por Washington Castilhos
A visibilidade da epidemia de zika no Brasil passou a ser pautada principalmente pela identificação de casos de microcefalia em recém-nascidos. A confirmação de casos suspeitos de microcefalia e outras malformações congênitas em fetos e recém-nascidos de mulheres infectadas durante a gravidez levantou múltiplas questões no plano da garantia dos direitos sexuais e reprodutivos – como o acesso a métodos anticoncepcionais seguros e adequados e a um pré-natal de qualidade –, e reacendeu o debate em torno da legalização do aborto no país. Diferentes movimentos de mulheres – ligados a universidades e a organizações não-governamentais – e representantes da área médica passaram a reivindicar o direito à interrupção da gravidez para as mulheres afetadas pela doença que correm riscos, caso estas assim desejassem fazê-lo.
Assim, a necessidade de respostas perante o cenário epidêmico acabou por envolver e articular diversos atores. O esforço da comunidade científica em decifrar a doença e o empenho do movimento de mulheres pelo ajustamento da lei brasileira do aborto para casos de malformações congênitas resultantes da infecção têm tornado cada vez mais claro que nem esta ou nenhuma outra epidemia pode ser enfrentada a partir de um ponto de vista apenas, conforme sublinhado pela antropóloga portuguesa Cristiana Bastos em recente entrevista ao CLAM.
A história da Aids é um exemplo disso e pode servir de referência para o contexto da emergência da Zika. Os modos como se articularam as pessoas diretamente afetadas e aquelas que se mobilizaram no contexto do HIV trazem um exemplo emblemático para compreender a construção de movimentos políticos e ativismos, e para refletir sobre os desafios da epidemia da zika como questão de saúde e direitos.
Nos Estados Unidos, no início da epidemia da Aids, quando todas as semanas surgiam novas teorias e fatos, a arena não incluiu apenas virologistas, imunologistas, biólogos, epidemiologistas, médicos, autoridades federais em saúde ou a mídia tradicional. Do debate público participou também um forte e diferenciado movimento ativista, que trouxe consigo a mídia alternativa, incluindo publicações ativistas e veículos da chamada imprensa gay.
“As crenças sobre a segurança e a eficácia de determinados regimes terapêuticos e a compreensão sobre quais práticas de pesquisa clínica gerariam resultados úteis foram produtos de um elaborado e peculiar complexo de interações entre esses variados atores”, relata Steven Epstein no artigo The Construction of Lay Expertise: Aids Activism and the Forging of Credibility in the Reform of Clinical Trials.
A discussão proposta por Epstein em 1995 não deixa de ser atual. Além de mostrar com acurado detalhe o processo de politização em torno da epidemia do HIV, o sociólogo demonstra o quanto movimentos ativistas – através do acúmulo de diferentes formas de credibilidade – podem, em certas circunstâncias, ganhar legitimidade como participantes na construção do saber científico, fazendo uso de sua expertise leiga. [Segundo Brian Wynne, a expertise leiga se refere a um conhecimento local, baseado na vida e histórias de uma determinada comunidade]. As táticas empregadas pelos leigos ativistas da Aids nos EUA no início da epidemia fizeram com que estes alcançassem credibilidade na comunidade científica, a ponto de conseguirem mudar as regras do jogo – inicialmente, a população envolvida nos testes clínicos consistia em sua maioria de homens brancos de classe média. Os ativistas contestavam que todas as populações afetadas deviam ter acesso aos testes.
No entanto, se no contexto norte-americano da epidemia da Aids os pacientes (afetados pela epidemia que naquele momento vitimava mais e mais pessoas) encontraram modos de se credenciar a falar por si mesmos dentro da arena científica; no contexto brasileiro do início da epidemia de zika, as mulheres afetadas encontram-se em um lugar de vítima com grande sofrimento concreto no seu cotidiano e com relação aos seus projetos de vida – sem recursos para assumirem um papel como vozes autorizadas – dadas as vulnerabilidades sócio-ambientais a que estão submetidas. Diversas/os especialistas, no entanto, passaram a falar por elas no plano da garantia de direitos.
Há, não obstante, diferenças contextuais que precisam ser lembradas. No primeiro caso, o ativismo dos afetados pela Aids nos EUA foi forjado em um contexto muito específico: as lideranças eram homens gays brancos, com capital simbólico (pessoal/cultural) significativo. As “mães da zika”, por sua vez, são em sua maioria mulheres pobres, com pouco acesso ao planejamento familiar e sem poder de negociação com seus parceiros, como observado pela pesquisadora Sinara Gumieri (Anis) em recente debate sobre a síndrome congênita do zika [leia matéria aqui]. De fato, até passarem a fazer parte das estatísticas oficiais da síndrome, talvez nem saíssem de um círculo restrito de interações. Como seria então pensar em uma “expertise leiga” por parte dessas mulheres e famílias?
A possibilidade de mobilização política envolve primeiramente a identificação dos sujeitos com causas em comum. Há algum tempo algumas das “mães da zika" começaram a se mobilizar em torno de sua causa. Um exemplo é a história do casal Maria Carolina e Joselito Alves, pais da menina Maria Gabriela, uma das crianças nascidas com microcefalia e atendidas em Campina Grande (PB). Carolina e Joselito iniciaram algo politicamente importante.
De afetados a mobilizados
Três meses após o nascimento da filha, em janeiro de 2016, na cidade de Esperança (PB) – um município de 31 mil habitantes a 40 km de Campina Grande – Carolina e Joselito decidiram criar um blog , por onde pudessem compartilhar suas inquietações e dores na experiência cotidiana e, ao mesmo tempo, se articular com outras famílias afetadas pela epidemia.
A motivação inicial foi de denunciar as negligências a que tinham sido submetidos desde a gravidez de Carolina. Ela apresentou sintomas de zika no segundo mês de gestação. No terceiro mês o ultrassom convencional mostrou que ela apresentava uma alteração nos ventrículos laterais e o médico do Hospital público de Esperança afirmou não saber o que era. No quarto mês, o ultrassom morfológico – forma mais avançada de ultrassom, que examina minuciosamente o bebê e o desenvolvimento de seu corpo e de seus órgãos –mostrou que estava tudo normal. A ultrassonografia é precisa no diagnóstico de microcefalia e capaz de identificar outras malformações cerebrais que poderiam determinar a microcefalia sem relação com o Zika, mas, de acordo com especialistas, muitas vezes, depois da 30ª / 32ª semana é que objetivamente pode começar a haver indícios da microcefalia, quando a mulher, por exemplo, é infectada com dois meses, ou aproximadamente 10 a 12 semanas.
Os pais de Maria Gabriela, no entanto, contam que não tiveram qualquer informação no pré-natal. Na época, recorda o casal, a zika era chamada de dengue fraca ou virose. Carolina foi diagnosticada com virose.
“No interior, eles [médicos] dizem que a mulher só quer saber o sexo do bebê. Só olham isso e dizem tá normal”, afirma Joselito, que, desempregado na época, esteve muito presente ao lado da mulher nas consultas médicas. Ele lembra que tentou acompanhar Carolina na hora do parto, mas, mesmo evocando a Lei 11.109 – que garante o acompanhamento da gestante durante o trabalho de parto – ouviu da enfermeira que o hospital não tinha estrutura para isso.
“Quando Gaby nasceu apresentando microcefalia, a enfermeira chorou, o médico desapareceu. Nunca mais o vimos. A Secretária Municipal de Saúde (da antiga gestão) apressou-se em declarar que aquele era um caso isolado. Logo após o nascimento, ela entrou em estado febril de 39º e o hospital não tinha antibióticos para deter a febre”, contam. Foi então que pediram transferência para um hospital de referência, que lhes oferecesse um suporte melhor. Foram transferidos para o Hospital da Universidade Federal de Campina Grande, que na ocasião tinha reportado 60 casos de microcefalia resultantes da infecção por zika.
Pretendendo notificar o prefeito de Esperança sobre os direitos que lhes foram negados – primeiro o direito à informação sobre a real situação da gestação de Carolina e do bebê, depois o direito do marido de acompanhá-la no parto – protocolaram no Ministério Público uma solicitação de reparação de danos. A promotora os notificou que não houvera crime ou lesão de direitos no caso. Afirmou ainda que de nada adiantaria o diagnóstico precoce da microcefalia.
Nesta época tiveram seu primeiro contato com o movimento de mulheres. Conheceram a antropóloga e diretora da organização Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, Débora Diniz, que estava em Campina Grande coletando informações e depoimentos para o documentário Zika. Através da Anis, conseguiram uma advogada que os representasse. Tiveram então a ideia de montar o blog.
“O blog foi montado para mostrar ao mundo a nossa indignação. Somos um casal pobre, matutos, filhos de agricultores. Quem nos ouviria? Essas pessoas nos olhavam e se perguntavam que direito nós tínhamos de lutar para que reconhecessem os nossos direitos. Somos vítimas de um discurso de discriminação por classe”, avalia Joselito.
Além do blog, eles participam de três grupos no Whatsapp, por onde marcam reuniões com as outras famílias e trocam informações sobre a situação de saúde e o desenvolvimento dos filhos. As mães vão se ajudando e se encorajam a partir das ações das outras. O casal rechaça o discurso de que está transformando a dor em luta, já que não considera o nascimento da filha uma dor. “Ter uma filha deficiente não foi uma dor. O despreparo dos profissionais de saúde e o olhar de pena das pessoas é o que mais dói”, diz Carolina.
Os textos traduzem inquietações. Nas diversas postagens do blog, escritas pelo casal, há críticas relacionadas à desigualdade social e à negligência do estado. Eles questionam, por exemplo, ideias como aquela que apregoa que o inimigo é o mosquito, sem levar em conta em que contexto esse mosquito se propaga.
“O governo acusa a população de ser responsável por armazenar água de forma inapropriada em casa. Mas como podemos deixar de armazenar água se não temos água? Precisamos armazenar. O povo que precisa armazenar é o que mora nas periferias, onde há esgoto a céu aberto e maior probabilidade de reprodução do mosquito. O criadouro do mosquito está onde o governo menos cuida. O que fica subentendido é que a culpa é das famílias”, questiona Joselito.
Na plataforma digital criada pelo casal também há críticas ao volume de informação divulgada sem filtro e ao que é publicado na grande imprensa.
“Eles [a mídia] reverberam o pensamento estatal. Quando a gente faz uma crítica ao governo ou falamos em ‘direitos’ eles não publicam. Retratam a gente como miseráveis, há uma representação do nordestino sem acesso à informação, que vive descalço em chão de terra rachada. Uma matéria de jornal dizia que a geração da microcefalia é uma geração perdida. E se é uma geração perdida, temos que ter dó. Mas não precisamos de dó nem compaixão. Queremos direitos. A jornalista nos disse: ‘temos que fazer assim para causar comoção’. Eu respondi: ’se querem dramatizar, que façam uma novela’, relata.
O conhecimento sobre a doença eles dizem que vão adquirindo. Participam de fóruns científicos, voltados para a pesquisa no campo. Num desses eventos, Joselito afirma ter ouvido uma das participantes se referir à filha: “ela é até bem-cuidada”
Eles sabem que a credibilidade da mobilização que começaram vai depender da sua capacidade de envolver apoiadores em suas demandas e de legitimar seus argumentos, de modo que possam se apresentar como pessoas a quem se deve dar ouvidos. Uma vez por semana, vão a João Pessoa fazer um curso sobre gênero e sexualidade. São a única família afetada pelo zika no curso, cujos participantes são principalmente pessoas transexuais e membros do movimento negro, de sindicatos e associações. Estão cientes da importância das interações. Nesse jogo político, espera-se que, assim como o ativismo da Aids fez décadas atrás, eles consigam mudar as regras que precisam ser mudadas.