Se há um consenso atualmente sobre questões relacionadas a gênero, é justamente a impossibilidade de se chegar a um consenso sobre o que é “ser mulher ou homem”. O sexo não está inscrito na biologia, não se define pela presença de cromossomos, hormônios ou órgãos genitais; antes, encontra-se na subjetividade de cada um, na visão refletida no espelho, na infinidade de pequenos gostos e gestos que atravessam o cotidiano – o batom retocado nos lábios, o cabelo afagado com as unhas. Por outro lado, hoje sabemos que erotismo e orientação sexual não são apenas dados subjetivos, qualidades intrínsecas do sujeito, mas também e sobretudo fatos sociais: pois há uma série de dispositivos, constrangimentos e expectativas sociais que levam os indivíduos a elaborarem sua sexualidade de determinadas maneiras. Em suma, gênero e sexualidade são construções sempre em andamento, deslizantes; construções a um só tempo individuais e sociais.
Como toda construção, sexualidade e gênero aparentam mais solidez do que na verdade possuem. O questionamento de sua fixidez e seus essencialismos é uma tarefa que, apesar de avançada em muitos aspectos, permanece uma necessidade constante, sempre a demandar novos esforços. Nesse sentido, Leandro de Oliveira, doutorando do programa de pós-graduação em antropologia social do Museu Nacional (PPGAS/MN/UFRJ), chama a atenção para o fato de que a perspectiva dos estudos queer contribuiu para mostrar que “a distinção existente entre masculino e feminino não é um fato da natureza, ou um ‘princípio’ lógico ou metafísico, mas um efeito de certas práticas. Quando uma pessoa que se identifica como ‘gay’, e que não deixa de se perceber como homem, afirma que tem um lado ‘feminino’ ou possui uma ‘mulher’ dentro de si, ele opera um deslocamento nessas categorias. Homem, mulher, masculino, feminino são noções interligadas entre si por práticas sociais e expectativas culturais – quando uma dessas categorias aparece ‘fora de lugar’, estabelece uma conexão inesperada, coloca em evidência a arbitrariedade do conjunto como um todo”, avalia.
Oliveira estudou de perto o assunto. Sua dissertação de mestrado, defendida no Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ), apresenta uma pesquisa etnográfica de uma boate no subúrbio do Rio de Janeiro destinada ao público “GLS”. Seria uma boate como tantas outras não fosse por um detalhe: “homens” não pagam entrada. Ou seja, naquela boate, jovens que ostentam modos e atitudes masculinas têm acesso gratuito. A maioria dos clientes pagantes – travestis e gays praticantes do crossdressing – procura o lugar na esperança de encontrar um “homem de verdade”. Oliveira, que a princípio estava interessado em entender os padrões de sociabilidade e as dinâmicas de interação erótica naquele espaço, durante o processo de feitura da pesquisa acabou por extrair reflexões mais amplas sobre diversidade sexual.
De início, vale esclarecer que crossdressing é a prática de vestir roupas do sexo oposto. E, ao mesmo tempo, é muito mais do que isso: o que está em jogo não é apenas o ato de “se montar” (gíria utilizada para designar o uso de roupas e acessórios tidos como femininos), mas também a expressão de uma identidade de gênero que resiste a generalizações e estereótipos. Como afirma a antropóloga Anna Paula Vencatto, “nem toda prática de crossdressing aponta para a existência de um sujeito transgênero, e nem mesmo se poderia dizer que é o passeio entre o masculino e o feminino que os define”. As pessoas pesquisadas por Anna em seu doutorado (defendido no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS/UFRJ) não se entendem como transgêneros no sentido de serem transexuais, de quererem se tornar mulher de forma definitiva, inclusive porque em sua maioria se identificam como homens heterossexuais, apresentando uma performance feminina apenas quando estão vestidos de mulher. Seus principais informantes eram integrantes do Brazilian Crossdresser Club. Diferentemente de Leandro de Oliveira, cuja pesquisa foi feita em um contexto de crossdressers homossexuais.
“As crossdressers que pesquisei não se vêem como mulheres e não reivindicam a identidade de mulher para si”, explica Vencato. “A montagem delas é contingencial, temporária e, preferencialmente, secreta. Assim, diferentes de outros grupos, como as mulheres transexuais, elas não buscam reconhecimento social como mulheres. A maior parte das crossdressers, inclusive, não quer que este lado de sua vida seja publicizado. Assim, é possível dizer que o não-reconhecimento público do fato de que ‘se montam’ é até desejável para a maior parte das pessoas que praticam crossdressing com que conversei. Há de se considerar, contudo, que as interlocutoras de minha pesquisa apreciam quando conseguem ‘passar por mulher’. De qualquer modo, a ‘passabilidade’ tem mais relação com o sucesso da ‘montagem’ realizada do que propriamente com o fato de se identificarem como mulheres”, diz a pesquisadora.
Trata-se, como se vê, de uma prática em si mesma contingente, transitória – e que, no cotidiano, pode traduzir-se de formas diferentes, plurais. Em sua pesquisa, Leandro de Oliveira conversou com pessoas de camadas populares que, apesar de praticantes do crossdressing, não se classificavam como crossdressers, e sim como gays ou “bichas-boys”. “Atrair um parceiro considerado ‘masculino’, um ‘homem de verdade’, pode ser uma forma pela qual um jovem gay (ou ‘bicha-boy’) que usa roupas femininas na boate confirma e reitera sua auto-imagem ‘feminina’”, assinala Oliveira. “Algumas ‘bichas-boy’ que se ‘montam’ podem se encontrar no momento inicial de uma trajetória de construção da travestilidade, recorrendo posteriormente a transformações corporais perduráveis e intencionais e passando a se identificar como travestis”, diz ele.
De acordo com o pesquisador, uma ‘bicha-boy’ que se envolve eroticamente com homens interessados somente por pessoas ‘femininas’ desestabiliza a “norma que vincula ‘sexo’ biológico e gênero”. Segundo Oliveira, “essa demonstração de ‘masculinidade’ ou ‘feminilidade’ que varia conforme a situação evidencia que o ‘gênero’ não é um atributo dos indivíduos, mas um efeito produzido dentro de certas cenas sociais e de certas relações.” Oliveira conta que algumas travestis, antes de utilizarem hormônios e aplicações de silicone para transformarem seus corpos, viam a si próprias como ‘bichas-boy’ que ‘se montavam’, o que sugere que, caso elas parassem de recorrer a tais recursos (hormônios, depilação etc.), poderiam acabar perdendo parte de sua aparência feminina, levando-as novamente à condição de “bicha-boy”. Isto tudo, diz ele, torna evidente que “a fronteira que distingue travestis e ‘bichas-boy’ é na verdade uma linha tênue que necessita de constante manutenção. Esta pluralidade de construções evidencia que as fronteiras entre categorias precisam ser ativamente reiteradas, e que é necessário um intenso trabalho para impedir que estes limites se borrem completamente”.
No entanto, a própria prática do crossdressing já constitui em si mesma um fator que em alguma medida ajudaria a borrar tais limites. A questão que se poderia colocar a partir desta constatação seria, então, a de se o crossdressing conseguiria, no longo prazo, contribuir para redefinir alguns dos dispositivos e expectativas sociais que balizam as atuais concepções de gênero. Para Anna Paula Vencato, as crossdressers não estariam buscando “questionar as categorias homem e mulher. De certo modo, o deslizamento entre uma coisa e outra implica em produções de dois mundos bem delimitados. A mulher que produzem geralmente reifica certas idéias sobre o que é ser feminina em nossa sociedade. Assim, esta mulher ‘de verdade’ que produzem implica em um cruzamento entre juventude, frivolidade e glamour. Embora para algumas crossdressers estar vestida de mulher baste por si só, para outras é preciso tornar-se uma mulher bela e, nesse caso, o padrão de beleza acionado é muito próximo daquele dos editoriais de revistas femininas. O mesmo se dá com os comportamentos e atitudes, em que a mulher interpretada é delicada, frágil, sensível, etc. ou, por outro lado, reproduzem os estereótipos da mulher faceira. Nesse contexto, as crossdressers não exatamente questionam os padrões de gênero, mas tentem a incorporá-los e reproduzi-los em sua construção de si”, afirma Vencato.
“É difícil traçar prognósticos”, diz Leandro de Oliveira, “mas creio que a visibilidade das práticas de crossdressing tem sim um potencial bastante subversivo. A princípio, eu diria que estas sinalizam, na verdade, para outros conjuntos de expectativas sociais – expectativas que representam, efetivamente, uma dissidência com relação à norma da heterossexualidade compulsória. A prática de ‘se montar’ com roupas do sexo oposto, na medida em que é uma atividade coletiva, envolve a produção de outras classificações que fornecem parâmetros alternativos para julgar a conduta sexual das pessoas. Neste sentido, o crossdressing pode representar ainda uma crítica ao estereótipo socialmente valorizado de uma homossexualidade masculina viril e discreta, e pode contribuir para uma pluralização das normas que regulam o gênero e a sexualidade, possibilitando às pessoas um leque mais amplo e flexível de alternativas na construção de suas identidades”, conclui.
Leandro de Oliveira e Anna Paula Vencatto são autores dos artigos “Diversidade sexual e trocas no mercado erótico: gênero, interação e subjetividade em uma boate na periferia do Rio de Janeiro” e “Negociando desejos e fantasias: corpo, gênero sexualidade e subjetividade em homens que praticam crossdressing”, respectivamente, publicados no livro Prazeres Dissidentes (CLAM/Editora Garamond), organizado por Maria Elvira Díaz-Benitez e Carlos Eduardo Fígari.