Dia 23 de outubro é o dia mundial de luta contra a patologização da transexualidade. Neste dia, foram realizadas simultâneas manifestações e debates públicos pelas mais de 100 organizações e quatro redes internacionais na África, na Ásia, na Europa e na América do Norte e do Sul engajadas na campanha pela retirada da transexualidade do DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e do CID (Código Internacional de Doenças). A campanha “Stop Trans Pathologization 2012” inclui, entre suas demandas, retirar o TIG (Transtorno de Identidade de Gênero) do DSM-V (versão a ser publicada em 2012), abolir os tratamentos de normalização binária para pessoas intersex, garantir o livre acesso aos tratamentos hormonais e às cirurgias (sem a tutela psiquiátrica), oferecer cobertura pública sanitária universal ao processo de ressignificação de sexo/género, e retirar a menção de sexo dos documentos oficiais. Apregoa também o combate à transfobia, propiciando a educação e a inserção social e laboral das pessoas transexuais.
A transexualidade foi descrita em detalhes, pela primeira vez, em 1966, quando o endocrinologista alemão Harry Benjamin descreveu o que seriam as características para se diagnosticar o “verdadeiro transexual”. Seu livro O fenômeno transexual, publicado naquele ano, forneceu as bases para se diagnosticar “o verdadeiro transexual” a partir de alguns indicadores que irão definir se as pessoas que chegam às clínicas ou aos hospitais solicitando a cirurgia são “transexuais de verdade”. Ele defendeu a cirurgia de transgenitalização como a única alternativa terapêutica possível para as pessoas transexuais. Para evitar que estas cometessem suicídio, as cirurgias deveriam ser recomendadas, e apenas elas poderiam representar a solução para as “enfermidades” daqueles que têm abjeção ao corpo.
Em 1969, realizou-se, em Londres, o primeiro congresso da Associação Harry Benjamin, que passou a se chamar Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association (HBIGDA), em 1977. A transexualidade passou a ser considerada uma “disforia de gênero”, termo cunhado por John Money em 1973.
A HBIGDA legitimou-se então como uma das associações responsáveis pela normatização do “tratamento” para as pessoas transexuais em todo o mundo e publica, regularmente, as Normas de Tratamento (Standards of Care – SOC, atualmente em sua 6ª versão) que orientam profissionais que trabalham com transexualidade em todo mundo. Além desse guia, dois outros documentos são reconhecidos como oficiais na orientação do diagnóstico de transexualidade: o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM – 4ª versão), e o Código Internacional de Doenças (CID, em sua 10ª versão).
O DSM, publicado desde 1952 pela Associação Psiquiátrica Americana (APA), serve de guia para hospitais e seguradoras de saúde ao redor do mundo. Nele, a transexualidade é classificada como uma doença. Já o CID, elaborado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a define como “transtorno de identidade de gênero”. Na França, porém, desde fevereiro passado, ela não é considerada mais uma patologia graças à ação do Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros.
Nesses documentos há o pressuposto de que a transexualidade, por se tratar de uma doença, tem basicamente os mesmos sintomas em todas as partes do mundo. No Brasil, é exatamente o fato de ser classificada como doença que permite que a cirurgia seja feita gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde, o SUS. Desde 1997, o procedimento é autorizado pelo Conselho Federal de Medicina como solução terapêutica para adequar a genitália ao sexo psíquico.
As intervenções cirúrgicas só são possíveis se atenderem a critérios estabelecidos por uma resolução do Conselho. Uma equipe composta por psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social deve produzir um laudo unânime sobre a necessidade do procedimento.
A consideração de gênero enquanto uma categoria diagnóstica tem como desdobramento a formulação de um protocolo rígido. Antes de chegar ao diagnóstico de “transtorno de identidade de gênero”, condição para realização das alterações corporais e dos documentos, o(a) demandante deve fazer terapia psicológica por anos, vestir-se com as roupas do gênero identificado (teste de vida real), fazer a hormonioterapia e vários testes psicológicos. Isto faz com que as opiniões no cenário nacional se dividam. Enquanto alguns defendem a despatologização da transexualidade e procuram chamar a atenção para como, segundo eles, uma categoria cultural foi apropriada pelo poder médico, transformando-a em uma categoria diagnóstica, outros consideram que afirmar a despatologização por si só seja perigoso, uma vez que, no Brasil, a saúde vem se constituindo na única política social que efetivamente tem incluído pessoas transexuais no país. O custo das intervenções médico-cirúrgicas para quem as deseja é extremamente caro fora do SUS. Por isso temem, sobretudo no cenário neoconservador que cerca o Brasil hoje, que nada passe a garantir o atendimento a partir da despatologização, o que deixaria as pessoas transexuais entregues ao mercado ou à filantropia.
Autora do livro “A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual” (CLAM/Editora Garamond), a socióloga Berenice Bento, é uma das vozes da primeira corrente: “Por que diagnosticar o gênero? Quem autoriza os psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas e outras especialidades que fazem parte das equipes multidiciplinares a avaliarem as pessoas transexuais e travestis como ‘doentes’? Se não existe nenhum exame clínico que conduza a produção do diagnóstico, como determinar a ocorrência do ‘transtorno’?”, questiona.
Para ela, o único mapa seguro que guia o olhar do médico e dos membros da equipe são as verdades estabelecidas socialmente para os gêneros. “Portanto, estamos no nível do discurso. Não existe um só átomo de neutralidade nestes códigos. Estamos diante de um poderoso discurso que tem como finalidade manter os gêneros e as práticas eróticas prisioneiras à diferença sexual”, afirma a socióloga.
Em sua análise, a Campanha “Stop Trans Pathologization” tem um papel histórico de produzir e aglutinar forças na luta pela desnaturalização do gênero. E, para ela, embora no Brasil a campanha ainda não tenha avançado muito, as mobilizações e iniciativas que acontecem em diversas partes do mundo acabarão por produzir efeitos múltiplos e rizomáticos. “Certamente, a APA terá que se posicionar de forma mais transparente e contínua sobre os interesses que a fazem continuar operando uma categoria cultura como categoria nosológica”, avalia.
Um modelo possível
No Brasil, embora ainda não tenha ocorrido uma discussão consistente sobre um modelo de atendimento possível para transexuais no SUS na ausência do CID, é possível, segundo alguns especialistas no tema, imaginar um modelo de atendimento a transexuais no SUS na ausência do CID, a partir do princípio da Integralidade. Professora do Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ) e coordenadora da “Pesquisa Nacional sobre Transexualidade e Saúde: condições de acesso e cuidado integral”, a pesquisadora Márcia Arán afirma que a necessidade do diagnóstico de “transtorno de identidade de gênero” como condição de acesso à saúde restringe em muito os processos de cuidado. Segundo a pesquisadora, é necessário construir uma noção mais ampliada de saúde, baseada na individualização do cuidado e na integralidade da assistência para que se possa acolher de fato as necessidades de saúde desta população.
“É preciso pensar e discutir alternativas de regulamentação do acesso à saúde que possam, mesmo reconhecendo o sofrimento psíquico em algumas pessoas, não enquadrá-las em uma patologia psiquiátrica”, avaliou, em recente entrevista ao CLAM. (Clique aqui para ler a íntegra)
A opinião do professor Ruben Matos (IMS/UERJ), vai ao encontro da defendida pela colega Marcia Arán. Para ele, o princípio da integralidade implica o reconhecimento de que há situações de sofrimento, que, embora não resultantes de uma doença, podem ser superadas com o uso de certas práticas de cuidado de saúde.
“Tal reconhecimento por si só já é suficiente para que se defenda a inclusão de tais procedimentos no rol daqueles a serem assegurados no âmbito do SUS. Por sua vez, a noção e a classificação de uma doença não é um requisito para a oferta de modalidades e procedimentos terapêuticos no SUS. Há que se recordar que a noção de doença é central na biomedicina, a racionalidade médica hegemônica. Mas há outras racionalidades médicas que não utilizam esta noção de doença, e oferecem recursos terapêuticos para situações de sofrimento que já estão incorporados no âmbito do SUS”, conclui.