CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Diferença não significa hierarquia

A 2ª edição do Curso de Especialização em Gênero e Sexualidade (EGeS), promovido pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ) e pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), foi iniciada com aula do antropólogo e coordenador do CLAM Sérgio Carrara. Durante a aula, foram apresentadas temáticas que delineiam a proposta central do EGeS: articular, junto a profissionais das áreas de saúde, educação e ciências humanas, uma reflexão aprofundada sobre as desigualdades sociais, suas raízes, particularidades, implicações políticas e as formas de combatê-la. A noção dos direitos sexuais e reprodutivos sob a perspectiva dos direitos humanos será um eixo importante, apontando como as dinâmicas de gênero, sexualidade e raça permeiam o tecido social, instituindo relações de poder assimétricas. Dessa maneira, será possível qualificar o trabalho desses profissionais diante das desigualdades de diversas ordens que marcam o país.

Esta edição do EGeS terá 160 alunos, escolhidos em um processo seletivo que recebeu 739 inscrições, e dá sequência a uma iniciativa que teve, na sua primeira edição (2010-2011), 306 alunos formados. Serão 436 horas distribuídas na modalidade semipresencial, isto é, as disciplinas e conteúdos serão discutidos on-line, por meio de cinco turmas reunidas em fóruns e com a supervisão de um professor tutor. Ao final de cada disciplina, haverá uma aula presencial e a aplicação de uma prova. São 6 disciplinas, no total: 5 obrigatórias (“Diversidade, diferença e igualdade”; “Gênero”; “Sexualidade e orientação sexual”; “A construção do conhecimento em gênero e sexualidade: história e perspectivas”; “Direitos sexuais e reprodutivos”) e outra eletiva, a ser escolhia entre duas opções (“Metodologia de projetos de pesquisa” e “Metodologia de projetos didático-pedagógicos”), conforme o caráter do trabalho final de conclusão. A experiência do EGeS se baseia no Curso de Gênero e Diversidade na Escola (GDE), uma parceria também do CLAM com a SPM voltada para educadores do ensino público.

Durante a aula, Sérgio Carrara traçou um panorama dos significados da noção de igualdade e diferença ao longo dos últimos séculos. De acordo com o coordenador do CLAM, discursos de diversas ordens foram elaborados para explicar a diversidade da espécie humana. Explicações religiosas, filosóficas e científicas surgiram para dar um sentido à organização das sociedades e para classificar e hierarquizar os indivíduos nos grupos sociais. Nesse sentido, de acordo com Sérgio Carrara, a reflexão sobre as diferenças coincide com a reflexão sobre a igualdade.

Perspectivas igualitaristas ou diferencialistas sempre existiram, variando conforme o momento histórico. No mundo feudal e monárquico, as pessoas eram discriminadas conforme o nascimento e suas posses. Nobres, plebeus e escravos tinham valor simbólico distinto e fixo, afinal, as diferenças eram herdadas e, assim, as desigualdades eram vistas como inatas. Havia, portanto, conforme lembrou o coordenador do CLAM, uma distribuição diferencial de poder. A questão da igualdade, na esfera política, viria a ser impulsionada com as revoluções burguesas do século XVIII, que trariam como princípios norteadores a noção de que todos os homens nascem livres e iguais e, portanto, devem ter os mesmo direitos. Uma resposta à dinâmica social do feudalismo e das monarquias.

O estabelecimento dessa igualdade como diretriz política conseguiria dar conta das assimetrias que marcavam os grupos sociais? De acordo com Sérgio Carrara, as revoluções do século XVII não buscavam uma transformação radical da ordem social. As hierarquias e a atribuição desigual de poder e valor social permaneceriam, dessa vez tendo no discurso científico um pilar de sustentação que viria a legitimar clivagens ancoradas nas dimensões da sexualidade, do gênero, da saúde, da raça etc.

As ciências biológicas e as nascentes ciências do homem, no século XIX, articularam argumentos e pressupostos para traçar assimetrias sociais e políticas. Nesse sentido, as supostas ideias de inferioridade e fragilidade da mulher tornaram-se “verdades” racionalizadas por vozes que atribuiriam ao corpo biológico distinções inescapáveis. O gênero, enquanto lógica de organização social, ganhava estofo científico. Outros discursos, por exemplo, viriam a produzir teses sobre a presumida inferioridade da raça negra, lançando mão de explicações também ancoradas no corpo biológico. Sociedades tradicionais e indígenas seriam estipuladas como atrasadas e selvagens, na esteira de concepções evolutivas sobre as sociedades humanas: o topo seria ocupado pelas nações européias colonizadoras. A ciência, nesse sentido, aparecia destacadamente como uma prática social, envolta em relações de poder.

Estando ancorada em pressupostos simbólicos naturalizantes, a ciência moderna viria a classificar os homossexuais como doentes e os negros, como potenciais criminosos, por exemplo. Um processo de recriação da diferença, afirmou Sérgio Carrara, citando o historiador norte-americano Thomas Laqueur. O outro, aquele à margem das convenções sociais e culturais, descolado das tradições hegemônicas, aparecia, nas sociedades modernas, sob o signo da fragilidade, do perigo, do desvio, da abjeção. Não teria, portanto, os mesmos direitos e a igualdade prometida por causa da “incapacidade natural” de exercer tais prerrogativas. Era visto não sob a perspectiva da autonomia, mas da tutela. Um padrão de conhecimento que estaria na raiz de práticas discriminatórias até pouco tempo institucionalizadas, como, por exemplo, a proibição do voto às mulheres – só permitida no Brasil na década de 1930 – e a validade da “defesa da honra” como argumento jurídico na defesa de homens assassinos de mulheres – tese comum até algumas décadas atrás. Embora muitas práticas tenham sido desinstitucionalizadas, as desigualdades, sejam simbólicas ou concretas, persistem nas diversas instâncias da sociedade brasileira.

Muito já foi e permanece sendo mobilizado para desconstruir versões discriminatórias da realidade. Para Sérgio Carrara, o EGeS se insere nessa perspectiva. De acordo com o coordenador do CLAM, o século XX foi palco para o surgimento de movimentos sociais voltados para a crítica à naturalização das desigualdades. Os movimentos feministas, LGBT e anti-coloniais, por exemplo, marcaram terreno para reivindicar a igualdade que historicamente lhes foi e ainda é em larga medida negada.

A crítica ao evolucionismo, ao racismo e à patologização de desejos e práticas sexuais tem sido vocalizada também pela ciência. Nesse sentido, lembrou Sérgio Carrara, o etnocentrismo, isto é, a definição e avaliação do outro pelas lentes culturais próprias, torna-se cada vez mais questionado. Crítica estimulada Ciências Sociais e Humanas, que serviram antes para naturalizar e legitimar hierarquias.

Para Sérgio Carrara, o EGeS enfatiza como as culturas são marcadas pela diferença e pela pluralidade, sem que seja legítimo, por outro lado, valorizar comparativamente as práticas sociais, especialmente as de gênero de sexualidade. “É preciso compreender tais diferenças como socialmente construídas, ainda que mobilizem o corpo e a biologia. Somos seres essencialmente sociais, sendo importante reconhecer a legitimidade dos valores e práticas do outro. As diferenças não podem ser hierarquizadas a priori, como se fossem naturalmente determinadas”, observou Sérgio Carrara.

Em um país marcado pelas assimetrias de gênero, raça e orientação sexual, a reflexão proposta pelo curso aponta como estereótipos do tipo “mulheres não sabem dirigir” e “gays são mais sensíveis” podem ser problematizados e questionados como valor hegemônico. Tal proposta mostra-se atual, tendo em vista o momento político brasileiro em que vozes contrárias aos direitos sexuais e reprodutivos difundem concepções, inspiradas em noções morais e religiosas, que tentam atingir a garantia e promoção de direitos.

De acordo com o professor Sérgio Carrara, o EGeS procura mostrar como as diferenças não constituem algo a ser suprimido. Pelo contrário, busca-se redistribuir o poder e os valores sociais que se configuram assimétricos em nome das diferenças. “É importante ter em mente que os marcadores de desigualdade e os princípios de hierarquização estão estreitamente vinculados um ao outro. Há uma articulação das diferenças, que se reflete em uma realidade complexa. Ser homem gay e branco tem consequências distintas do que ser homem gay e negro. O EGeS procura pensar as hierarquias, os processos sociais e políticos que sustentam tal realidade. A intenção é pensar as construções simbólicas que fundamentam relações e práticas sociais. Propomos um olhar da cultura de forma analítica, reflexiva e crítica”, concluiu o coordenador do CLAM.