CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Aids: Direitos humanos em risco

A recusa do governo brasileiro em receber US$ 48 milhões dos Estados Unidos para financiamento de projetos de prevenção ao HIV/Aids em reação à imposição da Agência Americana para Desenvolvimento Internacional (Usaid) de que as ONGs brasileiras só receberiam os recursos caso se opusessem ao trabalho sexual tomou conta dos noticiários internacionais. Para autoridades, pesquisadores e ativistas, a exigência americana fere os princípios dos direitos humanos. A decisão do governo conta com o apoio do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM), instituição cuja principal área de interesse e atuação é a da sexualidade e dos direitos humanos.O diretor do Programa Nacional de DST/Aids, Pedro Chequer, viu a exigência como “uma interferência que põe em risco a política brasileira em relação à diversidade, aos princípios éticos e aos direitos humanos”.



Esta não foi, porém, a primeira tensão entre os dois países no que diz respeito à política de abstinência sexual preconizada pelo governo Bush. Em 2003, um editorial do New York Times informou haver riscos de que os recursos da Usaid para HIV/Aids no Brasil fossem suspensos em razão da divergência entre a diretriz brasileira de prevenção – que apóia o uso do preservativo – e a americana de promoção da abstinência. Na ocasião, a Usaid flexibilizou sua posição. Agora em 2005, as negociações para um novo financiamento esbarraram na visão ultra-conservadora do governo americano de que a prostituição seja a causa da expansão da Aids e de que o uso de preservativos não é um método seguro.



Foi a primeira vez que esse termo restritivo – oposição ao trabalho sexual por parte das ONGs beneficiadas – entrou no contrato na forma de impedimento, desde o começo do acordo de cooperação bilateral, iniciado na década de 80. Foi também a primeira vez que o Brasil decidiu recusar o financiamento.



“A Usaid sempre teve uma política bastante restritiva, pois ela segue a filosofia do governo americano”, afirma Veriano Terto Junior, coordenador da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA). “Mas nunca foi tão impositiva em relação à prostituição e ao uso de preservativos que, para eles, não é um método totalmente seguro”. O acordo de financiamento atual é regido pelos critérios da política brasileira de prevenção, pautada principalmente pelo uso de preservativos e não pela cartilha do ABC, anagrama da política da sexualidade americana que quer dizer abstinência (abstinence) em primeiro lugar, fidelidade (be faithful) e, por último, o uso da camisinha (condon).



A política do governo George Bush para a sexualidade preconiza a abstinência sexual como a chave para a prevenção do HIV, apoiada também na visão conservadora de que toda prostituição deve ser erradicada porque ofende a dignidade das mulheres. Lançado em 2004, o documento “O Kamasutra de Bush – muitas posições sobre sexo: implicações globais das políticas nacionais e internacionais sobre sexualidade implementadas pelo Governo dos Estados Unidos”, da advogada canadense Françoise Girard, dedica um capítulo ao trabalho sexual e mostra como o governo americano enxerga a questão.



“Os(as) trabalhadores(as) do sexo são apresentados(as) como vítimas que devem sempre ser resgatadas dessa forma de violência sexual. A autonomia e o livre arbítrio das mulheres são consideradas como sendo inexistentes. A indústria sexual, o tráfico de pessoas para essa indústria e a violência sexual são causas adicionais e um fator na propagação da epidemia de HIV/AIDS”, relata Françoise.



Na versão em português do documento, o texto de apresentação já previa, de certo modo, as dificuldades nas negociações em torno de um novo acordo de cooperação financeira norte-americano em 2005.



“Não é absurdo prever que em negociações futuras, a Usaid – contaminada pelo clima “moral” do segundo mandato de Bush – poderá ser muito mais impositiva no que diz respeito à agenda da abstinência, por exemplo (…). É crucial não perder de vista os efeitos – nem sempre debatidos ou antecipados – da cooperação técnica e financeira norte-americana no que diz respeito a várias questões, como o trabalho sexual e o HIV/Aids”, profetizava o texto, escrito pelos pesquisadores Richard Parker, Sonia Correa, Cristina Pimenta e Veriano Terto Junior, todos da ABIA, instituição que no momento tem um projeto de 18 meses em andamento com o PACT, uma ONG autônoma americana através da qual a Usaid repassa os recursos direcionados à Aids para outros países. O acordo de cooperação, firmado em 2004, está previsto para terminar em abril de 2006. Além da ABIA, outras 22 ONGs brasileiras receberam o financiamento.



A decisão de não se dobrar à exigência do governo americano foi partilhada pelo governo brasileiro, pelas ONGs que seriam beneficiadas, e pela Comissão Nacional de Aids (Cnaids), órgão de avaliação das políticas do setor. “É uma posição correta, pois a condição imposta pela Usaid infringe as diretrizes do programa de DST/Aids do Ministério da Saúde. Importante lembrar que a coordenação do programa não tomou a decisão de forma unilateral, pois dizia respeito aos recursos que seriam disponibilizados às ONGs. Foi essencial que a discussão tenha envolvido aqueles que serão mais afetados”, diz Sonia Correa, pesquisadora da ABIA e coordenadora para saúde e direitos sexuais e reprodutivos da Rede DAWN.



Ao comentar o impasse, o porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Richard Boucher, afirmou que seu país tem impedimentos legais para não ajudar as ONGs nessas condições. “Apenas queremos saber que elas [as ONGs] estão tão comprometidas quanto nós em combater a Aids e também em combater a prostituição e o tráfico sexual, que têm feito parte da expansão da Aids”.



Para Sonia Correa o evento foi positivo. “O impasse abre uma oportunidade de ampliar uma discussão interna sobre prostituição e tráfico sexual. A decisão nos leva a olhar com mais cuidado sobre essas questões e de fazer um debate mais amplo sobre o assunto”. Ela afirma que só foi possível dizer não porque o Brasil tem uma boa estrutura de cooperação bilateral. “A política e os recursos de cooperação internacional são ajustados de acordo com os mecanismos internos e isso é bom”, diz a pesquisadora.