CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Aids e promoção de direitos

“A epidemia do HIV teve um impacto importante na sociedade brasileira, pois obrigou o direito a se pronunciar. Assim, teve um papel importante para o pensamento sobre direito social no país”, afirmou o juiz federal Roger Raupp durante o “III Seminário Nacional para promoção de direitos humanos no contexto do HIV e Aids”, ocorrido esta semana em Niterói (Rio de Janeiro).

Durante a Conferência Magna sobre “HIV/Aids, Direitos Humanos, Saúde e a Experiência brasileira: o que não pode ser esquecido e o que deve ser lembrado”, Roger Raupp traçou uma história dos direitos sociais no país. De acordo com o juiz, a concepção de direito social emerge durante o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), quando foi instituída uma legislação trabalhista e previdenciária que buscava garantir determinadas prerrogativas aos trabalhadores. Assim, o salário mínimo, as férias e a jornada de trabalho foram definidos pelo governo getulista através da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), promovendo uma noção inicial de proteção social. No entanto, apesar de estabelecer direitos para o trabalhador, a CLT estava fortemente ancorada em uma perspectiva positivista. Isto é, “o indivíduo só tem valor como peça na engrenagem da sociedade. O bom indivíduo é o operário que se esforça e contribui para a manutenção e funcionamento da sociedade. Assim como o bom pai de família”, observou Roger Raupp. “Isso demonstra que tal modelo de legislação trabalhista nasce a partir de uma ideia dos indivíduos não como sujeitos de direitos, mas sim como destinatários de uma expectativa do organismo formado pela sociedade e pelo Estado”, acrescentou o juiz federal.

Sob tal lógica organicista, a saúde se tornava acessível apenas a quem fosse trabalhador. Através do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), o Estado brasileiro garantia o atendimento dos indivíduos. “Era uma saúde condicionada, no entanto. Só podia acessá-la quem se encaixasse no padrão de ‘boa peça’ da sociedade. Uma lógica também excludente, pois indivíduos dissonantes não estavam cobertos pelo então sistema de saúde. Por tais indivíduos dissonantes, podemos incluir minorias e grupos marginalizados. Não existia, portanto, a lógica de saúde universal. Não tínhamos uma concepção de saúde como direito, mas sim como conformação e adequação”, afirma Roger Raupp.

Após o governo de Getúlio Vargas (1930-1945), o Brasil experimentou alguns governos eleitos democraticamente. Em 1964, veio o golpe militar, que instituiu o regime ditatorial que só viria a terminar em 1985. Ao final do regime de exceção, o país começou a discutir uma nova Constituição. Em 1988, a nova carta constitucional, conhecida como Constituição Cidadã, foi promulgada, instituindo o Sistema Único de Saúde (SUS), que passou a garantir saúde gratuita e universal a todos os brasileiros.

Nos anos 1980, a explosão da epidemia do HIV/Aids provocou um impacto importante na dinâmica dos direitos. No Brasil, a doença chega em um momento em que a sociedade reivindicava direitos ao Estado, no contexto da redemocratização. “Há, nesse sentido, um rechaço à arbitrariedade, a valorização dos direitos, da universalidade e de identidades coletivas reunidas em torno da sexualidade. Portanto, o país sofre uma virada de mentalidade, a partir da qual uma outra legitimidade é proposta em face do autoritarismo que marcara o país nas décadas anteriores”, destacou Roger Raupp.

No início da epidemia, o estigma recaiu fortemente sobre os gays, acusados com frequência de serem os responsáveis pela disseminação do vírus. Surge nesse contexto a expressão pejorativa “câncer gay”. Assim, a saúde de indivíduos dissonantes se incorpora ao contexto mais amplo de demandas por direitos. Aos poucos, a luta contra o estigma e o HIV assume uma natureza de crítica social, empurrando a discussão para a necessidade de se pensar a natureza dos direitos coletivos, políticas públicas universais e participação democrática da sociedade nos governo. Não à toa, a resposta brasileira à epidemia conta com prestígio internacional, pois se pautou desde suas ações iniciais pela lógica dos direitos humanos.

Com isso, os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário passam a receber temas da sociedade, que pressiona a pauta de discussões e as decisões do poder público. “O HIV/Aids é importante, pois articula questões como igualdade, anti-discriminação e dignidade em nome da diversidade sexual. Promove uma discussão sobre os direitos das pessoas. Os poderes vão sendo incitados a encaminhar as demandas. Questões de saúde começam a ser discutidas em sua dimensão social. A seguridade social, ao passar a proteger todos os cidadãos, convoca uma reflexão mais profunda sobre as pessoas portadoras do vírus: capacidade e incapacidade são pensadas não apenas como questões biomédicas, mas também sociais, atentando para o ambiente em que os direitos são possibilitados, negociados ou negados”, argumenta Roger Raupp.

Por isso, o juiz federal sublinha a importância da laicidade como garantidora dos direitos sociais. Nos últimos anos, o Brasil tem assistido ao crescimento de setores religiosos dogmáticos e radicais nos espaços políticos. Uma série de medidas e leis já foram prejudicadas por pressão desses setores. Materiais anti-homofobia e campanhas de prevenção ao HIV/Aids foram suspensos pelo governo federal, que tem cedido a tais setores em nome da governabilidade. “A laicidade precisa ser encarada como princípio organizador da democracia brasileira. Os episódios de pressão contrária à atuação do Estado em relação ao combate ao HIV constituem um ataque à democracia”.

Em meio ao cenário conflituoso, o juiz federal Roger Raupp salienta que a história deve servir como exemplo. Isso implica a mobilização constante da sociedade, no que ele define como “democracia de alta intensidade em que a politização HIV/Aids seja contínua, para que se possa reivindicar a laicidade e combater o fundamentalismo. É uma maneira de se colocar diante dos retrocessos e ameaças que prejudicam a prevenção, o tratamento e a dignidade dos indivíduos”, concluiu Roger Raupp.