A medicalização da sexualidade foi o foco central da conferência “Michel Foucault: entre a história da sexualidade e a história da Medicina”, apresentada pelo psicólogo social Alain Giami, pesquisador do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica (INSERM) da França, no Instituto de Medicina Social da Uerj (IMS), no dia 24 de novembro. A conferência abordou resultados de uma investigação histórica sobre a obra de Michel Foucault desenvolvida por Giami no artigo intitulado “A medicalização da sexualidade – Foucault e Lantéri-Laura: um debate que não ocorreu”, o qual será publicado na próxima edição da revista Physis, do IMS-UERJ.
O pesquisador lembrou que, nos anos 70, algumas obras foram publicadas colocando o problema das relações entre a medicina e a sexualidade, sob o ângulo da “medicalização” e da “apropriação médica”: a obra de Michel Foucault, A Vontade de Saber, publicada em 1976, e a obra de Georges Lanteri-Laura, Leitura das Perversões – História da apropriação médica, publicada em 1979.
Ao ler Leitura das Perversões, Giami constatou, de forma surpreendente, que o texto de Michel Foucault não era citado no livro de Lanteri-Laura. “A ausência de total referência à obra de Foucault coloca uma questão. Em que medida a perspectiva adotada por Lanteri-Laura é incompatível com aquela desenvolvida anteriormente por Foucault para que ele nem mesmo a mencionasse?”, observou Giami.
Em sua exposição, o pesquisador francês comparou as abordagens de Foucault e Lantéri-Laura. “Os dois autores trabalharam sobre materiais históricos em parte comuns, e sobretudo sobre a gênese e desenvolvimento da sexologia nos séculos XIX e XX; mas suas interpretações divergem em diferentes pontos”, analisa Giami.
Outro ponto enfocado por ele foi o lugar da Psicanálise nessas abordagens. Ao analisar textos de Foucault, como os Anormais, Poder psiquiátrico e Em defesa da sociedade, Giami observou que Foucault aborda a questão da medicalização sob o ângulo do bio-poder e da bio-política.
Na percepção de Giami, o processo da medicalização, segundo Foucault, não é redutível à instituição médica, e seu aparecimento se inscreve no desenvolvimento das “tecnologias de poder”. “Ele construiu uma teoria da medicalização da sexualidade a partir de uma série de linhas convergentes: a gênese religiosa do dispositivo de sexualidade, a constituição dos saberes psiquiátricos, a família como instância central da medicalização, e a bio-política como forma de organização política de regulação das populações”.
O estudo de Giami mostra que, enquanto o trabalho de Foucault traça a historicidade da sexualidade, Lantéri-Laura trata da apropriação médica das perversões sexuais e de como a Psiquiatria vai intervir para medicalizar condutas sexuais. “Ele tem uma abordagem que mostra que o processo de medicalização é uma forma de conhecimento ideológico. Lantéri-Laura vai apresentar os diferentes modelos de medicalização das perversões e de psiquiatrização e penalização das condutas sexuais”, explicou Giami.
Para Giami, a obra de Lantéri-Laura representa uma alavanca importante para abrir o debate sobre a história da sexualidade e de sua relação com a medicina, pois apresenta diferentes perspectivas de análise.
Além de Lantéri-Laura, Giami cita John Gagnon, nos Estados Unidos, como outro autor que também desenvolveu “uma obra que ajuda a objetivar as relações e os limites de Foucault e a dessacralizar sua obra”.
O sociólogo americano que, em 1975, formulou a teoria dos scripts sexuais foi também contemplado na análise do pesquisador francês. “Gagnon elaborou uma teoria sociológica da sexualidade centrada na banalização da sexualidade. Ele avalia a influência da Psicanálise na cultura americana. Segundo este autor, a psicanálise vai fornecer o vocabulário necessário para falar da sexualidade de um modo socialmente aceito”, avaliou Giami. Para o leitor interessado, a tradução do livro de Gagnon, Uma interpretação do desejo, será lançada pelo CLAM em janeiro de 2006.
Giami concluiu a conferência apresentando uma rápida comparação sobre as percepções da sexualidade para os três teóricos. “Para Foucault, ela é uma representação da verdade. Lantéri-Laura centra-se na medicalização das condutas sexuais não reprodutivas, enquanto Gagnon aborda as significações da atividade sexual em três níveis: social, pessoal e interpessoal”.
Assim como Gagnon, Giami trabalha com o tema da banalização da sexualidade, aspecto que, segundo ele, poucos estudam hoje em dia. “O problema é sair da dimensão do sagrado, e a sexualidade é sempre considerada como uma atividade sagrada”, afirma o autor.
O pesquisador francês lembrou que o processo de banalização da sexualidade ocorreu no século XX com a aceitação social da atividade sexual, principalmente no seio do casal. “É interessante ver que, antes da pílula, a vida sexual de um casal referia-se principalmente à reprodução, enquanto a vida erótica era realizada entre os homens e as prostitutas. Depois da revolução sexual, as práticas sexuais da prostituição entraram na cama conjugal, como por exemplo, a prática do sexo oral. O que antes era especialidade das prostitutas, agora todo mundo faz no casamento. Isto é um exemplo da normalização e banalização da sexualidade no casal”, avaliou.
Disfunção erétil e Viagra
Embora a temática da medicalização da sexualidade tenha sido o eixo central de sua exposição, para Giami o uso do termo chega a ser um pleonasmo, visto que não se trata de algo novo. “A medicalização existe desde o início do século XIX”, disse ele. “É interessante seguir o processo dessa medicalização, porque, até a década de 1960, a medicina estava ao lado da religião na condenação da sexualidade não reprodutiva, da homossexualidade, da masturbação, do coito interrompido e da gravidez fora do casamento. Nesta década, com a emergência da contracepção hormonal, aconteceu a ruptura entre a medicina e a ideologia da religião católica, quando a medicina decidiu participar no processo de contracepção. Neste mesmo momento, se deu o descobrimento da dimensão fisiológica do orgasmo, isto é, o orgasmo passou a ser conceitualizado pela medicina”, observou.
As disfunções sexuais – particularmente a disfunção erétil – foi outro tema abordado por Giami. Segundo ele, embora muitos afirmem que o Viagra teria inaugurado uma nova revolução sexual, o surgimento do medicamento representou, na verdade, o que ele chama de ”dessexualização da ereção”, permitindo desvincular ereção de ato ou prazer sexual. Sua crítica refere-se à indústria ligada à ”saúde sexual”. “Eles investem muito dinheiro na pesquisa e no marketing. Ao mesmo tempo, não investem no tratamento do HIV/Aids. E este é um problema global”, finalizou.