Aborto, parceria civil e conjugalidade homossexual são os temas enfocados pelos dois novos livros da coleção Sexualidade, Gênero e Sociedade (CLAM / Editora Garamond): a coletânea Novas Legalidades e Democratização da Vida Social: Família, Sexualidade e Aborto e Novas Famílias, do sociólogo Luiz Mello, que serão lançados em eventos nas cidades do Recife e de Florianópolis, respectivamente.
O primeiro reúne trabalhos apresentados durante seminário acontecido em Recife, em 2003, numa parceria do CLAM com o SOS Corpo – Instituto Feminista para a democracia. O título de seminário e livro – Novas Legalidades – é, nas palavras do antropólogo Sérgio Carrara e da psicóloga Anna Paula Uziel, que assinam a apresentação da obra, propositadamente provocativo, já que a publicação privilegia, dentro de um leque possível de temas, assuntos como o aborto e a parceria civil entre pessoas do mesmo sexo.
Passados dois anos, o aborto continua na ilegalidade e o projeto de Parceria Civil (PCR) ainda tramita na Câmara. Os temas permanecem atuais, são lutas prioritárias das agendas do movimento de mulheres e do movimento homossexual. “A própria discussão sobre os direitos sexuais apontava para a necessidade de potencializar a sinergia existente entre esses dois movimentos”, afirma Carrara. “A luta pelo aborto e a luta pela união civil têm em comum o fato de confrontarem o biopoder de modo semelhante”, avalia.
Vale ressaltar a trajetória dos dois movimentos que, num primeiro momento, percorreram caminhos distintos na busca tanto pela legalização do aborto quanto pelo reconhecimento da legitimidade das relações amorosas entre pessoas do mesmo sexo. Enquanto o movimento feminista sempre lutou através do Legislativo – vide os projetos de lei pela legalização e descriminalização do aborto – o movimento gay foi primeiro ao Judiciário – basta lembrar as batalhas nos tribunais de Justiça pelo direito à herança de parceiros do mesmo sexo ou ao direito à adoção de crianças.
“Hoje, temos lutas do feminismo no Judiciário – como as ações na Justiça pelo direito ao aborto de fetos anencéfalos, e também propostas do movimento GLBT no Legislativo, como o próprio PCR e outras que já se tornaram leis, como o direito de estender o plano de saúde ao parceiro do mesmo sexo”, analisa Anna Uziel.
Os textos da publicação mostram que os dilemas da construção da liberdade e da autonomia, como horizonte político de uma vida social plenamente democrática, permanecem como um desafio para a própria definição de democracia. A coletânea, organizada por Maria Betânia Ávila, Ana Paula Portella e Verônica Ferreira, é dividida em duas partes principais: Família e sexualidade e Aborto. A primeira aborda a questão da homossexualidade e do Direito, levantando temas como a parceria civil e as políticas e direitos sociais relativos ao movimento homossexual no Brasil.Os textos da segunda parte – Aborto – trazem à luz os sujeitos da luta pela legalização do aborto no país e abordam questões como planejamento familiar e as decisões no Parlamento.
A coletânea será lançada no dia 23 de novembro durante o Seminário Nacional Enfrentamento da Violência contra as Mulheres: um olhar crítico sobre desafio e perspectivas, evento promovido pelo SOS CORPO – Instituto Feminista para a Democracia. O Seminário, que acontece entre 23 e 25 de novembro, em Recife, marca o encerramento do Projeto Observatório da Violência contra a Mulher no Estado de Pernambuco, desenvolvido pelo SOS CORPO com o apoio da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.
Novas Famílias
O sociólogo Luiz Mello lembra que, em 1993, fazer uma tese sobre conjugalidade homossexual parecia ainda pouco relevante no contexto dos grandes debates sobre família no Brasil. Naquele ano, Mello concorria a uma das poucas vagas no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília, onde, apesar da pouca visibilidade do tema, apresentou um anteprojeto de tese sobre relações amorosas estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Dois anos depois, a apresentação do Projeto de Lei que propõe a regulamentação da união civil entre pessoas do mesmo sexo colocaria a legitimidade das relações amorosas homossexuais na ordem do dia.
Enquanto o Projeto de Lei ainda espera aprovação no Congresso, a tese defendida pelo sociólogo foi adaptada e está sendo publicada no livro Novas Famílias – Conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo, que o CLAM e a Editora Garamond lançam no dia 28 de novembro, em Florianópolis.
Ao analisar a luta pelo reconhecimento social e jurídico da dimensão familiar das uniões homossexuais – no tocante a assuntos como conjugalidade e parentalidade homossexual – Mello afirma que o principal obstáculo enfrentado por gays e lésbicas, especialmente quando se trata de adoção de crianças, é o mito da complementaridade dos sexos e dos gêneros.
“A competência moral e social para desempenhar funções atribuídas à instituição familiar – principalmente as relativas à parentalidade – tem sido restrita ao casal homem-mulher”, analisa ele. “Essa interdição aos casais homossexuais alicerça-se na defesa irrestrita da conjugalidade e da parentalidade como possibilidades limitadas ao universo da norma heterocêntrica”.
Em contrapartida, Mello apresenta discursos de atores sociais envolvidos nos embates ideológicos em torno da família, da sexualidade e da (i)legitimidade social das relações amorosa homossexuais, tanto na esfera do Estado quanto na da sociedade civil. Por meio da análise desses discursos, o autor constata que o conflito existente entre uma visão de mundo laica e outra religiosa constitui o núcleo dos embates pelo reconhecimento da legitimidade da conjugalidade homossexual.
Além do empecilho do heterocentrismo, o sociólogo aponta para uma outra especificidade de gênero muito relevante para a compreensão dos rumos tomados pelos debates envolvendo o Projeto de Lei 115/95: o androcentrismo. Mello lembra que, enquanto a autora do projeto, a deputada Martha Suplicy, é uma mulher e feminista, a possibilidade de sua aprovação depende dos homens, maioria absoluta no Congresso Nacional.
“A um Estado controlado basicamente por homens associam-se, como atores sociais importantes, igrejas, cujos postos de comando também são ocupados por homens, que pautam sua atuação política em crenças e em valores socialmente defendidos como masculinos,muitas vezes numa feição claramente machista”, observa o autor.
O trabalho de adaptação da tese para o livro permite que os textos possam ser lidos seqüencialmente ou de forma independente, já que são articulados, mas autônomos entre si. No primeiro capítulo, o autor trata da diversidade familiar na contemporaneidade e coloca em cena as “novas famílias”. Os três capítulos seguintes enfocam o Projeto de Lei, da sua criação às discussões no plenário, dando ênfase especial à participação da sociedade civil na Comissão Especial. O autor aborda ainda a visão religiosa, analisando a posição da Igreja Católica em relação à conjugalidade e à parentalidade homossexuais. O livro termina com um panorama da participação de gays e lésbicas na cena política brasileira.
O lançamento ocorre na segunda-feira, 28 de novembro, em Florianópolis.