilitando uma análise sobre os diferentes contextos em que foram produzidos. Em 2011, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal reconheceu à união entre pessoas do mesmo sexo a inclusão na categoria de ‘união estável’, ampliando o acesso aos mesmos direitos usufruídos pelos sujeitos das uniões estáveis heterossexuais. Isso implicou no fim da polêmica sobre as categorias ‘sociedade de fato’ (caráter mais patrimonial, ligado à necessidade de prova sobre compartilhamento financeiro na compra de um imóvel, por exemplo) e ‘união estável’ (implicando na inclusão dasconjugalidades homoeróticas), como denomina a pesquisadora, no campo do direito de família.
No entanto, as divergências recentes evidenciam que a temática dos efeitos jurídicos da união estável estendidos aos homossexuais carece de consenso. Em 2004, a Procuradoria Regional Eleitoral do Pará abriu ação para considerarção da inelegibilidade de uma candidatura à prefeitura no Pará por causa da união estável da mulher (candidata) com a então prefeita. O juiz acatou a ação, justificando a conjugalidade como fator que impede a candidatura. O Tribunal Regional Eleitoral reformou a decisão, argumentando que, à época, a regra eleitoral não se aplicaria às relações de conjugalidade homoerótica. Mais tarde, em uma revisão na terceira instância, o Tribunal Superior Eleitoral vedou a candidatura, reconhecendo a união entre as duas mulheres como entidade equivalente à união estável.
Ainda, mesmo após a decisão do STF, que possui caráter vinculante (obrigando a uniformização da posição no país pelos tribunais e juízes), surgiram casos na imprensa onde juízes de orientação religiosa evangélica reforçaram a tese segundo a qual a extensão de direitos a partir da decisão do STF contrariaria a disposição constitucional sobre quem pode ou não entrar na categoria de família (homem e mulher biológicos, no entendimento deste juiz). Um destes casos, ocorrido em Goiás, envolvendo um casal de ativistas, se tornou bastante emblemático desta resistência pós decisão do STF.
Exemplos desse tipo demonstram as discrepâncias que atravessam o poder Judiciário brasileiro envolvendo direitos sexuais. Ainda que o cenário não demonstre uma abordagem unificada do tema dos direitos sexuais, de acordo com o estudo, os Tribunais Superiores tomaram, entre as 318 decisões analisadas, 175 consideradas favoráveis e 104 desfavoráveis. “São números que permitem alguma comemoração. De fato, o Judiciário tem sido mais aberto, de maneira positiva, às demandas LGBT”, observa Rosa Oliveira. “A existência de visões apegadas à noção de família nuclear ou a papéis de gênero tradicionais não impede que provoquemos o Judiciário. A pressão dos movimentos sociais, a iniciativa de ações emblemáticas e a mobilização de um clima político favorável ou no mínimo de resistência podem desvincular, ao longo do tempo, discursos conservadores das decisões. Não é uma tarefa simples e imediata. No entanto, o próprio Ministério Público, através de alguns setores engajados, tem atuado em prol dos direitos sexuais, procurando deslegitimar concepções binárias de sexo e gênero que se mostram na prática contrárias à liberdade e à autonomia de todos os indivíduos, não importando sua orientação sexual como sujeitos de direito”, completa Rosa Oliveira.
O Tribunal Superior do Trabalho (TST), afirma Rosa Oliveira, tem atuado no sentido de garantir o respeito à vida privada e à dignidade. No estudo, a pesquisadora encontrou diversos casos em que o ambiente de trabalho é permeado por situações de assédio moral baseado em sexismo e misoginia. “Ao estudar os conteúdos dos processos e das sentenças, entramos em contato com o cotidiano brasileiro, em que a lógica das binaridades sexuais em relação às construções de gênero é um eixo organizador das práticas e das relações sociais. Daí a importância de o poder público agir para regular tais relações”. É o caso da aparição de uma grande maioria de recursos judiciais onde as partes reclamantes eram homens heterossexuais obrigados a se travestir contra a vontade em situações de reunião de vendas, ou o uso de apelidos discriminatórios como “vendedor mestruação” aludindo a quem está "sempre no vermelho".
Ao analisar os sites da Câmara e do Senado, Rosa Oliveira encontrou 97 proposições legislativas em tramitação nas legislaturas entre os anos de 1995 e 2011. O conteúdo das iniciativas é variado, incluindo união estável, educação, trabalho, homofobia, população trans, entre outros. A análise histórica dos dados mostra que desde 1995 a tendência é de crescimento de projetos. Em 1996, apenas 1 projeto no campo dos direitos sexuais da população LGBT fora apresentado. Três anos depois, foram 3. Em 2003, foram 7. Em 2008, o Congresso totalizou 10 propostas. No último ano de análise, 2011, registraram-se 34.
De acordo com o estudo, o incremento experimentado ao longo dos anos 2000 é fruto da mobilização dos movimentos sociais, que fortemente impulsionado pelas ações no campo da prevenção à AIDS, criou um clima propício para que o governo federal como um todo viesse a se posicionara sobre o tema. “A questão dos direitos sexuais LGBT tem como momento importante, aqui no Brasil, a edição do Programa Brasil Sem Homofobia, de 2004, que deu base normativa a diversas ações de formulação e implementação de políticas contra a homofobia, além da estruturação das Conferências Nacionais, também momentos importantes de concretização destas iniciativas. Foi um reconhecimento institucional das demandas da população LGBT, articulando aspectos do campo da saúde, educação, cultura, trabalho”, afirma Rosa Oliveira.
De fato, o governo tem procurado implementar medidas administrativas que garantam direitos à população LGBT. Não tem sido, no entanto, um movimento tranquilo. Enquanto o governo federal tem formulado normas administrativas includentes, especialmente nos últimos 10 anos, que ampliam direitos, mobilizações contrárias têm sido articuladas para fazer frente às mesmas.
Nesse contexto, resoluções, decretos e portarias do governo federal já definiram comissões para promover políticas públicas de igualdade e oportunidade (decreto de 23/08/2004); um dia nacional de combate à homofobia (decreto 04/06/2010); o direito ao uso do nome social para indivíduos trans no serviço público federal (portaria 233/2010); e a indicação de dependentes de benefícios previdenciários no caso de casais homossexuais (portaria 513/2010) , no caso em cumprimento a uma medida judicial originada numa atuação do Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul.
Contudo, o mesmo governo que promove direitos é aquele que os retira. Em 2011, o Ministério da Educação suspendeu a distribuição de material pedagógico destinado a combater a homofobia. Pressionado por setores religiosos no Congresso, o recuo demonstrou que a agenda de direitos é bastante vulnerável a conveniências político-partidiárias muitas vezes permeadas de argumentos de conteúdo religioso. Na última semana, novamente o governo deu um passo atrás, cancelando a distribuição de um kit educativo sobre prevenção ao HIV/Aids nas escolas. De acordo com segmentos dos movimentos sociais, o governo deu nova mostra da poderosa articulação e interferência dos setores religiosos mais tradicionais no país.
No Congresso, setores fundamentalistas têm se mobilizado para combater a agenda dos direitos sexuais. Por exemplo, dois projetos de lei (4508/08 e 7018/10) prevêem a proibição de adoção de crianças por casais gays. Além disso, a chamada bancada religiosa manifesta-se prontamente quando da emergência de temas que se chocam com seus valores, buscando ainda ocupar espaços estratégicos no sistema regimental. A eleição do Deputado pastor Marco Feliciano para a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara é um sintoma dos tempos atuais. Nesse cenário, conforme lembra Rosa Oliveira, o retraimento de representações sensíveis aos direitos sexuais tem sido visível. "Poucos parlamentares expressam publicamente a defesa da agenda. A maioria tem optado pelo silêncio, ou sua voz é literalmente abafada em muitos contextos, como foi a votação por exemplo do chamado PL da ‘bolsa estupro’, ou o estatuto do nascituro, o que se reflete também na lenta e tortuosa tramitação de projetos de leis que ampliam direitos sexuais, cujo destino mais comum tem sido a gaveta ou o confronto direto envolvendo parlamentares e movimento nas comissões e plenárias", afirma a advogada.
A articulação entre Executivo e Legislativo, no Brasil, é sinuosa. As demandas e os grupos sociais ali representados estão em constante divergência. Fora do circuito institucional, a sociedade civil também se mostra atenta aos rumos legais no campo dos direitos sexuais. O país tem, de outro lado, um campo teórico consolidado em termos de direitos sexuais: centros de estudo e programas de pesquisa e ensino compõem uma rede de conhecimento estabelecida e em crescimento. A interface dessa expertise com o poder público ocorre atravessada por ruídos. Para Rosa Oliveira, a agenda dos direitos sexuais, apesar dos avanços, está também exposta aos humores partidários,principalmente na relação entre Executivo e Legislativo. “O tema dos direitos sexuais, infelizmente, tem sido caracterizado pelas negociações que o reduzem a “moeda de troca”. Seu valor como conceito, como conhecimento aplicado à amplicação de direitos destinados ao reconhecimento da dignidade, autonomia e liberdade das pessoas fica em segundo plano. Os setores conservadores estão mais organizados, o que dificulta as discussões”, observa Rosa de Oliveira, que completa fazendo uma relativização crítica ao alcance dos movimentos sociais na consecução de seus objetivos.
“As mobilizações, infelizmente, acabam reificando algumas categorias. Por exemplo, temos ativismo gay,lésbico, trans, mas não temos ativismo bissexual em termos de uma representação perante o Estado, e isso inclusive não significa que seja algo obrigatório. Mas tais reificações se convertem num quadro que dificulta uma visão mais sistêmica dos direitos sexuais na hora em que as demandas são construídas e oficializadas. Algumas propostas legislativas francamente apoiadas por setores do movimento e até da OAB, como é o caso do chamado “Estatuto da Diversidade Sexual”, carecem de definições mais claras conceitualmente (mesmo porque a instabilidade das categorias é muito característica do campo), além de não prever em seu texto a noção de sistema de direitos, como já comentava Roger Raupp Rios em uma conferência realizada em 2012 pela OAB SP. As relações com o Estado assim assumem um caráter frágil, de inspiração clientelista, atreladas muitas vezes a propostas isoladas de financiamentos específicos às Paradas, ou a determinados investimentos com baixa capacidade de resolutividade em vários contextos. Há uma fragmentação muito grande que prejudica uma tomada de posição mais consolidada e ampla”, lamenta a pesquisadora.
Para Rosa Oliveira, o Estado brasileiro precisa por outro lado encontrar respostas legislativas à situação de ausência de acesso a direitos sexuais e reprodutivos. “Os três poderes precisam se renovar para dar conta das demandas que surgem e que surgirão. Não podem ficar presos a dogmatismos religiosos, e ao mesmo tempo é necessário afirmar e liberdade de expressão religiosa, sexual, comportamental, cultural. O mundo público e institucional deveria se abster da influência de valores dogmáticos que dificultem a garantia de direitos, afirmando o caráter laico do Estado como pressuposto de uma tentativa de alcance da democracia. O Executivo, com suas limitações, e o Judiciário têm procurado dar respostas para as demandas. O Legislativo tem sido inoperante e até mesmo hostil, em função do crescimento da influência de setores religiosos fundamentalistas e conservadores. Para todos os efeitos, a pesquisa mostra que é factível a implementação de uma agenda em prol da população LGBT. É preciso vontade política, acima de tudo”, conclui Rosa Oliveira.