CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Gravidez e HIV

Por Priscila Soares*

No Brasil, de 2000 a 2014, foram notificadas 84.558 gestantes infectadas com o HIV. A maior concentração de casos está na faixa etária entre 20 a 29 anos e com ensino fundamental incompleto (31,6%), prevalecendo a ocupação “do lar” (59%), segundo dados do Ministério da Saúde . Esses indicadores demarcam desigualdades que acarretam maior vulnerabilidade ao HIV/AIDS, incluindo dificuldades de acesso aos serviços e cuidados de saúde, autocuidado e obtenção de apoio social.

Atualmente, uma parcela considerável dos diagnósticos de infecção por HIV na população feminina se dá durante o período gestacional, mediante a triagem sorológica anti-HIV. Entretanto, são numerosas as dificuldades das mulheres para terem acesso à testagem, à prevenção da transmissão vertical e ao acompanhamento médico pós-natal; entre estas se destaca o despreparo dos profissionais de saúde e o receio do estigma no contexto do serviço, da família e da sociedade.

Em outubro de 2003, o Ministério da Saúde reuniu o Comitê Assessor para Recomendações de Profilaxia da Transmissão Vertical do HIV e Terapia Antirretroviral em Gestantes (TARV) com o objetivo de analisar as condições de implementação das recomendações no Sistema Único de Saúde. O Comitê abordou temas como o aconselhamento; a terapia antirretroviral; os critérios para a escolha da via de parto; os cuidados com o recém-nascido e recomendações no puerpério; e a vigilância epidemiológica. Foram tratados também os desafios a serem superados no âmbito da atenção às usuárias, como a dificuldade dos profissionais de saúde em abordar questões relacionadas à sexualidade, DST/HIV/Aids, saúde reprodutiva, e uso de drogas no contexto do aconselhamento.

Em todos os casos, o aconselhamento pós-teste é reforçado como um instrumento imprescindível para a promoção da atenção integral da mulher, possibilitando avaliar vulnerabilidades e riscos ao longo de sua trajetória, tendo como foco a saúde sexual, a saúde reprodutiva e os direitos humanos. Atualmente, essa estratégia se insere em vários momentos do atendimento e em diversos contextos dos serviços no SUS, inclusive no pré-natal e no parto, como atestam diversos documentos do Ministério da Saúde . Contudo, para um grande contingente de mulheres que ainda não têm sequer acesso a serviços de pré-natal, o Ministério da Saúde propõe a realização do teste rápido no momento do parto, ao menos entre aquelas que conseguem uma vaga numa maternidade pública.

Muitas são as recomendações prescritas em manuais e documentos oficiais elaborados pelo Ministério, visando orientar a conduta do profissional de saúde: informar o resultado do exame; orientar sobre as ações de prevenção da transmissão vertical do HIV a serem implementadas antes e durante o parto; orientar quanto à via de parto de acordo com a indicação obstétrica e carga viral (o resultado deste teste mostra se o vírus está se reproduzindo no organismo); fazer os encaminhamentos necessários e o acompanhamento médico/laboratorial; promover apoio emocional; enfatizar a necessidade de testagem do(a) parceiro(a). Ademais, é responsabilidade da equipe de profissionais assegurar o direito reprodutivo das mulheres portadoras do HIV, estimulando o diálogo sobre o possível desejo de engravidar ou não. Para aquelas que manifestarem este desejo, as diretrizes atuais (Protocolo e Recomendações ) indicam a realização prévia de um estudo completo de avaliação clínica e ginecológica, melhorando as condições de saúde maternas, com a maior redução possível na carga viral e o restabelecimento do CD4 (o teste que mede a quantidade de linfócitos T CD4+ em sangue é o melhor indicador de como está funcionando o sistema imunológico) a níveis que minimizem os riscos à saúde durante a gestação. Clique aqui para acessar as orientações do Portal do Ministério da Saúde para o acompanhamento durante a gravidez .

Entretanto, diante da fragilidade estrutural dos serviços, o processo de institucionalização das recomendações do Ministério se mostra mais atrelado à vontade pessoal de uma parcela pequena de profissionais de saúde. Para estes e para as organizações de Pessoas Vivendo dom HIV/Aids, é evidente a distância entre as medidas recomendadas e a realidade encontrada. Como fazer para superar a descontinuidade entre as políticas e o cotidiano das práticas?

Em síntese, a rede de assistência às grávidas vivendo com HIVAids encontra diversos desafios: a persistência do estigma; a carência de condições para o exercício de direitos; uma infraestrutura precária e profissionais com pouco treinamento para tratar do tema HIV/Aids na gravidez, fundamentalmente na Atenção Básica e em maternidades públicas. Nesse cenário, destituem-se as particularidades e a trajetória da gestante HIV desde sua entrada na maternidade até o tratamento. Nega-se a elas autonomia, ao não ser garantido o direito de escolha, sendo que as mesmas não são consultadas sobre o teste do HIV.

O direito à adequada informação se configura como instrumento de empoderamento das mulheres vivendo com HIV, pois reforça a importância do exame para sua saúde e a do bebê. Ao desconsiderar a experiência de vida da gestante, a sua bagagem cognitiva, as representações sociais sobre a maternidade, sua possibilidade de escolha e gestão sobre o corpo e a vida, suas dores e sensações tornam-se mero objeto da intervenção médica. Integro o projeto “Estigma, gênero e trajetórias reprodutivas no contexto da Aids do Rio de Janeiro” (Fiocruz/FAPERJ), coordenado pela Professora Simone Monteiro (ENSP), investiga os fatores socioculturais, econômicos e institucionais que determinam as decisões e as práticas sexuais e reprodutivas de grávidas vivendo com HIV/Aids, usuárias dos serviços de saúde do município do Rio de Janeiro. O estudo traz situações dramáticas de mulheres que enfrentam diversos tipos de violência nos serviços de saúde.

A pouca capacitação de profissionais da rede pública municipal e estadual, bem como a falta de ferramentas para combater o estigma presente no meio social do diagnóstico do HIV, trazem enormes prejuízos às gestantes no Sistema Único de Saúde. Nesse sentido, com objetivo de analisar a política de atendimento às mulheres e gestantes vivendo com HIV no estado do Rio de Janeiro, a Comissão de Defesa de Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ, presidida pelo deputado Marcelo Freixo, promoveu, em novembro de 2015, uma Audiência Pública sobre o tema das gestantes vivendo com HIV/Aids e seus direitos sexuais e reprodutivos.

O que é uma Audiência Pública?

A Audiência Pública é uma modalidade de participação popular no exercício da atividade estatal, através da efetiva escuta de representantes da sociedade civil acerca de temas de relevância pública. O dispositivo é garantido pela Constituição Federal de 1988 e regulado por leis federais, constituições estaduais, leis orgânicas municipais e outras normativas. Nesse espaço, o Poder Público deve expor o tema em pauta e debater com a Sociedade Civil a elaboração de um Projeto de Lei, formulação ou avaliação de uma política pública, entre outros.

No caso da ALERJ, as audiências públicas estão previstas no artigo 26, inciso II, do seu Regimento Interno e tem como objetivo dar voz ativa à sociedade civil no exercício da atividade legislativa, especialmente no que tange à fiscalização da atividade do poder executivo e proposição legislativa.

Gestantes Vivendo com HIV/Aids: direitos sexuais e reprodutivos.

De acordo com o Protocolo para Prevenção de Transmissão Vertical de HIV do Ministério da Saúde, a “porta de entrada” para o diagnóstico da infecção pelo HIV em gestantes no Sistema Único de Saúde são as Unidades básicas de Saúde, o Programa da Saúde da Família (Clínicas da Família no Rio) e os Centros de Testagem e Aconselhamento. Estes são responsáveis pela captação das gestantes para o pré-natal e realização de testagem para o HIV. Não obstante, existem relatos de mulheres que descobrem ter o vírus no momento do parto, o que evidencia a omissão deste item do protocolo no Rio de Janeiro.

Como afirmei na Audiência Pública, temos um contingente enorme de mulheres sem acesso ao pré-natal, com direitos reprodutivos violados por viverem com HIV/Aids. Grande parte dos diagnósticos ainda são realizados durante a gestação, nos exames pré-natais ou somente no momento do parto, em virtude de preconceito. Não é respeitado o direito da mulher de tomar decisões de forma livre e autônoma.

Uma das entrevistadas da nossa pesquisa, uma jovem de 27 anos, só descobriu sua condição de saúde após acordar na maternidade com o peito enfaixado. Ao ouvir o bebê chorar e se perceber impedida de amamentar, ela perguntou a uma enfermeira o que estava acontecendo. A resposta da profissional de saúde foi “se você tivesse feito o pré-natal, você saberia o que tem”. Assustada, a jovem foi até a prancheta colada na cama e leu na lista de exames realizados pelo hospital a informação: “HIV positivo”. A jovem não recebeu aconselhamento pré- e pós-teste, nem os devidos cuidados médicos. Ela chorou sozinha sem saber como agir.

Mulheres infectadas pelo HIV recebem orientações por parte dos profissionais de saúde protocoladas pelo Ministério, de não amamentação, visando a prevenção da transmissão do vírus da mãe pro filho.

O estigma no parto

Ana Lúcia Pinheiro, ativista do Movimento Nacional de Cidadãs Posithivas, que vive desde 1992 com HIV, relatou:

“Descobri que sou soropositiva porque pedi para o médico fazer o exame. Eu, que sempre ouvi da minha mãe que grávida não podia nem tomar dipirona, sai com uma bolsa de remédios do posto. Quando chegou o momento do parto, ao falar que era HIV positiva e que precisava de uma cesariana, vários lugares diziam que não tinha chegado a hora. Segui andando procurando atendimento e só consegui fazer o parto porque me calei ao perceber que estava sofrendo preconceito. Minha cirurgia foi sem anestesia porque não dava tempo. Eu sentia o médico me cortar”,

Antes da HAART (Terapia Antirretroviral Altamente Ativa, conhecida como “coquetel”) e do Protocolo ACTG 076 não havia como prevenir a transmissão vertical. O cenário atual, em alguns contextos mais vulneráveis, mostra muitas similitudes com aquele do início da década de 90. O relato de Ana Lúcia continua: “Passaram anos e eu continuo ouvindo esse tipo de relato nas rodas de gestantes atendidas pelo movimento”.

O filho de Ana Lúcia hoje tem 23 anos e apesar de não ter conseguido um parto em condições adequadas, não houve transmissão vertical (de mãe para o filho no momento do parto) do vírus HIV. Sabe-se, no entanto, que cerca de 65% dos casos de transmissão vertical do HIV ocorrem durante trabalho de parto ou no parto propriamente dito.

Desigualdade no atendimento

Para Alexandre Chieppe, subsecretário de Vigilância em Saúde, o estigma social é um obstáculo da promoção de políticas públicas, pois impede o diagnóstico, o tratamento e o acesso aos serviços de saúde. No plano da prevenção e do cuidado, motiva o sub-diagnóstico e fomenta a ideia de que o tratamento se resuma ao acesso à medicação. Atualmente, 106 mil pessoas foram diagnosticadas vivendo com HIV/Aids no Rio de janeiro, sendo 90% na região metropolitana.

A pesquisadora Simone Monteiro (ENSP/Fiocruz) argumentou que os casos de discriminação e violência decorrentes da revelação do HIV, somadas às propostas de criminalização da transmissão do vírus da Aids (para mais informações, clique nas referências a seguir: CLAM 2013 ; ABIA 2015 ), contribuem para a ocultação do diagnóstico. Todavia, cabe indagar sobre as implicações desse ocultamento. Historicamente, o enfrentamento do estigma da Aids envolveu respostas sociais voltadas para a publicização da condição da soropositividade, ilustrada pela campanha SILENCIO = MORTE, visando o acesso ao cuidado e a conquista dos direitos das pessoas vivendo com HIV/Aids. Embora o sigilo do diagnóstico seja assegurado por lei, e possa ser compreendido como uma forma de proteção da discriminação, a não revelação do HIV pode comprometer o combate do estigma da Aids e colaborar para sua atualização.

O deputado federal Jean Wyllys, que participou da audiência pública, ressaltou a incidência da desigualdade social com relação às condições de existência das pessoas que vivem com o vírus da Aids. Haveria dois grupos de pessoas que vivem com HIV/Aids no Brasil: o primeiro, com a tecnologia de ponta de medicamentos e acesso socioeconômico a uma vida plena de direitos, com saúde, educação, informação, transporte, teto e saneamento básico. Porém, para um segundo grupo de pessoas, aqueles carentes de recursos econômicos e de acesso a essas condições básicas e direitos, o acesso à saúde é impedido também pelo estigma, o que também acaba se refletindo na falta de condições adequadas de atendimento e violações de direitos.

O deputado desde 2013 apresenta emenda parlamentar para destinar verbas à manutenção do atendimento e acolhimento a mulheres grávidas feito pelo Hospital Universitário Gaffrée e Guinle, no Rio de Janeiro. O hospital atravessa dificuldades financeiras que comprometem o atendimento às pessoas que vivem com HIV/Aids. Constatou-se que, por conta da situação falta de financiamento público do Ministério da Educação (MEC), 106 leitos já foram fechados, e somente 20 cirurgias diárias de baixa complexidade são feitas. Atualmente, segundo o diretor da unidade, Fernando Ferry, o orçamento destinado é de R$22 milhões, porém, o orçamento ideal seria de R$ 60 milhões para o funcionamento pleno do hospital.

Encaminhamentos

O Deputado Estadual Marcelo Freixo propôs a apresentação de Projeto de Lei que visa a implementação do Protocolo para Prevenção de Transmissão Vertical de HIV e a formação de um grupo de trabalho para construção de propostas legislativas em todos os níveis para incorporação do Protocolo do Ministério da Saúde. Ele ainda comunicou que apresentou emenda parlamentar, já aprovada em primeira sessão, em favor da Secretária de Saúde, com vistas à capacitação de servidores no atendimento à gestantes com HIV/Aids. Também propôs articular com o vereador Paulo Pinheiro – que participou da audiência – a organização de outro encontro para discussão da política de atendimento às gestantes vivendo com HIV/Aids, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, pois grande parte do atendimento cabe a rede municipal de saúde.

A despeito de prevalecer uma perspectiva não prescritiva nas diretrizes em saúde reprodutiva, principalmente pelo uso do aconselhamento como estratégia para permitir que as decisões sejam tomadas de forma livre e autônoma, os valores e atitudes de profissionais de saúde, somados às normas sociais e estereótipos relativos à maternidade/paternidade, comprometem os direitos das usuárias de serviços de saúde. Os eventos reprodutivos (gravidez, parto, contracepção) e a prevenção das DST/Aids têm diferentes significados simbólicos, mas ambos estão diretamente relacionados às práticas sexuais e envolvem negociações sobre o uso de insumos contraceptivos, obstétricos e preventivos. As aproximações discutidas na Audiência Pública apontam para a necessidade de uma articulação entre o campo da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos, particularmente no caso das mulheres vivendo com HIV/Aids em idade reprodutiva.

Os serviços de saúde têm o potencial de contribuir para a desmistificação da Aids, incrementar o conhecimento dos direitos das pessoas vivendo com HIV/Aids e fomentar seu acesso à saúde em melhores condições. Entretanto, essa luta não deve privilegiar o plano individual, mas o desenvolvimento de políticas sociais e ações comunitárias, voltadas para mudanças culturais e estruturais capazes de combater os fatores que alimentam o estigma, como as desigualdades sociais e de gênero, a homofobia e o preconceito contra as prostitutas e usuários de drogas.

* Priscila Soares é doutoranda da Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro.

Participaram da Audiência Pública:

Deputado Estadual Marcelo Freixo – Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania

Priscilla Soares – Doutoranda da ENSP/FIOCRUZ

Ana Lúcia Pinheiro- representante do Movimento Nacional de Cidadãs Posithivas

Simone Monteiro – Doutora e Pesquisadora do Laboratório de Educação em Ambiente e Saúde (IOC Fiocruz) e professora da Escola Nacional de Saúde Pública

Mariana Darmont – psicóloga do serviço de atenção especializada às gestantes vivendo com HIV do Hospital dos Servidores do Estado

Fernando Ferry – Diretor do Hospital Universitário Gafrée e Guinle

Monica Almeida – Subsecretária de Atenção à Saúde