“Os princípios democráticos existem, mas a prática política não os acompanha. A democracia não é democrática”, disse a filósofa e escritora feminista Françoise Collin na conferência Práxis feminista e democracia, ocorrida no Museu da República, no Rio de Janeiro. Para discutir a relação entre democracia e o sujeito feminino, Françoise fez uma leitura histórica, debruçada sobre dois outros movimentos, vistos por ela como duas grandes utopias – a revolução francesa e o marxismo.
“Na revolução de 1789, a tomada do poder do povo pelo povo só dizia respeito à metade do povo – os homens. O povo é o povo masculino”, afirmou. “Dos três ideais da revolução – liberdade, fraternidade e igualdade – só os dois primeiros eram evidentes. Como analisou Carole Pateman, o patriarcal foi substituído pelo fratriarcal, uma sociedade de irmãos, onde as irmãs são esquecidas”.
Segundo ela, mesmo na Atenas de Sócrates só os homens discutiam a democracia ao redor do Parthenon. “São imagens que dizem o que viria a ser a democracia nas eras seguintes. A democracia esquece as mulheres neste primeiro momento, elas não são consideradas cidadãs totais”, observou ela, lembrando que, na França, as mulheres só adquiriram o direito ao voto em 1944, dez anos depois deste direito ter sido conquistado no Brasil.
A escritora, que em 1973 fundou a revista Cahier du Grif, contou pertencer a uma geração seduzida pelas idéias marxistas. “O trabalho de Marx consiste na fraqueza da democracia. Ele buscava uma causa que, se encontrada, resolveria o problema do advento da democracia. Uma chave única que nos levaria a uma felicidade absoluta. Essa busca já foi desmentida hoje em dia. Não existe regime que garanta um paraíso terrestre, como proposto pelo marxismo”.
Para ela, esta é a característica específica do feminismo, o que o diferencia dos demais movimentos revolucionários. “Não buscamos uma chave única. Nossa luta é uma luta polivalente, que travamos em todos os níveis. Praticamos uma política que eu chamaria de pós-moderna. O feminismo corrige e redefine a democracia, contestando a realidade dela em diversas áreas”.
O movimento, como a história mostra, apesar de nascido de uma raiz única – a luta contra a estrutura patriarcal de poder – atua de maneira plural, com abordagens transversais. “Trabalhamos no pluralismo, atuando na questão da paridade política, do acesso das mulheres a todas as profissões, no combate aos salários desiguais, na questão da sexualidade”, ressaltou.
Outra especificidade do movimento é a dificuldade em defini-lo. “O feminismo é um movimento revolucionário e subversivo, sem modelos, sem dogma, sem doutrina, mas que funciona de forma extremamente criadora. Nós inventamos a nossa doutrina. Também não temos chefe, nenhuma dentre nós detém a verdade ou o poder. Simone de Beauvoir não é o símbolo do feminismo, não existe um beauvoirismo. Na sociedade, a maioria das pessoas tem uma imagem unívoca, dogmática do feminismo”, observou Collin.
Segundo a filósofa, o marxismo talvez tenha sido o último grande sonho da humanidade. “O fracasso do comunismo e do totalitarismo nazista encerraram este sonho de controlar o todo. O feminismo não pretende resolver o todo. Ele se debruça sobre uma injustiça que atravessa os séculos em todas as sociedades”. Ela lembrou, entretanto, da importância dessas tentativas para que o feminismo desse certo. “As utopias são interessantes porque representam uma abertura. Na base do primeiro movimento feminista estavam mulheres decepcionadas com o marxismo e o maoísmo”.
Françoise Collin terminou sua exposição refletindo sobre a relação público- privado. “As mulheres sempre foram relegadas à esfera privada, doméstica, não pública”. Para ela, hoje em dia, apesar de serem minoritárias na política, a representatividade feminina na área constitui um avanço. “O feminismo realizou um trabalho que fez com que as mulheres se manifestassem na esfera pública”.
Segundo Collin, ainda há o que ser feito. “A democracia formal não basta. É preciso pensar numa democracia real”.
A conferência de Françoise Collin, promovida pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM) e pela Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), deu início às comemorações pelos 30 anos ininterruptos de feminismo no Brasil. O evento se encerrou com um coquetel de confraternização, durante o qual foram discutidas idéias sobre a formulação de uma campanha nacional de celebração do movimento feminista, que incluirá desde adesivos de automóveis e camisetas até a organização de outros eventos ao longo do ano. Quem esteve presente pôde sugerir as frases candidatas a slogan oficial da campanha. A votação poderá ser feita através do site do CLAM.
O debate
Além da conferência, o Museu da República do Rio de Janeiro também foi palco da mesa de debates “Feminismo: história e futuro”, cujo objetivo era refletir sobre os significados da luta do feminismo brasileiro nesses trinta anos e as perspectivas futuras do movimento no país. Dela fizeram parte quatro feministas de diferentes áreas de atuação.
Leila Linhares (Cepia)
A advogada falou da trajetória do movimento feminista no Brasil, desde a reunião na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro, em 1975 – evento que marcou o início da nova onda de feminismo no país e do qual ela foi uma das organizadoras – até os dias atuais, quando ainda se discute temas como a legalização do aborto. “A reunião da ABI deve ser encarada não como o surgimento do feminismo, mas sim da prática feminista. Na década de 1980 esse movimento tinha condições de participar do processo de redemocratização, da luta operária e da questão das trabalhadoras rurais. Essa capacidade de movimentação do feminismo é muito importante. Nesta mesma década, lutamos pela descriminalização do aborto. Apostamos nossas fichas em incluir esse direito da mulher na Constituição e não conseguimos. Mas a Igreja Católica também não conseguiu criminalizar totalmente a prática do aborto. Então, podemos dizer que as derrotas do feminismo não nos derrotou”.
Além de Leila, a Semana de Pesquisa sobre o Papel e o Comportamento da Mulher Brasileira, realizada na ABI em 1975, teve como organizadoras a psicóloga Mariska Ribeiro. as historiadoras Maria Luiza Heilborn e Branca Moreira Alves, a socióloga Jacqueline Pitanguy, as jornalistas Diva Mucio e Elice Munerato, e a escritora Miriam Campello, dentre outras.
Clique aqui e veja a carta final da Semana de Pesquisa (arquivo de Leila Linhares Barsted)
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Hildete Pereira de Melo (Universidade Federal Fluminense)
A professora lembrou de três motes de luta nesses trinta anos: “Nosso corpo nos pertence”, “Trabalho igual, salário igual” e “O privado é político”. “Aborto e violência são os dois eixos que organizaram a segunda onda feminista no Brasil. O último eixo trazido a debate através do assassinato de Ângela Diniz pelo namorado Doca Street”, lembrou Hildete, que também falou das dificuldades enfrentadas pelas feministas em divulgar as comemorações do 8 de março – dia internacional da mulher – nos principais jornais na década de 1970. “Hoje em dia, comemorar a data está bem mais fácil”.
Jurema Werneck (Crioula)
A exposição da ativista do movimento de mulheres negras foi provocativa. “Como o movimento das mulheres negras vai encontrar e dialogar com o feminismo? Nosso movimento tem bem mais que trinta anos”, disse ela. Através de uma leitura mitológica, Jurema citou as histórias das iabás, figuras femininas do candomblé, e de como elas conseguem igualar-se aos orixás masculinos. “Nanã, Oxum, Iansã e Iemanjá representam a feminilidade em sua forma atual, presente hoje no Brasil”. Segundo ela, as mulheres negras só viriam a dialogar e fazer parte da segunda onda feminista na década de 1980.
Giovana Xavier (Redeh)
Segundo a historiadora, o grande diferenciador do feminismo das mulheres brancas e das mulheres negras é a luta contra a sociedade patriarcal. “Esse é um aspecto que nos separa do movimento de mulheres tradicional, clássico”, afirmou. Para ela, no entanto, é hora de juntar esforços. “O movimento feminista tem uma grande vitória, que é conseguir abarcar a pluralidade. Mas por mais que tenhamos avanços, a situação ainda não está boa. A participação das mulheres negras nas universidades ainda permanece nula e o seu lugar dentro da sociedade brasileira é específico, nesta sociedade racista e sexista”.
Maria Luiza Heilborn (CLAM/IMS/Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Para a antropóloga, mediadora do debate, o avanço foi significativo. Refletindo sobre a questão do unilateralismo do movimento das mulheres negras, levantada por Jurema Werneck, Malu Heilborn ponderou: “O feminismo é um movimento com um compromisso inalienável com a justiça social, mas que tem momentos de exclusão. Todas nós somos sujeitos sociais, então o preconceito existe, existem tensões dentro do próprio movimento, que é plural. Apesar das pautas diferenciadas e demandas específicas, podemos caminhar numa determinada direção”.