CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Lei Maria da Penha: avanços e lacunas

A Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006) comemora oito anos de existência neste mês de agosto. Em 2006, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva promulgou o texto, fruto de anos de mobilização do movimento de mulheres e considerado um marco para os esforços de combate à violência de gênero. Fenômeno estrutural na sociedade brasileira, a violência contra a mulher persiste, apesar da lei, cujo alcance nem sempre é pleno diante de um modelo patriarcal e de um contexto cultural estruturalmente baseado em desigualdades e opressões de gênero e de um machismo subjacente.

Por ocasião da data comemorativa, a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) divulgou um balanço segundo o qual, nesses oito anos, foram expedidos 100 mil mandados de prisão e mais de 300 mil vidas de mulheres foram salvas. É um número expressivo, sobretudo tendo em vista a amplitude do fenômeno no Brasil, onde entre 2001 e 2011 pelo menos 50 mil mulheres foram mortas. Estima-se também que 15 mulheres sejam assassinadas diariamente.

O homicídio de mulheres não é o único tipo de violência de gênero. A prática adquire diversas configurações e está ligada à formação da sociedade brasileira. Historicamente, homens e mulheres foram designados a partir de lógicas distintas e desiguais, como se naturalmente fossem indivíduos com capacidades, funções e papéis sociais específicos. Tal ótica resulta em relações hierárquicas, marcadas pelo poder e pela dominação, criando condições para que a violência se manifeste, por meio de agressões físicas, sexuais, morais e psicológicas.

Portanto, a promulgação da lei de 2006 constitui um esforço importante do Estado brasileiro para lidar com o fenômeno. Desde os anos 1980, pelo menos, a pressão constante e crescente de movimentos de mulheres forçou o poder público a enfrentar o problema. As Delegacias de Mulheres (DEAM), criadas nesse período, foram um primeiro movimento do Estado brasileiro. A Lei Maria da Penha seguiu essa trajetória histórica de construção de instrumentos protetivos aos direitos humanos das mulheres: endurece as penas contra homens agressores, prevê o acolhimento e a assistências às mulheres e dispõe sobre formas de prevenção ao fenômeno.

Os desafios, no entanto, permanecem. Uma dos entraves à plena efetivação da lei é no Poder Judiciário, que abriga magistrados que nem sempre reconhecem a complexidade da desigualdade de gênero. Assim, determinados juízes recusam-se a aplicar a lei com base, por exemplo, em leituras enviesadas dos casos. O caso da atriz Luana Piovani é emblemático dessa situação: em 2008, ela fora agredida pelo ex-namorado, mais tarde condenado nos moldes da Lei Maria da Penha. Um juiz do I Juizado da Violência Doméstica e Familiar do Estado do Rio de Janeiro anulou a condenação, com o argumento de que a atriz não seria “socioeconomicamente vulnerável”, um raciocínio que anula a dimensão de gênero diante da classe social.

Outro caso de interpretação regressiva da lei: grávida de cinco meses, a modelo Elisa Samudio deu queixa no 3º Juizado de Violência Doméstica do Rio de Janeiro afirmando ter sido mantida em cárcere privado e obrigada pelo jogador de futebol com quem se relacionava a ingerir substâncias abortivas. O Juizado negou o pedido de proteção, por considerar que a jovem não mantinha relações afetivas com o goleiro. A juíza explicou em sua decisão que Eliza não poderia se beneficiar das medidas protetivas, nem "tentar punir o agressor", sob pena de banalizar a Lei Maria da Penha. A magistrada entendeu que a finalidade da legislação é proteger a família, seja proveniente de união estável ou de casamento e não de uma relação puramente de caráter eventual e sexual. Assim, meses depois Elisa foi assassinada pelo jogador logo após dar a luz.

No século XX, eram comuns julgamentos em que os homens agressores eram inocentados ou tinham a pena abrandada em nome da “honra”. Nesses casos, a ideia de crime passional era corrente, refletindo a noção de que a violência contra a mulher era, de alguma forma, justificável. Um caso célebre é o de Doca Street, que em 1976 assassinou a namorada Ângela Diniz. Absolvido no primeiro julgamento, com uma defesa que apostou no argumento do crime de honra, Doca Street foi posteriormente condenado a 15 anos de prisão, em uma decisão na época influenciada pela pressão dos movimentos feministas.

A ideia do crime de honra como argumento de defesa caiu por terra, mas isso não significa que a Justiça brasileira esteja funcionando a contento. Em relação ao Executivo, também existem obstáculos. A Secretaria de Políticas para as Mulheres, que coordena a atuação do Governo Federal na questão da violência de gênero, contou com um orçamento de R$ 217 milhões para o ano de 2014. Um valor baixo, quando comparado com outros ministérios, que se reflete na efetivação de serviços.

De acordo com a Lei Maria da Penha, uma série de instrumentos deveria ser criada para a prevenção, acolhimento e combate ao fenômeno. Centros de atendimento integral e multidisciplinar; casas-abrigos para as mulheres e filhos; delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal especializados; e centros de educação e de reabilitação para os agressores estão no escopo do texto. No entanto, de concreto, muito a fazer: no país, apenas 7% (397 entre os 5.565 no Brasil) dos municípios têm delegacias da mulher; as Casas-abrigos que existem não contam com profissionais qualificados para lidar com mulheres em situação de violência; as que existem são tão poucas que apenas 142 cidades contam com o serviço; por fim, de acordo com o site da Secretaria de Políticas para as Mulheres, o país conta com 15 Centros de Educação e Reabilitação do Agressor.

Os serviços que existem são constantemente criticados pela falta de integração e pela dispersão ao longo do extenso território brasileiro. Um panorama que revela desafios profundos ao combate da violência de gênero. Não à toa, de acordo com pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), os índices de mortalidade de mulheres pouco se alteraram após a promulgação da lei: entre 2001 e 2006, a taxa de mortalidade foi de 5,28 por cada 100 mil mulheres. Entre 2007 e 2011, após a promulgação da lei, o índice caiu apenas para 5,22 por cada 100 mil.

A persistência da violência de gênero indica que o desafio é composto de vários aspectos. A lei Maria da Penha é amplamente conhecida, conforme aponta a Pesquisa “Percepção da Sociedade sobre Violência e Assassinatos de Mulheres”, do Instituto Patrícia Galvão: apenas 2% das pessoas nunca ouviram falar. De alguma forma, reconhecem ativistas e pesquisadores, a lei contribuiu para que apenas 9% das pessoas, transcorridos oito anos de lei, ainda considerem que bater em mulher é um ato legítimo. Apesar disso, o fenômeno continua amplamente disseminado no país. Ainda que a solução penal apresente resultados, o enfrentamento demanda ações mais amplas, sobretudo no âmbito educativo.

Recentemente o Plano Nacional de Educação (PNE) teve suprimida menção à questão de gênero como uma diretriz para as políticas no setor. De fato, a Lei Maria da Penha, por si só, não parece dar conta do problema, tanto pelos problemas em sua aplicação, quanto pela integração com ações de outra natureza, como no campo da Educação, por exemplo. Não apenas no sentido de uma educação formal menos machista, o que sem dúvida é fundamental, mas no sentido de desarmar a díade masculinidade-violência, tanto para reduzir as mortes de mulheres, como também para diminuir as mortes entre jovens do sexo masculino, que são os que mais matam e os que mais morrem. A desconstrução do masculino associado à violência requer um processo reflexivo e um novo diálogo entre homens e entre homens e mulheres.