Há cinco anos, o Brasil promulgava a Lei Maria da Penha, que dispõe de uma série de medidas para coibir a violência contra a mulher, equiparando-a a uma violação de direitos humanos e estipulando mecanismos para prevenir e auxiliar mulheres nesta situação. A necessidade de um dispositivo legal que cuida especificamente da vulnerabilidade das mulheres demonstra como o país é refém de um fenômeno de natureza sociocultural que, apesar dos esforços, ainda produz vítimas em escala diária.
Dois trabalhos divulgados recentemente reforçam esse panorama. Tanto o estudo “Percepções sobre a violência doméstica contra a mulher no Brasil / 2011”, parceria do Instituto Ipsos com a Avon, como a pesquisa “Anuário das Mulheres Brasileiras 2011”, divulgada pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), mapeiam e identificam os diversos âmbitos nos quais a violência de gênero se manifesta sob várias formas e dinâmicas.
A pesquisa Ipsos/Avon aponta que 6 em cada 10 dos 1.800 entrevistados conhecem alguma mulher vítima de violência e que 47% das mulheres relataram terem sido vítimas de agressões físicas no ambiente doméstico. Segundo a socióloga e consultora do Instituto Patrícia Galvão Fátima Jordão, são números fortes, que atestam um problema que atinge todas as classes sociais. “Tais números talvez estejam crescendo, pois há, atualmente, mais meios e formas pelos quais a sociedade pode se expressar e denunciar”, afirma.
A socióloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Aparecida Fonseca Moraes analisa esses números sob duas perspectivas. “Uma é ressaltando a positividade, já que acena para uma mudança de percepção entre as mulheres brasileiras que estão reconhecendo e publicizando mais esse tipo de agressão. Isso vai ao encontro aos objetivos perseguidos nas políticas públicas de combate a esse tipo de violência”, afirma. “A segunda maneira de tratar essa informação é problematizando-a, tomando-a como um dado que tanto pode (re)orientar políticas públicas quanto a produção de novos conhecimentos sobre o assunto”.
Os dados compilados na pesquisa Ipsos/Avon apontam que 63% dos entrevistados que relataram conhecer alguma mulher vítima de violência tomaram alguma atitude. São números representativos, segundo Fátima Jordão, que refletem uma perda de legitimidade da violência de gênero na sociedade, embora não signifique uma superação. “No momento em que conseguimos superar o silêncio que ocultava casos de violência, demos um passo fundamental para que se pudesse deslegitimar esse fenômeno, que vai perdendo sua condição de assunto privado. Além dessa perda de legitimidade, consolidamos a censura ao fenômeno”, observa Fátima Jordão.
O enfrentamento contra a violência de gênero, apesar das campanhas de conscientização, dos canais para denúncia e sobretudo da promulgação da Lei Maria da Penha, ainda encontra problemas de informação e de operacionalização judiciária e de aparelhos de Estado.
A pesquisa Ipsos categoriza várias formas de violência: física (empurrões, socos, tapas), psicológica (agressões verbais, xingamentos, humilhações e ameaças), moral (calúnia, difamação, injúria), sexual (sexo forçado e contra a vontade da mulher/estupro) e patrimonial (que implica perda ou dano de objetos, bens e valores). Segundo Aparecida Moraes, o reconhecimento das dinâmicas da violência reflete um refinamento das formas de classificação integrado a um processo civilizador em longo curso de mudanças políticas e culturais. Esses matizes da violência, ressalta Fátima Jordão, carecem de um olhar mais atento da Justiça. “Qualquer violência, não importa sua natureza, tem um efeito claro e evidente: a privação. E isso exige da Justiça um tratamento mais eficiente”, defende. “Precisamos incrementar os instrumentos capazes de reter o crime motivado por gênero. Na esfera policial, ainda vemos a pouca legitimidade ou seriedade conferidas a denúncias de violência doméstica. A lei não pode ser aplicada apenas em casos graves. Temos ainda uma cultura machista que legitima a violência de gênero ao entender a mulher como uma posse do homem. Não é à toa que vemos com freqüência menções a casos de homicídios cometidos por amor”, observa Fátima Jordão.
Aparecida Moraes afirma que é difícil dizer se o reconhecimento de tipos de violência institucionalmente tratados na esfera dos ‘conflitos interpessoais’, como é o caso da agressão verbal, produziria apenas efeitos benéficos nas relações familiares.
“O que posso dizer é que estudos sobre os processos de judicialização no Brasil apontam dificuldades para absorvermos a regulação dos conflitos exclusivamente pela ordem formal e jurídico-criminal do Estado, por exemplo. Incontestavelmente, nas relações conjugais e/ou familiares, as estatísticas mostram que as mulheres, em todas as idades, são as maiores vítimas de lesão corporal leve ou grave, estupro, assédio sexual, homicídio, além de outros crimes. Mas admito que a agressão verbal, humilhação e violência psicológica, por exemplo, mesmo atingindo com intensidade as mulheres, são tipos de violências que perpassam tanto as dinâmicas de interação de casais, quanto as familiares, o que inclusive envolve outros atores como filhos, avós etc. Isso complexifica a definição de quem são os algozes e as vítimas, e, por tabela, o próprio ‘enfrentamento do problema’ no âmbito dos conflitos mais subjetivos. Apesar disso, acredito que o reconhecimento das diversas formas de manifestação da violência doméstica constitui-se um avanço num longo processo societário, como bem tem mostrado o seu ingresso no mundo da legislação brasileira e das políticas”, analisa a professora da UFRJ.
Na pesquisa Ipsos, 94% dos homens e 95% das mulheres entrevistadas lembraram da existência da Lei Maria da Penha, embora apenas 13% declararam saber muito ou bastante sobre a Lei. Fátima Jordão vê como positivo o fato de a população saber que tal previsão legal existe. “As pessoas podem não saber os detalhes, mas percebem que há uma sinalização clara, por parte do poder público, de que a violência contra a mulher é um problema social.” Segundo a consultora do Instituto Patrícia Galvão, no Brasil, antes da Lei Maria da Penha, houve outro marco histórico para o enfrentamento do fenômeno: as delegacias das mulheres, implementadas nos anos 1980, que criaram aparatos de atendimento e proteção. “A Lei Maria da Penha esmiúça com mais propriedade o problema, sistematizando as disposições sobre o tema. Isso abre espaços na mídia, na família, entre os homens”, afirma.
As previsões legais que foram sendo instituídas nas últimas décadas chocam-se, segundo Aparecida Moraes, com um contexto nacional culturalmente diverso. “O Brasil, comparativamente, desde a criação das delegacias especializadas no atendimento à mulher (DEAM), tem se destacado no investimento em políticas públicas de combate à violência de gênero com avanços ainda mais significativos na última década e, principalmente, com a aprovação da Lei Maria da Penha em 2006. No entanto, todo esse percurso não é linear, uma vez que a implementação dessas políticas implica em confrontar referências culturais muito diferenciadas, às vezes incompatíveis com os valores feministas e modernos que as inspiraram. Em que pese a difusão e a penetração crescente das políticas de combate à violência de gênero no Brasil, várias pesquisas também têm mostrado as dificuldades das nossas instituições, seus profissionais, mas também das famílias e mulheres vítimas, em incorporar novos padrões culturais. Os modelos tradicionais dos papéis de gênero, principalmente, ainda têm muita força nesses contextos. As mulheres ainda são muito associadas à tarefa da manutenção da harmonia, solidariedade e cuidados nas famílias. Não é por acaso que muitas ainda relutam em denunciar a violência sofrida. O fato dos números registrados se mostrarem altos não traduz o número de casos efetivamente solucionados. O percurso e o desfecho jurídico criminal dependem de muitas outras variáveis, tanto presentes nas dinâmicas das instituições quanto na decisão das próprias mulheres em persistir”, explica a professora da UFRJ.
A ocorrência das agressões no ambiente doméstico, perpetradas pelo cônjuge, remete a um passado patriarcal que, até os dias de hoje, está enraizado na sociedade brasileira. “As relações de intimidade ainda estão muito assentadas em um modelo de dominação patriarcal. Conhecer os números ou percentuais é importante, porém não suficiente. Precisamos investigar melhor como ocorrem essas dinâmicas de violência e conflitos interpessoais no interior dessas relações conjugais e familiares”, explica Aparecida Moraes.
Segundo a professora da UFRJ, a contemporaneidade é marcada pelos processos de individualização e reflexividade que se intensificam com a densa circulação de informações, através dos meios de comunicação, internet e as redes sociais. “Como é que, em um mundo com mudanças tão aceleradas e com as mulheres comportando-se como agentes cada vez mais pró-ativas, a violência se mantém incorporada a um modelo de produção da própria vida conjugal?”, questiona Aparecida Moraes.
Dados da pesquisa Ipsos/Avon mostram que, entre os motivos que geraram a violência, o ciúme aparece como a causa mais alegada (48%). Para Aparecida Moraes, a questão do ciúme envolve aspectos morais relevantes em nossa sociedade. “Para nós, cientistas sociais, o ciúme implica em ao menos considerar valores morais de certa cultura. Muitas mulheres também não são indiferentes aos ciúmes, não só os demonstram como podem interpretá-los como uma forma de amor. Fizemos pesquisa recente com homens autores de violência que estão sendo atendidos em Grupos de Reflexão em um Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher no Rio de Janeiro e identificamos que muitos procuravam, de certa forma, descrendenciar as mulheres da condição de vítimas ao dizerem que perderam o controle “pelo ciúme dela” ou que agrediram “por ciúme dela” que teria se comportado como “provocadora”. Acho que ainda temos muito para compreender sobre os significados dos “ciúmes” na nossa intimidade violenta”, analisa Aparecida Fonseca Moraes .
Para Fátima Jordão, o poder público tem se mostrado engajado no combate ao problema. Entretanto, ela lembra que as desigualdades de gênero não se limitam à violência. “Há inúmeras assimetrias de poder: temos a dupla jornada de trabalho que submete as mulheres a uma sobrecarga significativa. Os governos, por exemplo, não priorizam as creches como elemento fundamental e acabam relegando esse papel à Igreja. Eu penso que o espaço doméstico é o último baluarte de conquista, que exige uma redistribuição das responsabilidades entre homem e mulher.
Na opinião de Aparecida Fonseca Moraes, as políticas de gênero deveriam levar em conta tanto o reconhecimento, no plano cultural, de homens e mulheres como aspectos econômicos, conforme a linha de pensamento da filósofa e feminista francesa Nancy Fraser – que propõe uma “abordem bidimensional” para tratar do que chama de “justiça de gênero”. “Isso significa que a violência contra as mulheres também pode ser reduzida com políticas que promovam a igualdade econômica entre mulheres e homens. Porém, sem dúvida, aqui a abordagem via o reconhecimento das mulheres é fundamental. Este reconhecimento requer um exame dos nossos padrões culturais de dominação e que estão totalmente institucionalizados, tanto no Direito quanto nas políticas governamentais, práticas profissionais e nas interações cotidianas. É nesse sentido que, se por um lado são inegáveis os nossos avanços, por outro, a distribuição da ‘justiça de gênero’ ainda enfrenta severos desafios na sociedade brasileira”, conclui Aparecida Moraes.
Violência de gênero fora das capitais
Se a questão da violência contra a mulher ainda enfrenta desafios, apesar de dispositivos legais como a Lei Maria da Penha e as DEAMs, em cidades do interior e regiões metropolitanas, especialmente aquelas menos desenvolvidas social e economicamente, tais desafios são ainda maiores. Porém, mesmo nestes locais, percebe-se um aumento no número de denúncias por parte das mulheres agredidas. Em junho, o jornalista Alcelmo Gois publicou em sua coluna no jornal O Globo que na cidade de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, o cenário é de muita violência contra a mulher: a delegacia principal do município registra cerca de 20 ocorrências diárias e 70% delas são casos da Lei Maria da Penha. A assistente social Marisa Chaves, subsecretária de Políticas para as Mulheres daquele município, trabalha há anos com a questão da violência de gênero. Ela afirma que tem percebido um aumento das notificações de casos de violência desde que a Lei Maria da Penha entrou em vigor. Segundo ela, antes da lei, o homem agressor, no máximo, pagaria uma multa, uma cesta básica ou prestaria algum serviço comunitário.
“Houve um claro endurecimento das penas. É cedo para falar sobre evolução nos números, pois a lei tem apenas 5 anos, mas as mulheres estão mais informadas. A lei está difundida, vejo até crianças mencionando. As campanhas realizadas pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, do governo federal, e por outros órgãos governamentais têm sido fundamentais.”, afirma a subsecretária, que também é presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de São Gonçalo e fundadora do Movimento de Mulheres do município, entidade que tem por objetivos principais a luta em defesa dos direitos das mulheres e contra as desigualdades e discriminações decorrentes de sexo, raça/etnia, credo religioso e classe social.
Em cidades afastadas das capitais, ressalta Marisa Chaves, é necessário reforçar os serviços de atendimento à mulher. “Notamos que as notificações são maiores nos municípios que têm serviços desse tipo. O que demonstra que é preciso vontade e empenho do poder público para levar ferramentas de combate a todos os lugares. Em São Gonçalo, por exemplo, temos um serviço de atendimento que concede às mulheres a oportunidade de denunciar. E isso tem se refletido em uma mudança: o decréscimo dos homicídios e o aumento das denúncias de ameaça. Isso significa que as mulheres, mais conscientes, têm se manifestado logo na primeira ocorrência, a ameaça”, afirma.
De acordo com Marisa Chaves, um passo fundamental para a aplicação eficiente da lei é a formação de policiais. “É imprescindível que haja política de formação continuada. De 2000 a 2003, fui coordenadora da equipe de segurança da mulher do programa Delegacia Legal, do Estado do Rio de Janeiro. Tínhamos equipe que capacitava e formava policiais em questões de gênero. Esse trabalho, no entanto, acabou. E na medida em que não há a garantia de uma formação continuada, notamos um retrocesso na formação dos policiais, que são socializados em uma cultura patriarcal e machista e acabam dando pouca importância para casos de violência contra a mulher”, conclui.
As pesquisas podem ser acessadas nos links a seguir.