MADA (“Mulheres que Amam Demais Anônimas”) é um grupo de ajuda mútua que reúne mulheres cujas emoções as empurram para relacionamentos que elas qualificam de “destrutivos”, alimentados por uma forma de amor compreendido como “doentio” e “viciante”. É para controlar essa conduta que o grupo se constitui. No Brasil, o MADA está presente em 14 Estados e no Distrito Federal. Essa difusão levou a que também se tornasse objeto do interesse socio-antropológico. Em suas dissertações de mestrado defendidas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), as pesquisadoras Astrid Johana Pardo e Mônica Peixoto investigaram a dinâmica do MADA e registraram suas análises sobre o fenômeno.
A concepção de mulher e feminino está convencionalmente atrelada à ideia de descontrole e fragilidade emotiva. O MADA, nesse sentido, constitui um espaço em que tais pressupostos aparecem e são, por outro lado, ressignificados. O grupo é inspirado no livro da autora norte-americana Robin Norwood “Mulheres que Amam Demais”, publicado em 1985. Calcula-se que no mundo cerca de três milhões de mulheres participem do MADA, cujas reuniões são semanais. Para a antropóloga Astrid Johana Pardo (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/UERJ), que realizou um estudo etnográfico do MADA, o ideário do grupo aceita os padrões normativos de gênero e tenta reproduzi-los. “Por exemplo, faz parte do ‘programa de recuperação tornar-se mais ‘feminina’, aspecto que se pratica através do uso de acessórios de cor rosa ou lilás para a arrumação da sala [dos encontros] e na fabricação da propaganda do grupo”, destaca Astrid Johana.
O livro de Robin Norwood traz uma leitura tradicional do gênero, destaca a psicóloga Mônica Peixoto (Instituto de Medicina Social), que também realizou pesquisa sobre o MADA. “O livro pontua que as mulheres têm maior tendência a desenvolver o ‘amar demais’, enquanto os homens seriam mais propensos à ‘compulsão pelo trabalho’. Fica claro, portanto, o quanto a obra literária emprega as noções culturais de gênero encontradas nas sociedades ocidentais modernas, onde as mulheres são associadas ao excesso de sentimentos e os homens, à racionalidade”, afirma Mônica Peixoto.
Apesar de reforçar certas concepções, o MADA traz uma linguagem que desafia determinadas marcas do cotidiano, como aquelas que contrapõem um modelo de vida tradicional e outro igualitário. De acordo com Mônica Peixoto, é frequente entre as participantes do MADA o incômodo com uma posição de “agradadora” do parceiro. Este incômodo representa, para Mônica, o questionamento do modelo de vida tradicional, onde a mulher é compreendida como uma extensão do marido, sendo, para tanto, socialmente designada para “agradá-lo”. A reboque do movimento de contracultura e do feminismo, as relações de gênero e a estrutura clássica de família patriarcal passaram a ser contestados, sobretudo na segunda metade do século XX. Assim, servir ao marido implica subordinação, o que contraria o modelo igualitário moderno, no qual as funções do casal são divididas e o homem e a mulher se ocupam, igualmente, de cuidar dos filhos e da casa. Nesse sentido, ser dependente emocionalmente de um homem vai na contramão do ideal igualitário. Além disso, destaca Mônica Peixoto, “outras características da ‘mulher que ama demais’, tais como ‘baixa autoestima’ e perda da identidade na fusão com o parceiro, remetem à ideia de fraqueza moral e descrevem uma mulher desvalorizada e dependente, representação condizente com o papel tradicional de esposa dedicada, dona de casa e mãe. Sendo assim, o ‘amar demais’ evidencia um conflito nas relações entre os gêneros pelo viés da posição da mulher”, argumenta a pesquisadora.
Amor romântico e medicalização
O amor vivido como um fardo por essas mulheres contrasta com a imagem de amor romântico tão massificado no mundo contemporâneo. Em linhas gerais, o amor está associado historicamente à figura da mulher. A vinculação com outros ideais, como a emoção, a maternidade e a responsabilidade pelo lar, também é fruto de um processo histórico que vem desde o Renascimento e formula uma série de representações em torno da ideia de “mulher”. “O amor romântico tornou-se totalmente feminilizado”, afirma Astrid Johana.
Além disso, na cultura contemporânea, o amor consolidou-se como sinônimo de prazer e felicidade. Nesse sentido, as relações que não resultam nesses sentimentos são vistas como descartáveis. É nesse contexto que ‘as Madas’ rompem tal concepção de conjugalidade, pois insistem em relacionamentos que trazem sofrimento. O livro de Robin Norwood apresenta uma lista de sinais e sintomas para “o amar demais”. E lança as bases para que o discurso médico seja convocado para lidar com o fenômeno. “As formulações de Norwood são utilizadas como conhecimento especializado para fundamentar a temática, sem a devida problematização da sua característica de autoajuda”, avalia Mônica Peixoto.
Nesse cenário, Mônica Peixoto identifica que pesquisadores e profissionais da saúde têm se dedicado a categorizar o “amor patológico” como doença e a propor seu diagnóstico e tratamento. Também tem se observado a formação de profissionais do campo “psi” capacitados para diagnosticar tal “transtorno”. Da mesma forma, serviços especializados já são oferecidos em São Paulo, na Universidade de São Paulo (USP), e no Rio de Janeiro, na Santa Casa de Misericórdia, embora a comunidade científica não tenha definido o “amor patológico” como diagnóstico oficial. “Assim, o ‘amar demais’ vem sendo promovido como ‘doença’ tanto pelo campo científico, onde não há um consenso em torno do assunto, quanto pelas participantes do grupo ‘mulheres que amam demais anônimas’, orientadas pela literatura de autoajuda de Norwood. Portanto, o processo de medicalização envolve uma interação complexa de diversos atores sociais”, observa Mônica Peixoto.
Na dinâmica do MADA, conforme observa Astrid Johana, a construção do sujeito mulher passa pela lógica do controle, de uma perspectiva individualizada. O “amar demais” é visto como um rompimento do ideal estético de amor romântico, o que exige que haja uma reação das mulheres contra tal situação, vista como “doentia”, por meio de uma “economia dos vínculos sociais”. “Assim, as mulheres são condicionadas a práticas de autocontrole constante. Há uma ‘racionalização das emoções’, na medida em que se pensa quando se deve ‘investir’ num relacionamento, o que na maioria das vezes está determinado pelo tempo e pelo dinheiro”, afirma Astrid.
A discussão do MADA, para ambas as pesquisadoras, destaca como as formas de regulação se cruzam e mesclam aspectos morais e médicos. Conforme lembra Mônica Peixoto, a concepção do “amar demais” se apresenta ora como “doença”, ora como “vício”. “O entendimento como ‘vício’ está no terreno da moral. Ao mesmo tempo, a interpretação como ‘doença’ se apresenta como desafio aos padrões classificatórios, fazendo dela uma ‘doença’ suis generis. Desta forma, o fenômeno MADA é ambíguo e parece se mover no meio-fio entre o moral e o psicológico/médico. Essa ambiguidade também aparece no discurso das entrevistadas. Fica evidente a existência de um discurso medicalizado, identificado através do uso de terminologias médicas. Todavia, o entendimento de que fatores de contexto familiar causam o ‘amar demais’ é um importante argumento para sua leitura como construção social”, argumenta Mônica.
Astrid Johana Pardo faz leitura semelhante, apontando como as dimensões moral e médica se entrelaçam no percurso da história. “Segundo Foucault, a medicalização do século XIX inicia um processo de deslocamento de diferentes aspectos da vida cotidiana, como a sexualidade e os estados emocionais, da esfera moral para o âmbito da saúde. Pode-se, inclusive, afirmar que a medicina vai se forjar como uma nova autoridade moral, que julga o certo e o errado, que dissolve o controle da moral por parte da igreja deslocando-o para o campo dos saberes como a medicina e as disciplinas psi (psicologia, psiquiatria, psicanálise). Pode-se afirmar que tanto a categoria ‘vício’ quanto a categoria ‘doença’ no contexto do MADA cumprem a mesma função com relação a julgamento moral”, conclui Astrid.
A compreensão aprofundada do ponto de vista das ‘mulheres que amam demais’, para quem transitar pelo grupo, é ao mesmo tempo se sujeitar ao seu papel feminino e se liberar das amarras do amor romântico, como mostram as pesquisas de Astrid e de Mônica, que permitem perceber aspectos paradoxais do fenômeno da autoajuda e da medicalização da vida cotidiana.