CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Autonomia ainda sob tutela

Nos últimos tempos, o Brasil tem assistido a uma leva de projetos de lei que tem como objetivo restringir a autonomia reprodutiva das mulheres, especialmente na questão do aborto, que neste 28 de setembro é lembrado através de mais um Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe. No Congresso Nacional, tramitam 30 projetos de lei com o propósito de restringir as discussões e a viabilização legal da prática, cuja clandestinidade impõe severas conseqüências de saúde especialmente para as mulheres mais pobres. A despenalização e a conseqüente regulamentação para além dos casos previstos por lei (estupro e risco de morte da gestante), estão cada vez mais obstacularizadas pela forma como o debate sobre o assunto tem se configurado, repercutindo nas esferas institucionais e no âmbito social.

A discussão em torno do tema do aborto no Brasil não é recente. Nos anos 1970, quando os primeiros debates foram tornados públicos, as formulações feministas questionaram a ilegalidade da prática. Pesquisas foram publicadas sobre o tema e, em 1983, foi lançado o Programa Integral de Saúde da Mulher (PAISM), que mencionava o aborto como um grave problema de saúde pública.

Em meados da década de 1980, após o fim do regime militar, o país passou a debater uma nova Constituição que chancelaria o recomeço de um modelo democrático. O aborto, naquele contexto, foi um tema que desatou uma disputa sobre como o texto constitucional seria formulado. De um lado, o Vaticano, opositor de medidas favoráveis à despenalização, pressionando os constituintes para que o direito à vida desde a concepção fosse inserido no novo texto, o que impossibilitaria avanços na discussão sobre o tema. Do outro lado, o movimento feminista, empreendendo um esforço de advocacy a favor dos direitos das mulheres.

“Os constituintes tiveram a sabedoria de não incluir nem uma coisa nem outra no texto final, com o argumento correto de que o aborto não é matéria constitucional e que o direito à vida não tem o sentido absoluto que a proposição de vida desde a concepção supõe”, afirma Sonia Correa, pesquisadora associada da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (Abia) e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW).

O Brasil, ao se esquivar dessa questão, percorreu o caminho inverso ao de outros países, que, nos anos 1980, ao reformularem suas Constituições, incluíram, sob forte pressão do Vaticano, o direito à vida desde a concepção em suas Cartas Magnas. A partir de então, com a aprovação da Constituição de 1988, o Brasil tornou-se alvo da estratégia dos setores anti-aborto internacionais.

A estratégia dos grupos conservadores, aponta Magaly Pazello, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa Religião, Gênero, Ação Social e Política da UFRJ, foi tornar o aborto uma questão de trincheira, um tema que se tornou bandeira para mobilizar os que são contra. “Sendo uma palavra mobilizadora, o aborto sai da esfera privada. Ao mesmo tempo em que ele é transformado em uma bandeira, o aborto é descontextualizado, por exemplo, do âmbito da saúde sexual e reprodutiva. Há uma operação de deslocamento, por exemplo, em relação ao caso da anencefalia, que será em breve analisado pelo Supremo Tribunal Federal. Os grupos conservadores tornam público e politizam uma decisão que deveria ficar restrita à relação entre o médico e a gestante. Essa operação de tutela sobre o tema se traduz em um discurso pesado, que trabalha com interpretações essencialistas e absolutas sobre o que é vida”, explica Magaly Pazello.

As Conferências internacionais e a resposta conservadora

Nos anos de 1990, o Brasil acompanhou as resoluções tomadas no âmbito internacional. Durante as Conferências do Cairo (1994) e de Pequim (1995), foram estabelecidos parâmetros de defesa e promoção dos direitos e da saúde reprodutiva. No Cairo, ficou acordado que os países signatários deveriam zelar pela liberdade individual das mulheres de decidirem sobre a reprodução, sem coerção, violência e discriminação. O aborto, nesse sentido, ganhou legitimidade internacional como um tema a ser tratado em termos de saúde.

Ao acolher essas decisões em nível internacional, o Brasil distanciou-se do Vaticano, que desde a década de 1980 tornou-se um observador permanente das discussões nas Nações Unidas.

“No momento em que o Brasil se distancia do Vaticano, e lidera, junto com o México, uma espécie de deslocamento do conjunto da América Latina em relação a proposições como igualdade de gênero e reconhecimento do aborto como problema de saúde, torna-se um alvo prioritário do Vaticano”, observa Sonia Correa.

Não à toa, logo após a Conferência de Pequim, estava em curso uma reforma constitucional do governo Fernando Henrique que abriu o capítulo da economia para as privatizações. Isto abriu um flanco para que os setores conservadores aproveitassem a oportunidade para apresentar uma proposta de emenda constitucional de introdução do direito à vida desde a concepção, que não tinha sido incorporada no texto de 1988.

Enquanto este projeto de emenda constitucional para incluir o direito à vida desde a concepção na Constituição continua em tramitação, iniciativas com o objetivo de restringir a legalização e a regulamentação do aborto têm sido propostas, com a apresentação de diversos projetos de lei. A estratégia foi ganhando corpo por meio do uso das casas legislativas e dos tribunais como espaço de proposição da agenda anti-aborto. No texto Los Roles Políticos de la Religión. Gênero y Sexualidad más allá del Secularismo, que integra o livro “En nombre de la vida”, da jornalista argentina Marta Vassalo, o cientista social Juan Marco Vaggione destaca a elevada legitimidade social da Igreja Católica na América Latina que a qualifica como um importante ator político.

As religiões, afirma Vaggione no artigo, têm resistido ao papel marginal que a modernidade previu ao estipular a laicidade como regra política. A separação formal do Estado e da Igreja não suspendeu o papel público das religiões nas sociedades contemporâneas. A própria Igreja Católica, em um movimento conhecido como “retorno do religioso”, reorientou sua atuação com o intuito de recuperar a hegemonia sobre a moral sexual diante das mudanças provocadas pelos movimentos feministas e das minorias sexuais.

A operação empreendida, conforme observa o sociólogo argentino, consistiu em dois movimentos estratégicos, que contribuem para explicar a atuação dos movimentos religiosos no Brasil em relação ao aborto: de um lado, tradições religiosas divergentes se unem como contraponto às demandas sexuais e reprodutivas das mulheres, dando origem a ONGs com objetivo de ocupar a sociedade civil como arena de reunião e canalização das demandas conservadoras. Um exemplo notório é a Human Life International, instituição norte-americana “pró-vida”, com atuação na América Latina. Do outro lado, ocorre uma mudança no discurso, que passa por uma operação de secularização, isto é, os argumentos são despidos de seus elementos religiosos e morais e passam a se basear em argumentos científicos. O discurso é o da razão, com a finalidade de dotá-lo de status para o debate político. Nessa operação, são utilizadas pesquisas para embasar as demandas conservadoras. Além disso, a Justiça também se torna palco para que valores tradicionais sejam defendidos.

A defesa da agenda conservadora nesses termos confunde as fronteiras entre religião e ciência. Tal mudança de discurso, no entanto, ressalta Vaggione, não significa uma posição mais aberta à negociação e ao debate. É apenas uma estratégia, ressalta o sociólogo argentino, que tem como um dos objetivos o controle do corpo da mulher para regular o corpo social.

No Brasil, afirma Sonia Correa, o retorno do religioso ganhou terreno pela via evangélica, interligada com movimentos dos Estados Unidos, e pela via católica, por meio do papado restaurador de João Paulo II. A secularização da sociedade tornou-se alvo de questionamento. “Não somos uma sociedade com tradição de respeito à liberdade e à autonomia. Pelo contrário, somos uma sociedade com traços muito fortes de autoritarismo. Não só estatal, mas o autoritarismo social, patriarcal, do controle da vida dos outros. Esses elementos vão se juntando e produzem um cenário inquietante, especialmente em relação a questões sexuais e reprodutivas, como o aborto”, ressalta a pesquisadora.

Panorama legislativo

De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto, da Universidade de Brasília, primeira pesquisa nacional domiciliar sobre o tema, 15% das brasileiras entre 18 e 39 anos já fizeram aborto – o que significa uma em cada sete ou cerca de 5,3 milhões de mulheres. A pesquisa explicita a ineficácia da restritiva legislação brasileira atualmente em vigor. Apesar disso, atualmente não existem projetos de lei propondo a legalização do aborto tramitando na Câmara dos Deputados e, nos últimos anos, a apresentação de projetos regressivos tem aumentado. O Estatuto do Nascituro, que tramita no Congresso, é um exemplo notório da atuação conservadora. A iniciativa confere natureza humana ao embrião desde a concepção. Na prática, caso aprovado, inviabilizaria a legalização do aborto em qualquer circunstância. Além de ameaçar as pesquisas com células-tronco, liberadas pelo STF em 2008.

Segundo a advogada Maíra Fernandes, da OAB-RJ, o Estatuto do Nascituro “ignora direitos fundamentais das mulheres e legitima a violência contra as mesmas, ao propor que elas sejam ’pagas’ pelo Estado para terem um filho gerado por estupro, por exemplo”, critica. “Este projeto contraria o ordenamento jurídico vigente, ao atribuir direitos fundamentais ao embrião (mesmo que ainda não esteja em gestação), partindo de uma concepção equivocada de que o nascituro e o embrião humanos teriam o mesmo status jurídico e moral de pessoas nascidas e vivas”, completa.

De acordo com Maíra Fernandes, não é papel do Legislativo, ou mesmo do Judiciário, afirmar quando se inicia a vida humana. “O que importa saber é, na verdade, qual o grau de proteção jurídica que se dará a essa ‘vida’, antes ou após o nascimento. No caso do aborto, acredito que há um caso de ponderação de direitos. De um lado, está o direito do feto à vida e do outro os direitos da mulher à privacidade, à igualdade, à liberdade, à autonomia sexual e reprodutiva, à saúde física e mental, entre tantos outros direitos protegidos constitucionalmente. Embora a Constituição proteja o direito à vida, está claro que este não é um direito absoluto”, argumenta a presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB-RJ.

No plano nacional, além do Estatuto do Nascituro, há projetos que pretendem caracterizar o aborto como crime hediondo. Em casas legislativas estaduais e municipais, projetos regressivos também têm proliferado. Na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), tramita o Programa Estadual de Prevenção ao Aborto e Abandono do Incapaz, proposto por parlamentares ligados a setores religiosos. O projeto prevê que, em casos “de estupro, gravidez indesejada ou acidental, e em que a mulher não dispor de meios e apoio para uma gestação segura”, caberá ao poder público oferecer os meios para que a mulher tenha o bebê. O projeto lança mão de um discurso científico, afirmando, por exemplo, que documentos federais, como a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (2004-2007) evidenciam a gravidade dos riscos associados ao abortamento. O aborto, nesse sentido, é revestido do argumento da saúde pública não para ser ponderado, mas sim para ser rechaçado.

De acordo com Magaly Pazello (UFRJ), a tática é clara: “Os conservadores têm buscado tornar a questão do aborto extremamente pública e política. O que deveria ser uma questão privada e íntima acaba sendo tutelada. Nesse sentido, destitui-se a mulher de sua autonomia reprodutiva, uma vez que são os outros quem falam e decidem por ela”.

Diante desse projeto, a Comissão de Bioética e Biodireito (CBB) da OAB-RJ apresentará parecer na Alerj contrário à iniciativa.

No final de julho, na cidade de Poá, no interior do estado de São Paulo, foi aprovado projeto de lei que confere o direito à vida desde a concepção. Segundo Sonia Correa, a iniciativa é uma tentativa de transportar para o nível municipal o que teoricamente é uma questão federal. “O grande problema é a repercussão desse fato, que pode servir de exemplo para que outras ações semelhantes sejam propostas”, alerta.

No início deste ano, no entanto, a lei 12.403/2011 promoveu uma mudança no Código Penal brasileiro. A prisão preventiva passou a ser aplicada para crimes com pena máxima superior a 4 anos, o que tem implicações para a questão do aborto, cuja pena prevista vai até 3 anos. Para Maíra Fernandes, da OAB, a lei veio em boa hora. “A lei reforça aquilo que deveria ser evidente a qualquer operador do Direito: a ideia de que a prisão é a exceção, e não a regra. Há relatos horríveis de mulheres que procuraram o serviço público de saúde com quadro grave de aborto mal sucedido, tendo que ser submetida às pressas a procedimentos de curetagem e tudo ser feito diante de policiais, com a mulher algemada na maca do hospital”, argumenta.

Como se vê, o quadro legislativo brasileiro tem se mostrado regressivo no que diz respeito ao aborto. Magaly Pazello chama a atenção ainda para a moralidade que envolve o tema. “No âmbito coletivo, vemos que a maioria se expressa de forma contrária e conservadora à legalização do aborto. No âmbito privado, no entanto, realiza-se o que publicamente não se confessa ou não se defende. Há um abismo entre discursos públicos e práticas privadas. Vemos uma dissociação imensa. Enquanto as feministas tentam diminuir esse abismo, os grupos conservadores têm como único objetivo aprofundar essa distância. Dessa forma, eles conseguem votos, interferem na política e na gestão pública, minam a República em seus princípios fundadores”, explica.

Para Sonia Correa, o quadro legislativo atual não surpreende. Ela observa que os atores institucionais têm recuado em sua posição de legalização da interrupção voluntária da gravidez, por conta do temor dos efeitos eleitorais. “A discussão sobre aborto precisa ser despartidarizada. Durante a campanha presidencial de 2010, o debate eleitoral foi tomado pelo tema do aborto numa lógica de pânico moral, não de debate substantivo. Perdeu-se a oportunidade de uma discussão mais razoável sobre uma questão que pode não ser a mais importante da sociedade brasileira, mas que continua sendo uma questão social muito relevante com impactos sobre as mulheres, as famílias e as políticas públicas. A composição do Congresso também é desfavorável, pois há o uso das trajetórias eleitorais de grupos religiosos como forma de influenciar as políticas públicas e a legislação”, argumenta a pesquisadora da Abia.

Apesar de tudo, hoje o debate público sobre o aborto é mais complexo, abriga mais vozes. Em função do debate significativo nos anos 1990, houve uma pluralização das discussões, e o aborto, nos últimos anos, saiu das páginas policiais para entrar nas editorias de política. A diversificação do debate, por outro lado, contribuiu para a mobilização de grupos conservadores, e o recrudescimento dessas forças repercute na mídia..

“Diante dessa pluralidade de vozes na esfera pública, os grupos conservadores se articularam para retomar os meios de comunicação como referência. O que vemos hoje é uma oposição, os grupos conservadores conseguiram criar um clima de opostos. Mas, este não é um debate de opostos, não é ‘ser a favor ou ser contra’. É legalizar ou não o aborto, dar acesso e atenção à mulher nesta situação e permitir que ela tome uma decisão individual dentro de determinados parâmetros, pensando nas questões éticas”, afirma Magaly Pazello.

Maíra Fernandes enfatiza que o Brasil está muito atrasado nesta matéria. “Continuamos a criminalizar a interrupção voluntária da gravidez. Isso é um atraso impressionante, que não combina em nada com a projeção que o Brasil tem tido no cenário internacional. À exceção da Irlanda e da Polônia, na vasta maioria dos países europeus o aborto é permitido. Mas também em diversos países em desenvolvimento, incluindo África do Sul, Colômbia e cidade do México. Nos Estados Unidos, onde foi legalizado em 1973, praticamente cessaram as mortes e hospitalizações decorrentes de complicações pela prática do aborto”, afirma. De acordo com a advogada, a melhor maneira de enfrentar esses projetos de lei é através da discussão aberta do tema com a população, parlamentares, juízes, desembargadores e ministros dos Tribunais Superiores. “Naturalmente, precisamos apresentar projetos melhores, que respeitem a autonomia das mulheres. Além disso, não é possível que continue a se propagar um discurso tão limitado sobre a questão do aborto, que restringe a complexidade da questão à simplória pergunta ‘você é contra ou a favor?’. Discute-se o aborto de forma irresponsável e generalista. Outro aspecto importante é uma discussão séria em sociedade sobre o que significa a laicidade do Estado. Os poderes da República não podem atuar com base em convicções de fé”, conclui Maíra Fernandes.



Bibliografia

VASSALO, Marta. En nombre de la vida. Córdoba (Argentina): Católicas por el derecho a decidir, 2005.