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A pesquisa avançou em relação à de 2001 ao incluir os homens no escopo do trabalho. Houve, segundo Gustavo Venturi, um amadurecimento da complexidade do conjunto de questões e temas abordados e da importância de tomar essas questões como questões de gênero e, portanto, focar no aspecto relacional, ouvindo os jovens, que foi uma novidade importante em relação ao levantamento anterior.
De acordo com a pesquisa, questões como violência doméstica, aborto, contracepção, machismo, feminismo, moralismo e mercado de trabalho atestam que as desigualdades entre homens e mulheres se alastram por vários âmbitos da vida social. A seguir, destacamos os pontos abordados na apresentação dos dados da pesquisa no Rio de Janeiro.
Participação da mulher na política e no mercado de trabalho
Segundo o estudo, a relação entre mulher e política expressa disparidades de gênero: 78% das mulheres entrevistadas acreditam que elas estão preparadas para governar, número próximo da opinião dos homens (76%); 70% das entrevistadas concordaram com a frase “a política seria melhor se houvesse mais mulheres em postos importantes”, enquanto que 49% dos homens – portanto, menos que a metade – consentiram com a frase.
Gustavo Venturi enfatiza que números como esses revelam o conservadorismo de parte da sociedade brasileira. “Qual o grande paradoxo sobre a questão da mulher na política hoje? Temos uma presidente mulher e, no entanto, o nosso Parlamento tem apenas 8% de mulheres, fazendo-nos o penúltimo país neste ranking na América Latina”, afirmou, referindo-se ao ranking da União Interparlamentar, no qual o Brasil aparece, em 2011, na 108ª posição mundial (caiu uma posição em relação a 2010). Não à toa: das 513 cadeiras na Câmara Federal, apenas 44 são ocupadas por mulheres deputadas. No Senado, são apenas 13 senadoras para 68 senadores.
Para Venturi, esses números mostram também uma realidade desigual em termos de papéis sociais desempenhados pelas mulheres. “Uma das hipóteses levantadas a partir dos dados da pesquisa é que justamente o que se chama de dupla jornada – trabalho e afazeres domésticos – pode ser, na verdade, uma tripla jornada. Ela pode estar trabalhando, cuidando da casa e eventualmente estudando. E o exercício da política seria uma quarta tarefa impossível de ser realizada. Existem dados que mostram que quase todos os homens que estão na política estão casados, ou seja, têm uma mulher em sua retaguarda. O inverso, entretanto, não é verdadeiro: muitas mulheres que estão na política estão ao custo de serem solteiras ou separadas”, explicou.
Segundo a pesquisa, 59% das mulheres fazem parte da população economicamente ativa (PEA), número que contrasta com os 79% dos homens inseridos na PEA. Gustavo Venturi enfatiza que isso representa 2/3 do mercado dominado por homens. “Além disso, há um problema de concentração: ¼ das mulheres na PEA ocupam a função de empregadas domésticas, babás, faxineiras. Ou seja, em funções de baixa qualificação. Ou são professoras e vendedoras”, afirmou.
Em relação à pesquisa de 2001, o número de mulheres responsáveis pelo sustento da família ficou praticamente estável, aumentando de 29% para 30%. O número de mulheres que chefiam família também teve leve aumento, de 35% para 39%.
Para Bila Sorj, o aumento dos programas de assistência social, na última década, como o Bolsa Família, distribuído pelo governo federal para famílias de baixa renda, pode ter um impacto na estagnação da participação da mulher no mercado de trabalho. No entanto, de acordo com a professora da UFRJ, a inserção da mulher no mercado está consolidada. “O trabalho é hoje em dia uma segunda natureza da mulher. E aqui no Brasil a participação delas no mercado é um aspecto muito valorizado”, resumiu.
Para Ângela Fontes, da Articulação das Mulheres Brasileiras (AMB), a naturalização da divisão sexual do trabalho tende a explicar a presença da mulher em postos de baixa qualificação e informais. “É visível o sexismo no mercado de trabalho”.
Saúde sexual e reprodutiva
A pesquisa também mapeou o panorama nacional a respeito da saúde sexual e reprodutiva. O uso de preservativo, mostram os dados, é um recurso predominantemente masculino: 25% das mulheres afirmaram que, na última relação sexual, o parceiro usou o preservativo, ao passo que apenas 1% recorreu à camisinha feminina. Por sua vez, 68% delas reconheceram que não usaram o preservativo; e entre eles, 60% também admitiram ter tido relações sem proteção.
Em matéria de contracepção, o panorama revela que a responsabilidade nesse item ainda recai preferencialmente sobre as mulheres: em 2001, os números indicavam que 24 % das mulheres usavam pílula; em 2011, houve leve aumento para 25%. A utilização da laqueadura apresentou queda: de 26% das mulheres, em 2001, para 21% no estudo atual. O uso da camisinha masculina praticamente se estabilizou: de 18% foi para 19%.
O aborto e o “universo de moralidade”
O tema do aborto também foi pesquisado no estudo da Perseu Abramo. Das mulheres que assumiram ter recorrido a métodos para interromper uma gravidez, 39% recorreu a medicamentos como o citotec, diante de 36% na pesquisa de 2001; 29% preferiu ir a uma clínica (30%, em 2001); 20% fez uso de remédios caseiros, como chás (eram 22%, em 2001); 14% recorreu a uma parteira (em 2001, foram 13%); e 3% usaram outros métodos.
Ângela Fontes, da AMB, criticou o panorama dos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil. “Sobretudo as mulheres encontram sérias e graves limitações em sua auto-determinação reprodutiva”, afirma, destacando as condições muitas vezes precárias dos métodos e locais onde o aborto clandestino se realiza.
A interferência de concepções religiosas no campo da reprodução é um aspecto evidente na pesquisa. Para 59% das mulheres e dos homens entrevistados, as Igrejas estão certas ao tentar controlar as leis sobre aborto. Já 26% delas e 27% deles manifestaram-se contra a interferência religiosa nas leis.
Para Maria Luiza Heilborn, coordenadora do CLAM, os dados mostram um universo forte de moralidade. A pesquisa mostra que o número de mulheres que acreditam que a lei sobre aborto – permitido apenas em caso de estupro ou risco de morte materna – deve ser mantida aumentou de 59%, em 2001, para 61%. No caso dos homens, 69% acreditam que a legislação deve ficar como está. A mudança na lei, ampliando os casos de aborto legal, deveria ser feita para 20% das mulheres, um aumento de 4% em relação à pesquisa de 2001. “Avançamos muito pouco em matéria de aborto. A aceitação da Igreja como legítima na formulação das leis tem relação com essa rejeição à interrupção da gravidez”, avaliou a antropóloga.
Segundo Gustavo Venturi, as concepções religiosas e os setores evangélicos aparecem claramente na pesquisa como os mais resistentes na questão. No item punição ao aborto, 48% das mulheres e 58% dos homens concordam que a interrupção voluntária da gravidez deve ser punida. Desse percentual, 32% das mulheres e 37% dos homens defendem a prisão como forma de punição; 9% delas e 7% deles acreditam que penas sócio-educativas deveriam ser adotadas. Para 30% das mulheres, o aborto não deveria ser punido em nenhum caso, enquanto que 23% dos homens pensam dessa forma. Para o pesquisador, o debate em torno dos permissivos legais do aborto está crescendo. Para os casos de anencefalia dos bebês, 6% das mulheres manifestaram-se a favor da legalização para esses casos. “Já há, inclusive, uma parcela da população que acredita que já foi aprovado o aborto em casos de anencefalia, embora o Supremo Tribunal Federal ainda esteja discutindo esta matéria. Acredito que caso haja uma decisão contra, vai haver uma reversão ainda maior em relação às outras questões”, afirmou.
Violências contra a mulher: do ambiente doméstico ao nível da saúde
A violência contra as mulheres mostrou-se uma realidade espalhada por diversos espaços: tanto no ambiente doméstico quanto no ambiente hospitalar, elas são vítimas freqüentes de constrangimentos.
A pesquisa aponta experiências de violência institucional no nível da saúde: 25% das mulheres entrevistadas confirmaram ter sofrido algum tipo de maltrato no parto, na rede de saúde privada e pública. Das entrevistadas que tiveram filhos, 23% ouviram algum tipo de despropósito, como “não chora não que ano que vem você estará aqui de novo” ou “na hora de fazer (o filho) não chorou, não chamou a mamãe, por que está chorando agora?”.
No espaço doméstico, a pesquisa indica que, mesmo que 91% dos homens considerem errado bater em uma mulher em qualquer situação, 6% pensam que “uns tapas de vez em quando é necessário” e 2% julgam que “tem mulher que só toma jeito apanhando bastante”. Em comparação com 2001, o número de mulheres que afirmou já ter sofrido algum tipo de violência (cerceamento, ameaça, agressão verbal, física, sexual ou assédio) aumentou levemente de 17% para 18%. No entanto, enquanto o estudo de dez anos atrás apontava um índice de 8 mulheres espancadas a cada 2 minutos no Brasil, a pesquisa realizada em 2010 mostra que atualmente são 5 mulheres espancadas a cada 2 minutos – projeção feita, segundo Gustavo Venturi, a partir do número de mulheres que, ao confirmarem terem sido espancadas (10%), relataram ter sido no ano anterior (18%). E revela ainda outro dado : uma em cada 5 dessas mulheres espancadas (uma ou mais vezes) continua a relação com o agressor.
O percentual de mulheres que afirmou nunca ter sofrido violência manteve-se em 80%. A Lei Maria da Penha mostrou-se um instrumento legal difundido na sociedade brasileira: 84% das mulheres e 85% dos homens afirmaram conhecer ou ter ouvido falar.
Para Nilcéa Freire, ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), esses números mostram haver um núcleo duro conservador e machista na sociedade brasileira. No entanto, a Lei Maria da Penha, destacou a representante da Fundação Ford no Brasil, exerce uma inibição do ponto de vista moral, o que é um grande benefício social. “A pesquisa da Perseu Abramo e do Sesc é fundamental para informar as políticas públicas. Hoje, o governo federal conta com instrumentos como o Pacto de Enfrentamento da Violência contra a Mulher para, através de uma rede de serviços de atendimento, campanhas educativas e intervenção cultural, mudar esse quadro tão dramático na sociedade brasileira’, concluiu Nilcea.
Feminismo
Os números do estudo apontam que 74% das mulheres consideram que a situação delas melhorou em relação há 20 ou 30 anos atrás. Sobre o feminismo, a maior parte das mulheres afirmou não se considerar feminista: segundo a pesquisa, 31% delas se dizem feministas, ao passo que 68% não se consideram. Esses dados, entretanto, segundo Bila Sorj, mostram que se declarar feminista está se tornando cada vez mais legítimo do que no passado. “O feminismo parece estar perdendo a carga negativa que tinha nos anos 1970. O ideário da igualdade está presente, mesmo que na prática seja diferente”, frisou.
Maria Luiza Heilborn discordou dessa visão. De acordo com a coordenadora do CLAM, 30% das mulheres se declarando feministas é um número baixo. “São dados que contrastam com o esforço do movimento e das ações de governo. Mulheres beneficiárias das lutas feministas que conseguiram entrar no mercado e se escolarizar não percebem a luta que está por trás dessas conquistas. Acredito que o estigma em torno do feminismo ainda permanece forte”, salientou Maria Luiza.
Dados sobre o machismo também suscitaram discussões na mesa de debates. De acordo com a pesquisa, parece consenso que o machismo é um fenômeno perceptível no Brasil. Para 94% das entrevistadas e 90% dos entrevistados, o machismo existe, embora 74% dos homens não se vêem como machistas. Para Maria Luiza Heilborn, não existe um contraponto no conjunto de mulheres de se declararem feministas, uma vez que ainda 22% dos homens se declaram machistas.
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