A Revista Uruguaya de Antropología y Etnografía (RUAe) acaba de lançar dossiê sobre as relações entre amamentação e práticas de cuidado, considerando a intersecção de marcadores sociais como raça, classe e gênero. O dossiê apresenta significativas contribuições para o campo de estudos sobre saúde, gênero e cuidados na América Latina.
O dossiê, organizado por Natalia Fazzioni (IFF/Fiocruz), Marina Nucci (CLAM/IMS/UERJ) e Valentina Brena (UDELAR), foi publicado no volume 10, número 2 (2025) da revista, e é composto por seis artigos, uma resenha de livro e uma entrevista.
O dossiê foi organizado a partir de três eixos temáticos. O primeiro deles aborda os discursos e representações sobre as práticas de amamentação e suas repercussões sociais em diferentes grupos sociais.
Nesse eixo, há o artigo de Olivia Nogueira Hirsch, “Filhos biológicos, de ‘leite’ e da ‘madame’: a vida entre o cuidado como obrigação, ajuda e profissão”, que discute as hierarquias de trabalho e cuidado.
Há também o artigo de Elisa Elsie Costa Batista da Silva Beserra, Ana Paula Sabiá e Maria Ângela Pavan “Amamentação nas fotoperformances contemporâneas e um breve panorama da história da arte ocidental: deusas, santas e mulheres”, que aborda as representações culturais e artísticas envolvidas em torno da amamentação.
Ainda dentro desse eixo, o artigo de Camylla Sales da Silva Santana e Marcos Antonio Ferreira do Nascimento, “Semana Mundial de Aleitamento Materno: presenças e ausências na campanha brasileira”, apresenta uma análise das campanhas da Semana Mundial de la Lactancia Materna (SMAM), desenvolvida pela World Alliance for Breastfeeding Action, com o objetivo de estimular e proteger a lactância.
Finalmente, ainda nesse eixo, há a resenha sobre o livro A History of the Breast de Marilyn Yalom, escrita por Eliana Laurino Cadenasso, que revisita os capítulos da obra de Yalom para refletir sobre as simbologias em torno do seio feminino, apropriado por diferentes culturas e épocas históricas, em contextos que vão desde a ciência, passando pela arte e pelo erotismo.
O segundo eixo aborda cuidados e experiências de amamentação que não se encaixam nos modelos hegemônicos, como ocorre à diversas mulheres e famílias em situações de vulnerabilidade social. O artigo de Olivia Hirsch, “Filhos biológicos, de “leite” e da “madame”: a vida entre o cuidado como obrigação, ajuda e profissão” se insere nesse eixo temático. A autora realiza uma etnografia com base na experiência de vida de Janaína, sua entrevistada, que dedicou sua vida ao trabalho reprodutivo não remunerado e remunerado. Hirsch demonstra que padrões de cuidado diferentes são praticados de acordo com os contextos e que laços de afeto podem se formar em experiências profissionais de lactância e cuidados com bebês de outras mulheres.
Ainda neste segundo eixo, o artigo de Leticia Gil de Freitas e Beatriz Oliveira Santos, “Saúde Pública e Abolicionismo Penal: a Campanha Nacional de Amamentação escancarando o problema”, analisa como mulheres encarceradas são excluídas das políticas e campanhas de promoção ao aleitamento materno realizadas pelo Ministério da Saúde no Brasil. As autoras afirmam que os presídios não garantem condições adequadas para o aleitamento, além disso, a lógica racial e punitiva que embasa o encarceramento contradiz com os cuidados e vínculos necessários à amamentação. Freitas e Santos defendem que não bastam adaptações, mas o reconhecimento de que o encarceramento é um obstáculo à garantia de direitos.
O terceiro eixo é voltado a questões relacionadas aos impactos e conflitos entre os conhecimentos médicos e científicos e as práticas de amamentação. O artigo de Camila Correia, “Produzir humanidade a partir do leite doado: uma análise a partir de redes laboratoriais de Banco de Leite Humano”, apresenta pesquisa autoetnográfica sobre o processo de doação de leite, no qual esse último se transforma de “leite materno doado” em “leite humano para uso universal”. No texto, a autora analisa as redes, os procedimentos e possíveis conflitos e tensões envolvidos na doação. Correia conclui que esse processo dessubjetiva a doação do leite materno.
Ainda nesse eixo, há o artigo de Marcia Barbero Portela, Carolina de León Giordano, Ana Carrero del Cerro, Patricia Alvez e Florencia Cerianiem, “Representações de mães sobre a alimentação do recém-nascido em uma maternidade pública de Montevidéu, Uruguai”, que apresenta resultados de pesquisa etnográfica realizada em hospital uruguaio sobre saberes em torno da alimentação infantil por parte de mães. Foram realizadas 30 entrevistas e 11 observações, no segundo semestre de 2021. Segundo as autoras, a pesquisa revelou que a amamentação é uma prática situada em uma rede de conhecimentos, experiências, relações de poder e não um ato natural ou biológico. O estudo revela que a amamentação prolongada se ampara em apoios coletivos que incluem os profissionais de saúde.
O dossiê também é integrado pela entrevista com Ester Massó Guijarro, antropóloga e filósofa especializada em lactação humana, realizada pelas organizadoras do dossiê, Natalia Fazzioni, Marina Nucci e Valentina Brena. Guijarro revisitou temas importantes em sua obra, como os aspectos políticos relacionados à amamentação e o movimento feminista espanhol em torno do tema.
*Texto adaptado a partir da apresentação do dossiê “Lactancias humanas, cuidados e interseccionalidad”, de autoria de Natalia Fazzioni, Marina Nucci e Valentina Brena.
Acesse aqui o dossiê completo.