A vigilância policial contra o aborto, no Rio de Janeiro, reflete desigualdades ancoradas em diferentes marcadores sociais, atingindo de maneiras distintas a população feminina. É o que demonstra pesquisa desenvolvida pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER) a partir do banco de dados de registros de ocorrência do Instituto de Segurança Pública (ISP), do governo do Estado. O estudo, coordenado pela socióloga Ana Paula Sciammarella e que teve como consultor o coordenador do CLAM, Sérgio Carrara, aponta como a dimensão social do aborto envolve assimetrias de classe, cor, escolaridade e faixa etária.
Tipificado como crime no Código Penal brasileiro, que data de 1940, a interrupção da gravidez só é permitida em casos de gestação resultante de estupro, quando há risco de morte à mãe ou quando o feto for anencéfalo. A ilegalidade do aborto, no entanto, não impede que esta seja uma prática de milhares de mulheres, frequentemente expostas a graves riscos de saúde em função da precariedade dos métodos e a situações igualmente perigosas de abuso dos direitos humanos. No país, de acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), realizada pela Universidade de Brasília e pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, em 2010, 1 em cada 5 mulheres, até os 40 anos, já realizou um aborto.
De acordo com os dados do ISP, de 2007 a 2011, foram registradas 351 ocorrências no estado do Rio, a maioria em residências (122) ou hospitais e clínicas (105), envolvendo 334 mulheres acusadas de fazerem aborto. Desse total de mulheres, 92 eram brancas e 111 negras/pardas (55% do dos casos analisados válidos, pois com frequência a raça/cor não é preenchida no registro). “Os números mostram como o aborto é um problema que está associado à cor da pele, que acaba sendo determinante na punição de camadas específicas da população. O viés da pesquisa, voltado para a atuação da força policial, traz reflexões importantes para se pensar a complexidade de fatores que estão envolvidos na questão do aborto”, afirma Angela Fontes, superintendente de Direitos da Mulher do Estado do Rio de Janeiro.
Segundo a advogada e associada na América Latina do Ipas Beatriz Galli, os dados revelam como o sistema penal é seletivo e atua com um viés moral. “Pelos dados do Rio mencionados na pesquisa do ISER, as mulheres negras e pardas representam 50,7% da população no estado. Quando olhamos para as ocorrências, esse segmento ocupa 55% dos registros. Há uma evidente sobre-exposição destas mulheres quando capturadas pelas forças da lei. O racismo está estruturado na sociedade e articula-se com outros aspectos que contribuem para a vulnerabilidade de camadas específicas da população feminina”, observa Beatriz Galli, que também é relatora nacional do direito humano à saúde sexual e reprodutiva da Plataforma Dhesca Brasil.
Um desses aspectos é a escolaridade. Dos 334 analisados, 69 (53% dos registros válidos) são de mulheres com 1º grau completo ou incompleto e 49 (37% válidos) de mulheres com 2º grau completo ou incompleto. As mulheres com curso universitário completo ou incompleto constituem 10 casos (8% válidos). “As mulheres com formação escolar precária estão em evidente situação de vulnerabilidade. A falta de um desenvolvimento educacional consistente prejudica estas mulheres, pois dificulta o acesso à contracepção, à inserção no trabalho, à saúde sexual e reprodutiva de uma forma ampla. Da mesma forma, a baixa qualificação está associada a condições socioeconômicas precárias, expondo essas mulheres à atuação seletiva da polícia. A questão do aborto não pode ser vista e analisada fora do estado de injustiça social que caracteriza o país”, salienta Beatriz Galli.
Outro fator destacado é a idade das mulheres. A pesquisa do ISER mostra que 45% dos casos registrados referem-se a mulheres na faixa dos 15 aos 24 anos, reiterando o enraizamento do aborto no quadro de desigualdades sociais. “Estas mulheres, muitas adolescentes ainda, estão desamparadas. Não têm como pagar uma clínica particular, destino preferencial de mulheres de classe mais alta. Na maioria das vezes, usam remédios para tomar em casa, sendo denunciadas por vizinhos e conhecidos ou nos hospitais por profissionais de saúde que violam o sigilo médico”, observa Beatriz Galli, chamando a atenção para as violações que ocorrem nos serviços de saúde e que vão na contramão da Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, lançada em 2005 pelo Ministério da Saúde e que orienta o acolhimento, atendimento e tratamento de maneira digna das mulheres que chegam aos hospitais.
Angela Fontes, da Superintendência de Direitos da Mulher, adverte que é preciso capacitar profissionais da área de segurança a lidar com mulheres que abortam. “O trabalho policial é o primeiro passo para o que pode se constituir em um longo e penoso processo judicial. O momento do registro policial deve ser feito levando-se em conta a dignidade da mulher. Sabemos que o aborto, salvo as exceções previstas, é crime no Brasil. Ainda assim, a atuação do agente policial pode significar desrespeito e abuso. Já houve casos aqui no Rio em que a mulher foi algemada no próprio hospital. A atuação das forças policiais e o cruzamento de marcadores sociais demonstram como a questão do aborto está longe de ser tratada como um problema de saúde pública que diz respeito à dignidade e autonomia das mulheres”, argumenta Angela Fontes, que se mostra otimista e esperançosa em relação aos avanços legislativos pertinentes ao aborto no país.
No Congresso Nacional tramita a reforma do Código Penal brasileiro. Pelo texto, o aborto deixa de ser crime até a 12ª semana de gestação, desde que fique comprovado que a gestante não tem condições financeiras ou físico-mentais de continuar a gestação. A pesquisa do ISER, de acordo com Beatriz Galli, reforça a importância da revisão do Código Penal. “O texto de 1940 não dá conta das desigualdades que atravessam a sociedade brasileira. O Rio de Janeiro é um exemplo disso. A abordagem de segurança pública sobre a questão do aborto expressa um grave desrespeito à autonomia e saúde das mulheres. Para além da questão evidente de que a lei pune apenas a mulher, esquecendo o papel do homem na gestação e, portanto, deixando clara a desigualdade de gênero, a criminalização do aborto não impede a ocorrência da prática. Não à toa, conforme a PNA revelou, um quinto das mulheres brasileiras já fez ao menos um aborto na vida. As violações que ocorrem na trajetória de abortamento dessas mulheres são muito graves. Por isso, a pesquisa do ISER oferece elementos para argumentarmos que a legalização e a regulamentação da interrupção da gravidez são uma necessidade. Do contrário, continuaremos convivendo com tragédias diárias, em que mulheres adquirem sequelas ou morrem por causa da repressão penal ”, conclui Beatriz Galli.