CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Gênero no tráfico de pessoas

Para a antropóloga Adriana Piscitelli (Pagu/Unicamp), este é um momento de muita confusão no debate público sobre tráfico internacional de pessoas. Segundo ela, a discussão é dificultada no Brasil devido a uma discrepância entre o modo como o Código Penal pensa o tráfico internacional de pessoas – que é basicamente a facilitação para a prostituição no exterior ou, ao contrário, facilitar que alguém do exterior venha se prostituir no Brasil – e a formulação do protocolo de Palermo, que pensa o tráfico de pessoas como o processo de deslocamento e recepção destas sob condições de fraude, coerção e abuso de condição de vulnerabilidade, para serem exploradas em qualquer atividade no exterior. E mesmo utilizando a definição do Protocolo de Palermo, há problemas, porque, na análise da pesquisadora, como a condição de exploração sexual não está bem definida, muita gente acaba considerando que qualquer pessoa que migre e trabalhe em situação de dependência, com intermediação, deixando um percentual na indústria do sexo, é explorado sexualmente e, portanto, traficado.

“Muitos ignoram a primeira parte da definição do Protocolo, relacionada à fraude e à coerção, fundamentais para caracterizar o tráfico de pessoas, ou ampliam a noção de situação de vulnerabilidade para pensar que qualquer mulher de uma região pobre do mundo ou de uma classe social inferior, está em situação de vulnerabilidade. Portanto se alguém a convida, mesmo que não a tenha enganado, não limite seus movimentos, nem retire seu passaporte, se considera que está abusando da situação de vulnerabilidade. Outros lêem a questão da exploração sexual como qualquer trabalho na indústria do sexo que não seja puramente autônomo. Muitas vezes a mulher viajou para ser prostituta, não foi cerceada no seu direito de ir e vir, ninguém tirou seu passaporte, mas pelo fato de ela estar pagando um percentual no apartamento pelo programa que faz, isto é lido como tráfico, quando tecnicamente – de acordo com o Protocolo de Palermo – não deveria ser. Ao mesmo tempo, quando se trata de homens, migrantes irregulares, desempenhando serviços em outros setores de atividade, por exemplo na construção, em situações de trabalho sob coerção, ao ponto de perder a pele dos pés trabalhando sem as condições adequadas sobre o cimento, dificilmente se pensa que pode se tratar de uma situação de tráfico de pessoas”, diz Adriana.

Por este motivo, para ela, o seminário “Gênero no tráfico de pessoas”, realizado na semana passada (7 de agosto) na Unicamp sob sua coordenação, conjuntamente com Marcia Vasconcelos, da OIT, aconteceu em um momento oportuno e trouxe bons resultados, ao apresentar um viés de gênero e analisar os pressupostos sobre sexualidade, prostituição e exploração que incidem nas leituras enviesadas do protocolo. O seminário discutiu quais são os nós que fazem com que a questão do tráfico de pessoas apareça distorcida, propondo novos ângulos para repensar a problemática.

“Nossa idéia era apresentar dados de pessoas que têm trabalhado com tráfico de pessoas, pessoas que foram deslocadas para serem exploradas em qualquer setor de atividade, não apenas na prostituição, e em uma perspectiva de gênero considerar questões vinculadas às mulheres, a homens e às transexuais e travestis. O que muda muitíssimo o quadro”, avalia Adriana.

Segundo ela, as pesquisas indicam que a população das travestis – embora o número não seja grande – é um dos grupos que aparece como particularmente sujeita à violência. “Em relação ao pagamento extraordinário de dívidas, enquanto mulheres tendem a pagar 3 mil euros, uma travesti geralmente paga de 10 mil a 12 mil euros para os intermediadores. Inclusive, às vezes, podem sair daqui sem dívidas, porque pagaram r sua própria passagem, mas podem chegar fora e serem obrigadas a pagar pelo ponto, e com violência. Entre as brasileiras que eu tenho entrevistado – as quais apareceram nas pesquisas realizadas pela Secretaria Nacional de Justiça, com diversas parcerias, que fizemos no aeroporto de Guarulhos e também nas minhas pesquisas na Espanha – as travestis apareceram como sofrendo mais coerção. É algo que às vezes é ignorado, pois dificilmente se associa a idéia de vulnerabilidade e de discriminação de gênero a elas. E é importante comparar as experiências das travestis com as de mulheres e homens para ver as especificidades em termos de gênero que as atingem”, analisa.

O Seminário tratou não apenas de tráfico internacional de pessoas, mas também de tráfico interno. Nesse último, há fluxos significativos de homens que vão trabalhar na agricultura ou em carvoarias. De acordo com os pesquisadores, cerca de 80% dos casos de trabalho forçado existentes no Brasil são de tráfico interno, no sentido de que as pessoas foram obrigadas a deslocar-se para trabalhar ali ou foram enganadas em relação ao pagamento ou às condições de trabalho. “Isto certamente altera em muito a dimensão que se outorga à prostituição também em termos de tráfico interno de pessoas”, salienta Adriana.

Ela afirma, no entanto, que a intenção do encontro não foi dizer que o tráfico não existe, mas sim dar à questão uma clareza conceitual e uma dimensão afinada com o conceito de tráfico de pessoas do Protocolo de Palermo. Um exemplo das diferentes noções de tráfico presentes no debate público citado pela pesquisadora são as campanhas contra o tráfico de pessoas que põem ênfase na questão da prisão e do cárcere. “Existe uma campanha que tem uma imagem de uma mulher chorando dentro de uma mala e a mala é presa por correntes. Outra apresenta um coração atrás das grades. Essas propagandas fazem ênfase nas prisões, o que está de acordo com o protocolo de Palermo”, diz. Segundo a pesquisadora, a opinião pública é mobilizada com esta idéia da prisão, através de situações que aparecem em novelas, por exemplo. “As campanhas são coincidentes com isso, mas quando olhamos, por exemplo, para investigações orientadas pelo Código Penal, vemos que o que é definido como tráfico internacional de pessoas é outra coisa. Nossa crítica é que se adicionam casos de tráfico de pessoas, como se tratasse do mesmo conceito, e, na verdade, estamos operando com noções diferentes”, afirma.

“Não que não se deva informar a população sobre os riscos que existem e que não se deva proteger as vítimas, pelo contrário, as vítimas existem e devem ser protegidas, mas estamos em um momento de muita confusão e de uma excessiva ênfase à prostituição ao tratar-se do tema do tráfico, e isto precisa ser elucidado”, conclui a antropóloga.

Entre os diversos trabalhos apresentados vale destacar pesquisas sobre noções de sexualidade e masculinidade no trabalho forçado no Brasil, gênero no trabalho forçado de mulheres imigrantes, principalmente bolivianas, em São Paulo, sobre o deslocamento de travestis brasileiras, particularmente de Uberlândia, em Minas Gerais, para Itália. E, no que se refere ao conhecimento adquirido através do atendimento, o Posto de Atendimento Humanizado ao Migrante, que funciona no aeroporto de Guarulhos, ofereceu informações sobre mulheres e travestis que chegam deportadas e que apresentam indícios de tráfico. A gravação completa do seminário será disponibilizada, a partir da próxima semana, na home-page do PAGU.