Por Fábio Grotz
A Conferência Rio+20, idealizada e planejada para ser um fórum de promoção da sustentabilidade e da justiça social e econômica, deu um passo para trás em matéria de direitos das mulheres. O texto final, após longa negociação, teve suprimida a expressão “direitos reprodutivos”, o que, para o movimento de mulheres, representa um grave retrocesso.
O texto inicial estipulava o compromisso dos países com a igualdade no acesso à educação e aos serviços de saúde para as mulheres, tratando da questão da saúde e dos direitos reprodutivos, bem como do planejamento familiar.
No entanto, o processo de negociação teve atuação decisiva do Vaticano – observador na Conferência – e de Estados conservadores aliados, que atuaram para enxugar a redação final. Chile, Rússia, Honduras, Nicarágua, Egito, República Dominicana e Costa Rica alegaram que não reconhecem a expressão “direitos reprodutivos” – que seria contrária ao direito à vida, uma vez que está associada à descriminalização do aborto – ou que a expressão deveria ser seguida do qualitativo “de acordo com as leis nacionais”. Do outro lado, países como Nova Zelandia, Canadá, Austrália, México, Uruguas e Estados Unidos defenderam e reiteraram o compromisso com os direitos sexuais e reprodutivos.
A mudança textual vai na contramão de acordos internacionais firmados na década de 1990, que definiram diretrizes e ações voltadas para a saúde e os direitos femininos. As Conferências do Cairo (1994) e Pequim (1995) são marcos históricos no processo de luta pela promoção da igualdade de gênero. A autodeterminação sexual e reprodutiva sem discriminação, coerção e violência tornou-se, desde então, o paradigma a nortear os países-membros da Organização das Nações Unidas na elaboração de leis e políticas públicas.
Duas décadas transcorridas e o cenário permanece conflituoso. Após o término das negociações, organizações feministas reunidas no Território Global das Mulheres da Cúpula dos Povos, evento paralelo à Rio+20, emitiram nota criticando o texto final. Para o movimento de mulheres, é preciso denunciar a tentativa de retroceder em relação aos direitos firmados internacionalmente. As organizações criticaram o modelo econômico que gera desigualdades e mercantiliza os direitos humanos. Em passeata promovida por organizações feministas no Rio de Janeiro, cerca de cinco mil mulheres protestaram contra o que consideram um regime opressor que vitima as mulheres no que concerne à liberdade sexual, à autonomia reprodutiva e à violência machista.
Para Beatriz Galli, da ONG Ipas e que acompanhou as negociações como representante da sociedade civil, o governo brasileiro, negociador do texto final, teve uma atuação decepcionante. “Os direitos femininos não foram prioridade, infelizmente. O Brasil cedeu à pressão e desconsiderou a linguagem acordada no Cairo e em Pequim, o que representa um retrocesso perigoso. Isso não significa que as Conferências dos anos 1990 tenham perdido a validade. No entanto, um encontro que tem como objetivo buscar meios para o desenvolvimento sustentável não pode ignorar o acesso à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos – componentes centrais para a sustentabilidade”, avalia Beatriz Galli.
De acordo com ela, a Rio+20 seria uma oportunidade para se avançar sobre a situação das mulheres, que representam mais da metade da população mundial. “Após os avanços propostos pelas Conferências, a lógica seria a de ampliarmos e melhorarmos as condições de vida das mulheres. O que era um convite ao avanço, no entanto, tornou-se um retrocesso. Os direitos sexuais e reprodutivos restringiram-se ao papel de moeda de troca”, observa Beatriz Galli. O próprio chanceler brasileiro, ministro Antonio Patriota, se disse a favor da inclusão do termo no texto final, mas reconheceu que o tema suscita divisões profundas.
Para evitar um racha no G77 – bloco de países em desenvolvimento – e manter a unidade em outros temas considerados mais importantes pelos integrantes do bloco, o governo brasileiro cedeu na temática dos direitos femininos. “O Brasil perdeu uma ótima oportunidade de fortalecer a luta pelo desenvolvimento sustentável. Poderia ter tido uma ação mais decisiva e menos condescendente, mas novamente, como tem sido nos últimos meses, preferiu o silêncio. A justiça econômica e social tem como um dos pressupostos a igualdade de gênero e as prerrogativas sexuais e reprodutivas, compromissados há duas décadas e, lamentavelmente, esquecidos em 2012”, afirma Beatriz Galli.
Para Guacira Cesar, diretora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), o saldo da Rio+20, até o momento, é lamentável. “Retirar os direitos reprodutivos do escopo do texto é uma perda para as mulheres, pois desvirtua compromissos relativos à saúde das pessoas. Isso é uma questão de direitos humanos, que não deveria ficar à mercê das relações de força entre países. O que preocupa ainda mais é o precedente que isso abre, pois não sabemos como o tema será tratado nas próximas reuniões internacionais. Se cedemos na Rio+20, quem pode garantir que mais à frente o mesmo não ocorrerá?”, critica a diretora do Cfemea, concluindo que o papel desempenhado pelo Brasil não condiz com a proposta de um mundo sustentável e justo.
As manifestações das mulheres refletem um cenário composto pela atuação persistente de forças conservadoras, que tradicionalmente, há décadas, advogam contra os direitos femininos. Nas Conferências dos anos 1990, Estados conservadores e o Vaticano atuaram com o intuito de impedir a definição dos direitos sexuais e reprodutivos. Observador permanente na ONU, o Vaticano é um ator cuja agenda prioritária abarca o combate sistemático a tais direitos. Em 2011, durante votação do relator Anand Grover sobre saúde, a Santa Sé, sob o silêncio do governo brasileiro, fez pressão incisiva contra o texto, que considerava a criminalização do aborto uma violação dos direitos humanos.
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