CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Direitos reprodutivos no Brasil

No dia 11 de julho, ao comemorar o Dia Mundial de População, o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) resgatou o debate sobre a garantia do direito ao planejamento familiar através do tema “Planejamento familiar: é um direito, vamos fazer disso uma realidade”. Na avaliação de especialistas, este é um momento bastante apropriado para se discutir o tema, principalmente dado o contexto de mudanças na dinâmica demográfica brasileira, reveladas pela Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS 2006), cujos resultados apresentam novas e significativas tendências em relação à prevalência contraceptiva no Brasil e à autodeterminação reprodutiva das mulheres, sinalizando importantes mudanças sociais. Segundo o estudo, o percentual de mulheres casadas ou sexualmente ativas e não unidas que usam atualmente algum método contraceptivo é de 81%, bem acima da média mundial que é de 60%.

Financiada pelo Ministério da Saúde, por meio de convênio com o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – CEBRAP – a pesquisa contou com a participação de uma equipe de demógrafos de primeira linha de atuação na ABEP e outros pesquisadores da área de saúde e nutrição das Universidades de São Paulo (USP) e Estadual de Campinas (Unicamp). – liderados pela demógrafa Elza Berquó.

O Ibope fez a pesquisa de campo, através de entrevistas domiciliares com cerca de 15 mil mulheres entre 15 e 49 anos, em áreas urbanas e rurais das cinco regiões brasileiras, entre novembro de 2006 e maio de 2007.

A PNDS revela que aumentou a taxa de prevalência do uso de contraceptivos e diminuiu a diferença entre as taxas de fecundidade observada e desejada: de 2,5% e 1,8%, em 1996, essas taxas passaram para 1,8% e 1,6% em 2006, respectivamente. Praticamente todas as entrevistadas que regulam a fecundidade utilizam métodos anticoncepcionais modernos: 29% das mulheres atualmente unidas estão esterilizadas, 21% utilizam pílulas, 12% recorrem à camisinha masculina, 5% têm o companheiro vasectomizado e apenas 3% usam métodos tradicionais.

“Esta distribuição dos métodos representa uma mudança significativa em relação à situação revelada pela PNDS 1996, quando a prevalência da esterilização feminina era de 40%, a esterilização masculina menos de 3%, o uso da camisinha masculina de apenas 4%, ou seja, os homens passam, de certa forma, a se responsabilizarem mais pela regulação da fecundidade”, analisa a demógrafa Suzana Cavenaghi, da Escola Nacional de Ciências Estatísticas, que coordenou o trabalho de campo. Clique aqui para ler a entrevista de Suzana Cavenaghi na íntegra.

O fato de os homens estarem dividindo cada vez mais a responsabilidade pela regulação da fecundidade representa uma mudança de paradigmas. Suzana, no entanto, chama a atenção para outro dado. “Ao mesmo tempo em que persiste no país a tendência de crescimento da prevalência anticoncepcional pela expansão do uso de métodos modernos, verificamos uma mudança importante no mix dos mesmos, especialmente pela perda da importância da esterilização feminina. Resta saber se esta tendência vai continuar, pois observamos em alguns estados brasileiros que a vasectomia já supera em valores absolutos o número de laqueaduras realizadas tanto no SUS quanto na saúde suplementar. Espero que não troquemos simplesmente a laqueadura pela vasectomia, mas sim, que cada pessoa possa ter a informação e o acesso qualificados para utilizar o método mais adequado para sua idade e estilo de vida”, afirma a pesquisadora.

Outro fato importante a ser enfatizado, a partir dos novos resultados da PNDS-2006, é a convergência dos níveis de fecundidade nas diversas regiões do Brasil – a pesquisa revela uma Taxa de Fecundidade Total (TFT) de 1,8 filhos por mulher no Brasil, sendo 1,7 filhos no Sul-Sudeste e 1,8 filhos no Nordeste, que ficou com fecundidade abaixo inclusive da região Centro-Oeste (2,O filhos por mulher). Ou seja, o Brasil já está com taxas de fecundidade abaixo do nível de reposição até mesmo no Nordeste e no meio rural, sendo que a fecundidade desejada da mulher brasileira é ainda menor – 1,6 filhos por mulher.

Na análise da demógrafa Laura Wong, do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar/UFMG), que atuou como consultora do estudo, de acordo com a pesquisa a região Nordeste parece subverter a ordem a que estamos acostumados. ”A pesquisa aponta para uma forte homogeneização dos níveis de fecundidade, isto é, os indicadores estão cada vez mais parecidos. Os dados parecem sugerir que há cada vez menos diferenças no número de filhos que os casais estão tendo, nos últimos anos a queda do volume de nascimentos é algo praticamente generalizado de norte a sul e de leste a oeste do país. Na grande maioria de regiões metropolitanas, as mulheres estariam tendo uma quantidade de filhos insuficiente para repor a população que morre. De fato, isto ocorre em todas as grandes regiões metropolitanas, desde Belém até Porto Alegre, passando por Recife, Salvador e Belo Horizonte. Uma das infelizes exceções é a população menos escolarizada, que hoje em dia representa algo em torno de 10% to total.”, avalia Laura. Clique aqui para ler a entrevista de Laura Wong na íntegra.

Na pesquisa de 2006, no grupo de 15 a 19 anos, 32,6% das mulheres entrevistadas afirmaram ter feito sexo aos 15 anos. Na PNDS de 1996, o índice das jovens que disseram ter tido a primeira relação sexual aos 15 anos era de 11,5%. Por tabela, o percentual de meninas nessa faixa etária que se declararam virgens caiu de 67,2% para 44,8%. Partindo destes dados, na semana em que os resultados da pesquisa foram divulgados, os principais jornais brasileiros noticiaram – à sua maneira simplificada – que as brasileiras estariam fazendo sexo e tendo filhos cada vez mais novas. No entanto, para as pesquisadoras, é preciso relativizar tais resultados.

“A maior proporção de mulheres que iniciam sua vida sexual mais cedo se deve às transformações sociais e culturais ocorridas no Brasil nas últimas décadas, especialmente após o processo de redemocratização e o fim do regime militar. Neste sentido, os jovens estão praticando livremente o seu direito à sexualidade. Em relação à questão de ter filhos cada vez mais novos, é certo que a idade mediana ao ter o 1º filho passou de 22,4 para 21,0 anos. Ou seja, 50% das mulheres já tinham tido seu primeiro filho antes dos 21 anos de idade. Os dados não confirmam com significância que as mulheres são cada vez mais jovens. Por exemplo, no passado, quando a expectativa de vida era bem menor, as mulheres constituíam famílias e tinham seus filhos muito mais novas que hoje em dia. A questão é que com todo o progresso, nos assusta que as meninas tão jovens já sejam mães, quando poderiam ter tantos outros projetos de vida antes de realizar a maternidade”, avalia Suzana Cavenaghi.

Laura Wong complementa: “Na verdade, as mulheres não estão tendo filhos cada vez mais novas. O que acontece é que a idade média da fecundidade está diminuindo. Isto aconteceu porque as mulheres mais velhas, proporcionalmente, diminuíram, em muito, a probabilidade de ter filhos. Desta forma, essa idade média, diminui. Mas se observadas as taxas de fecundidade das mulheres menores de 20 anos veremos que, embora relativamente altas, essas taxas se mantêm em patamares mais ou menos constantes desde os anos 80 ou 90. Esta figura é muito semelhante na maioria de paises latino-americanos. O que ainda falta fazer é conscientizar nossos jovens de que hoje em dia há muitos mundos além de virar genitores antes dos 20”, afirma Laura.

A PNDS mostra também que os recursos para o planejamento familiar têm declinado ao longo dos últimos anos.Para Suzana Cavenaghi, o maior entreve não é o valor gasto com o planejamento familiar, mas principalmente a logística de distribuição. “Além do tamanho continental do país e das diferenças regionais, as relações entre governo federal, estado e municípios na provisão de métodos contraceptivos mudam regularmente, sem se ter chegado ainda a uma fórmula adequada. Atualmente, o governo Federal se responsabiliza por 100% dos gastos com contraceptivos, portanto responsável pela compra de todos os métodos e da sua distribuição até as secretarias municipais. A primeira barreira é conseguir comprar estes contraceptivos no esquema atual de licitação. A segunda barreira é fazer com que os municípios consigam distribuir estes métodos sem utilização de interesses políticos, ainda mais em anos de eleições municipais”, alerta a demógrafa.

Ainda de acordo com a pesquisa, o Brasil já possui taxas de fecundidade abaixo do nível de reposição (até mesmo no Nordeste), e do total de nascimentos ocorridos nos últimos cinco anos, apenas 54% foram planejados para aquele momento. Entre os 46% restantes, 28% eram desejados para mais tarde e 18% não foram desejados. O que chamou a atenção de especialistas em relação à PNDS 2006 é que o estudo mostra que o fenômeno da “retirada da procriação”, que se verifica na Europa e em outras partes do mundo, parece ter chegado também ao Brasil.

Segundo Suzana Cavenaghi, uma conseqüência deste processo de transição da fecundidade é a transformação na estrutura etária da população. “A fecundidade abaixo do nível de reposição acelera o processo de envelhecimento populacional, reduz o ritmo de crescimento demográfico e antecipa o momento em que a população brasileira vai começar a diminuir em termos absolutos. No entanto, a diminuição em valores absolutos da população brasileira ainda levará algumas décadas para ocorrer. Até lá, precisamos planejar as ações e políticas públicas que terão que lidar com um menor número de jovens, grande quantidade de adultos e uma crescente população de idosos que, além do mais, sobrevivem por muito mais tempo que no passado”, observa a pesquisadora.

A discussão sobre a fecundidade zero tem sido frequentemente debatida no mundo. Em março, a revista Population and Development Review – PDR – publicou o artigo  “Childless or Childfree? Paths to Voluntary Childlessness in Italy”, das pesquisadoras italianas Maria Letizia Tanturri e Letizia Mencarini. Em junho, a revista Magazine do New York Times publicou um longo texto e tratando das questão das populações com fecundidade muito baixa (lowest-low fertility) e do crescimento do número de homens e mulheres com fecundidade zero.

O questionário da PNDS-2006 também incluiu perguntas sobre aborto. De um universo de quase 7000 gravidezes relatadas, cerca de 600 foram reportadas como concluídas em aborto espontâneo ou induzido.