A luta pela realização de abortos seguros na América Latina é histórica. Várias campanhas regionais se dedicam a articular a luta da mulheres latinas pela a legalização do aborto, bandeira do movimento de mulheres neste continente pobre em que os meios eficazes contracepção são, na maioria das vezes, privilégio das mulheres ricas. É dentro deste contexto que o CLAM apóia e considera fundamental a iniciativa da ministra Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, de propor a revisão da legislação punitiva sobre aborto no país.
O CLAM posiciona-se pela legalização do aborto, considerando que a interrupção voluntária da gravidez é o último recurso diante de uma gestação não prevista. Lutar por avanços na legislação sobre um tema que é socialmente controverso significa uma das estratégias políticas necessárias em um contexto em que uma onda de forças conservadoras, amplamente refratária aos direitos sexuais e reprodutivos, se afirma a favor do “direito da vida”. O argumento do direito à vida do feto obscurece o direito à vida e à liberdade da mulher. Tal defesa diz respeito sempre à uma opção e não uma imposição. A perspectiva conservadora, globalmente articulada, tem ensaiado no Brasil, por exemplo, exercer pressões no sentido de retroceder em relação aos dois permissivos aprovados: estupro, e risco de vida para a mãe. Tenta impedir ainda a criação de um terceira possibilidade: em caso de ser o feto anencefálico.
O recrudescimento das posições contra o aborto atinge em cheio as mulheres mais pobres, justamente as que recorrem aos hospitais públicos, e que são as que não terão condições de se defender em caso de processo judicial criminal. E nesse sentido agrava de modo acintoso o lamentável abismo entre as que podem ou não realizar um aborto no país.
Por reconhecer a importância do tema do aborto no debate sobre sexualidade e direitos humanos, o CLAM participa da Jornada Brasileira pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, iniciativa do movimento de mulheres que pretende estimular e organizar a mobilização nacional pelo direito ao aborto legal e seguro, apoiar projetos de lei que ampliem os permissivos legais para o aborto, contrapor-se aos projetos de lei contrários a essa prática, ampliar o debate na sociedade e ganhar aliados. O CLAM também esteve presente na Conferência Nacional das Mulheres, realizada em julho de 2004 em Brasília, fórum que teve importante contribuição na questão do aborto por anencefalia, ainda em debate no Supremo Tribunal Federal.
O quadro no continente
Estima-se que sejam realizados cerca de quatro milhões de abortos inseguros por ano no continente, 1 milhão deles somente no Brasil, com seqüelas que fazem com que o abortamento seja um dos principais fatores de mortalidade materna no país. Dados da Organização Mundial de Saúde mostram índice de 21% de mortes femininas por complicações causadas pelo aborto inseguro na América Latina. Por isso, o CLAM vem monitorando os debates sobre legalização do aborto no continente. A rejeição contra o aborto se inscreve num panorama complexo de transição demográfica presente nos diversos países da AL.
Argentina, Uruguai, Chile e Brasil apresentam já taxas de fecundidade feminina bastante baixas, próximas ao nível de reposição da população (2,1%). O quadro é bastante diverso em cada país, no que concerne aos meios em que tal transição foi alcançada. No Uruguai, encontra-se uma forte difusão do uso de métodos contraceptivos modernos, mas no Brasil, a transição foi atingida por meio de uma expressiva esterilização feminina. Soma-se a esse quadro, que viola o princípio do direito de escolha sobre como regular tamanho e espaçamento da prole, um crescente discurso neo-malthusiano, que sinaliza que os problemas de distribuição da riqueza no país podem ser resolvidos mediante a redução do números dos pobres.
Segundo esse raciocínio perverso, haveria relação direta entre criminalidade e fertilidade dos pobres no Brasil. No entanto, o fato de haver um taxa mais alta de fertilidade entre as mulheres mais pobres e com menor escolaridade não configura uma explosão demográfica e, sobretudo, não indica que os filhos dessas mulheres ou ainda das sempre lembradas adolescentes mães serão criminosos.O raciocínio é perverso por que estabelece uma relação de causalidade não comprovável que, se diminuírem os filhos dessas mulheres pobres, a criminalidade há de desaparecer. Criminalidade desaparece com políticas públicas de redistribuição de renda e não com planejamento familiar.
Acesso às formas de controle da concepção deve ser entendido como um direito de cidadania de mulheres e homens, que devem decidir sobre o tamanho desejável de sua prole. A dificuldade no acesso à informação e, em conseqüência, aos métodos contraceptivos, torna a proposta de legalização do aborto uma iniciativa que contempla três questões fundamentais: apóia a saúde das mulheres, vítimas de abortos inseguros realizados em condições precárias; reduz a desigualdade entre ricas e pobres no que diz respeito ao acesso ao aborto; e promove a defesa do Estado laico.
Para apoiar as campanhas da Rede Nacional Feminista de Saúde e de Católicas pelo Direito de Decidir, clique nos links abaixo: