Em breve passagem pelo Rio de Janeiro, o sociólogo norte-americano John Gagnon autografou o livro Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade (CLAM/Editora Garamond), e fez duas conferências: a primeira, no Museu da República, na noite de quarta-feira, 26, na qual falou sobre sua obra, em mesa-redonda composta pela antropóloga Maria Luiza Heilborn, coordenadora do CLAM, e do psico-sociólogo Alain Giami, diretor de pesquisas no Institut Nacional de Santé et Recherches Médicales, em Paris. A segunda apresentação de Gagnon aconteceu na quinta-feira, 27, organizada em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS), na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), onde falou sobre sexualidade, desejo e risco em tempos de Aids.
Para o sociólogo, comportamento sexual descreve o conjunto de práticas corporais desempenhadas por humanos e não-humanos, enquanto conduta sexual seria o significado que estas práticas têm para o indivíduo que as realiza e para as culturas e sociedades a que eles pertencem. “A conduta sexual é um comportamento avaliado e compreendido pelos atores em situações sociais, definido pela história e pela cultura”, disse ele.
O que tornou a obra de John Gagnon inovadora, no final dos anos 60, foi o fato de o sociólogo chamar a atenção para o que não é sexual na determinação ou produção de condutas sexuais. “A vida social é puramente artificial. Somos responsáveis pela maneira como vivemos e isto não é culpa da natureza”, disse ele, em crítica à idéia de que a natureza pode explicar práticas e condutas sociais e sexuais. “As pessoas tendem a dar muita importância à sexualidade, mas ela não é algo especial. É como conseguir um emprego”, afirmou.
Maria Luiza chamou a atenção para a importância da obra de Gagnon no estudo da sexualidade. “A idéia que ele apresenta nos artigos que compõem Uma interpretação do desejo é justamente a de se afastar do enfoque de comportamento sexual no que ele tem de mais natural, isto é, se afastar da hipótese de que esse comportamento seria algo que todos os seres humanos compartilhariam da mesma maneira. Por isso, ele desconstrói a idéia de comportamento e aposta na idéia de conduta”, lembrou a antropóloga. “Gagnon compreende a vida social como um artifício, produto de relações humanas e, nesse sentido, a sexualidade também o é”, explicou ela.
Especialista na obra de Gagnon, Alain Giami lembrou ao público que, na concepção sociológica da sexualidade de John Gagnon, a natureza não existe. “Para Gagnon, a natureza é construção social”, disse o pesquisador francês. O livro Uma interpretação do desejo, que está sendo lançado pelo CLAM e pela Editora Garamond, reúne artigos escritos a partir de 1973 até o ano 2000, e mostra como o sociólogo criou sua “sociologia da sexualidade”, termo pelo qual sua proposta teórica ficou conhecida.
Na contramão dos discursos “naturalistas” ou “biologizantes”, a idéia fundamental na obra de Gagnon é que a sexualidade não é impulsiva e sim socialmente construída. “A cultura não está em conflito com a natureza na esfera da sexualidade”, observou ele. “A cultura permite explicitar quem somos. Já a sexualidade não é impulsiva, ao contrário do que se convencionou pensar. Ela é adquirida. Esses impulsos são, na verdade, uma linguagem teatral, não a verdade sobre a sexualidade”, explicou.
Gagnon lembrou que acabar com a idéia de uma biologia que explicasse a conduta humana era justamente seu projeto ao lançar em 1973 o livro Sexual Conduct, escrito em parceria com o colega e também sociólogo William Simon. “Falar, nos Estados Unidos dos anos 60, de uma natureza biológica de mulheres ou de homossexuais era uma maneira de torná-los diferentes, como se fosse algo imutável e natural. Nossa idéia era eliminar a importância da biologia”, disse.
Foucault e Freud
Muitos estudiosos questionam hoje em dia se o construcionismo social em relação à sexualidade foi inventado pelo francês Michel Foucault ou pelo americano John Gagnon – ambas as idéias apareceram quase ao mesmo tempo em meados dos anos 60 na França e nos Estados Unidos. As diferenças entre os dois foram apontadas por Giami: “Foucault trabalhou sobre o século XIX e Gagnon se deteve no século XX. Foucault trabalhou mais os desvios sexuais e Gagnon a sexualidade em geral, a sexualidade de todo mundo. Seu propósito era compreender a sexualidade considerada como algo banal, e também mostrar que ela não é inscrita na natureza”, disse.
Gagnon descartou as semelhanças: “Foucault dedicou seu tempo a estudar os desviantes sexuais. Em meu trabalho tento desconstruir a idéia de desviantes sexuais. Meu projeto era fazer com que as pessoas esquecessem a linguagem do século XIX e não mais tratassem pessoas com uma sexualidade não convencional como seres especiais. Nesse sentido minha idéia era “normalizar” a sexualidade, e não explicá-la na linguagem moral ou baseada na Psicologia”, afirmou.
O sociólogo norte-americano também explicou a razão pelo desapego às idéias de Freud. “Eu nuca aceitei a explicação freudiana sobre a homossexualidade. Daí vem minha absoluta falta de apego emocional ao Freud. Para mim, a homossexualidade é um gosto adquirido”.
Gagnon acredita, entretanto, que a concepção de desviantes sexuais vai continuar a existir, a despeito das diferentes abordagens surgidas. “Qualquer psicólogo ou psiquiatra que considere a homossexualidade como doença ou pecado continuará a pensar desta maneira, apesar dos livros que escrevi. Não importa se um sociólogo americano diga que não é bem assim”, finalizou.
Sexualidade, desejo e risco em tempos de Aids
Este foi o tema da conferência ministrada por Gagnon, promovida pelo CLAM em parceria com o Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPCIS), na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) para um público composto majoritariamente por estudantes, em boa parte alunos de graduação de cursos de Medicina de diversas universidades. O sociólogo correlacionou sua carreira com a abordagem da temática da Aids nos estudos da sexualidade. Ele lembrou que, em 1981, ano do início da epidemia da doença, passou a integrar comitês de pesquisa em HIV/Aids. “Ainda não sabíamos muito sobre sexualidade. A pergunta era: Qual seria a situação sexual nos Estados Unidos da época?”, disse.
Gagnon chamou a atenção para a dimensão política da epidemia – 1981 era também o ano da eleição de Ronald Reagan para presidente e do surgimento dos movimentos sociais (feminismo, movimento gay, e movimento pelos direitos reprodutivos e pró-aborto) no país.
“A epidemia foi muito mais um fenômeno político do que de saúde”, observou o sociólogo, lembrando serem três os grupos de risco de então: os homens homossexuais, os usuários de drogas injetáveis (e suas parceiras e crianças) e as pessoas que recebiam sangue através de doação. “A política americana para a Aids passou a combater não a droga, mas os usuários de drogas, em sua maioria, latinos. A Campanha anti-drogas logo se transformou numa campanha anti-minorias”.
Nesse cenário, lembrou Gagnon, ficou claro que, com o início da epidemia, o país precisava de pesquisas em sexualidade. “A pesquisa em sexualidade, no início da epidemia da Aids, voltada para combater a doença, tinha uma visão muito estreita. Não falava em masturbação, por exemplo, já que a prática não oferecia riscos de contaminação”, disse. “Logo percebemos que, para entender a Aids, era necessário entender a sexualidade e fazer ver que a maneira de entender a sexualidade tem a ver com saúde, prazer e cidadania, a despeito da visão moralista e conservadora de enxergá-la. Afinal, a epidemia era um problema de saúde ou de moral?”, questionou.
A relação entre sexo e risco, enfocada pelas pesquisas de então, era centrada numa psicologia individual que tentava explicar o comportamento do indivíduo, através de perguntas do tipo Você está ou não diminuindo o comportamento de risco? “A relação sexo e risco é muito mais complexa do que evitar comportamentos de risco”.
Para Gagnon, o risco está associado a uma conduta individual. “As pessoas correm riscos, ele está associado à atividade sexual e sua dimensão é tão forte quanto a sensação de um motorista que dirige em alta velocidade. Ele sabe que aquilo é arriscado e perigoso, mas lhe dá prazer”, comparou.
Segundo ele, essa concepção de individualidade do ser humano se reflete na maneira de prevenir a Aids. “Nada mais errado do que pensar que existe apenas uma epidemia de Aids. A Aids não é uma única epidemia”, afirmou, em crítica à política de prevenção norte-americana.
“Não é uma política geral que vai resolver o problema”, disse, lembrando que, dos anos 80 para cá, as políticas de prevenção mais eficazes foram aquelas formuladas por grupos comunitários, comunidades gays, por exemplo. “Trata-se, antes de mais nada, de conhecer as especificidades locais”.
Gagnon observou que a visão da Aids como um problema moral e não de saúde deixou de prevalecer apenas no cenário americano e foi transportada para o mundo. Segundo ele, essa “exportação”, do ponto de vista norte-americano, tem gerado problemas.
Um exemplo é o caso brasileiro. Em 2005, a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID) entrou em choque com o governo brasileiro ao tentar pressionar o Brasil a adotar uma política de prevenção ao HIV/Aids com foco na abstinência. Através de um documento, a USAID justificava o orçamento de ações referentes ao HIV/Aids para 2005/2006, onde se previa ações de prevenção para adolescentes com foco na política do ABC (abstinência, fidelidade e uso de preservativo), política contrária às premissas adotadas pelo Brasil, centrada principalmente no uso de preservativos. No mesmo ano, o governo brasileiro se recusou a receber US$ 48 milhões dos Estados Unidos para financiamento de projetos de prevenção ao HIV/Aids, em reação à imposição da USAID de que ONGs brasileiras só receberiam os recursos caso se opusessem ao trabalho sexual.
“É perigoso pensar que a solução virá dos Estados Unidos ou da Europa, onde se concentra o maior número de Prêmios Nobel e mais tecnologia. É no 3º mundo que estão as pessoas que morrem da doença. A Aids é um dos elementos da globalização”, afirmou Gagnon. Para ele, os países mais bem-sucedidos no combate à doença são aqueles que recusaram a ajuda do primeiro mundo e apostaram em soluções locais.