Ao longo de seu doutoramento, a antropóloga Claudia Cunha (IMS) passou a considerar a questão do HIV/Aids no campo dos direitos humanos. Em artigo que compõe o livro “O fazer e o desfazer do direito”, a pesquisadora lança luz sobre um modelo de formação dos Jovens Protagonistas com HIV/AIDS, uma forma de enfrentamento ao HIV/Aids que aposta na visibilidade dos jovens, sobretudo pobres, de modo a ampliar seus direitos no contexto dos esforços contra a epidemia. Contudo, esse modelo se confronta com a dificuldade de fazer valer esses direitos quando se concebe a ideia de que esses jovens precisam ser “protegidos” pela idade e pela pobreza, mas podem ser “perigosos”, pelas imagens associadas entre sexualidade “exacerbada” e “descontrolada” pela idade, pela capacidade parcial de se responsabilizar por si mesmos e pelos outros (ou seja, prevenir-se), e pela condição de soropositividade, isto é, viver com HIV/AIDS, e poder disseminar o vírus.
Desde o surgimento da epidemia nos anos 1980, ser portador do vírus implica forte carga moral que associa os soropositivos a uma série de estigmas, tais como o da culpa pela infecção e o da figura “perigosa” para a população como um todo. Tais estigmas recaíram de maneira flagrante sobre os homossexuais, nos primeiros momentos da epidemia. Em se tratando de jovens, as representações do HIV têm passado por transformações nos últimos anos, tocando, nesse sentido, na questão dos direitos desse segmento. Nesse contexto, Claudia Cunha dedicou-se a entender a “engenharia política” de construção desses jovens protagonistas e seus respectivos direitos, proposta que marca o livro “O fazer e o desfazer do direito”, organizado por Adriana Vianna (Museu Nacional/UFRJ) e que procura pensar dimensões práticas dos direitos, apresentando situações em que as prerrogativas da cidadania são vistas pela sua dimensão processual.
A figura do jovem protagonista tem origem no contexto dos avanços do tratamento da Aids. Com o surgimento do coquetel, nos anos 1990, as crianças que eram infectadas no parto (transmissão vertical) puderam não mais ser vistas como pessoas condenadas à morte. É nessa conjuntura que se constrói, através de encontros e seminários, um modelo que envolve gestores, profissionais de saúde e movimentos sociais em benefício de uma juventude que vive com HIV e que tem seu potencial de vida reconhecido, assim como positivada a sua imagem. “É uma perspectiva que traz a ideia de atenção integral à saúde, como uma forma de desconstruir a noção de indivíduos sem perspectiva de vida”, afirma Claudia Cunha. A produção desse modelo, no entanto, não é isenta de desafios e críticas, conforme aponta a pesquisadora.
Em sua pesquisa antropológica para compreender as marcas desse processo, ela observou que o reconhecimento desses jovens protagonistas é marcado por uma economia moral. Em encontros reunindo jovens, profissionais de saúde e gestores, Claudia Cunha notou que o protagonismo aparece articulado à ideia de responsabilidade. “Não se trata de um simples processo em que eles são identificados socialmente, mas também um processo de criação de novas categorias que trazem embutidas traços normatizantes da sexualidade. Assim, os jovens que contraíram o HIV no momento do nascimento são vistos como ‘vítimas’, ao passo que os jovens infectados por relação sexual são vistos como ‘culpados, como se tivessem procurado a doença, reeditando imagens do início da epidemia”, observa Claudia Cunha
No Brasil, crianças e adolescentes estão contemplados com legislação específica através do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que define tal população como merecedora de uma proteção especial ao mesmo tempo em que faculta uma série de direitos que visam à autonomia e à liberdade. Os jovens com HIV, no contexto do modelo de enfrentamento pesquisado por Claudia Cunha, caminham nesse espaço com fronteiras tênues, especialmente em se tratando de sexualidade. O título do artigo – “Os direitos e os ‘avessos’: contradições e ambiguidades em torno das decisões e ‘direitos, sexuais e reprodutivos’, de jovens vivendo com HIV/Aids” remete a tais fronteiras. Conforme Claudia Cunha argumenta, a visibilidade e formação desses jovens, contraditoriamente, os afasta de um ideal de autonomia. “Penso na questão do avesso do direito, pois a intenção do protagonismo é conceder visibilidade e legitimar a vida desses indivíduos em seus aspectos positivos, afastando-os da ideia de ‘condenados à morte’. Por outro lado, é um protagonismo que, por estar no âmbito das práticas sexuais e do desejo, coloca a questão da responsabilidade. Assim, ao mesmo tempo em que eles estão protegidos por marcos legais, estão também destituídos de direitos, pois são vistos como indivíduos ‘descontrolados’ e ‘irresponsáveis’”.
Claudia Cunha aponta que o protagonismo desses jovens remete a “um temor de que usem a autonomia, colocando em risco a si mesmos e outras pessoas. Persiste a ideia de potenciais disseminadores do vírus e da doença. A sexualidade é um aspecto central nesse processo, pois é através dela que a marca do controle e da gestão dos corpos se faz presente”, afirma.
Nesse contexto, a construção dos jovens protagonistas e seus direitos apresenta traços normatizadores. Um dos aspectos destacados por Claudia Cunha é o impacto que tais ideias têm na identidade e nas subjetividades dos jovens. “Uma observação importante a fazer é que tal processo não é meramente político. Ele tem efeitos nos indivíduos, produzindo sujeitos dóceis, ciosos de sua sexualidade por reconhecerem que, de algum modo, constituem um perigo para a sociedade”, afirma Claudia Cunha.
A emoção e os sentimentos têm um papel importante nesse contexto. Nos encontros organizados, os jovens são estimulados a falar de suas experiências e a demonstrar seus sentimentos, partindo-se do pressuposto de que a emoção horizontaliza as relações de uma população submetida a formas de poder variadas. De acordo com Claudia Cunha, a aposta na emoção também merece reflexão. “Ao se apostar na positivação desses jovens, dando destaque para a possibilidade de terem uma vida feliz e ‘normal’ como a de qualquer pessoa, é importante pensar sobre isso no contexto mais amplo. De um lado, há uma ênfase em sujeitos felizes e emancipados, enquanto que, do outro lado, permanece o estigma de indivíduos ‘perigosos’. É um processo sutil de construção dessa juventude. Nesse sentido, o protagonismo reforça determinados estigmas que não coincidem com uma linguagem de direitos humanos. São jovens que devem ser felizes, autônomos, mas, na verdade, docilizados, inseridos em uma proposta que fomenta uma forma de controle dos corpos e dos desejos. Ao atribuir a esses jovens a noção normativa de ‘cuidado de si’ e responsabilidade, vejo que proporcionamos menos bem-estar do que sofrimento”,observa Claudia Cunha.
Apesar das críticas, Claudia Cunha pondera que o modelo não deve ser descartado, pois também contribui para o enfrentamento do HIV/Aids. “Não se deve jogar fora o que foi e está sendo construído. Dar voz aos jovens é uma maneira de reconhecê-los. A iniciativa é um espaço de fortalecimento. As pessoas envolvidas estão bem-intencionadas. Por isso, devemos olhar criticamente e refletir sobre as ambiguidades e armadilhas que podem ser criadas nesse processo”, afirma Claudia Cunha, que em sua pesquisa de pós-doutorado tem pesquisado, entre outros aspectos, a trajetória de jovens vivendo com HIV/Aids que militam em movimentos sociais.