A Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou em julho as novas diretrizes para prevenção, diagnóstico, tratamento e cuidado do HIV para populações-chave. Compõem essas populações “homens que fazem sexo com homens” (HSH), presidiários, usuários de drogas, trabalhadores/as do sexo e indivíduos transgêneros, para as quais a OMS recomenda a ingestão de medicação antirretroviral (ARV) como método adicional, junto à camisinha, à prevenção contra o vírus. Esse tipo de estratégia é chamado de profilaxia pré-exposição (PrEP) e tem no ARV Truvada seu único representante até o momento reconhecido pela comunidade científica. Tem sido assim nos últimos anos, com o investimento crescente, principalmente em estudos biomédicos, em estratégias para lidar com a epidemia, cujo crescimento incide preferencialmente entre os grupos destacados pela OMS. Notícias de pesquisas exitosas com ARVs têm sido cada vez mais frequentes, sinalizando avanços importantes no combate à epidemia, embora as novas tecnologias também tenham limitações e projetem desafios aos esforços de combate ao HIV/Aids.
De fato, no Brasil, a epidemia tem avançado, e não apenas entre a população homossexual, conforme apontam documentos oficiais. Relatório do Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids) mostra que entre 2005 e 2013 houve um aumento de 11% nos casos de infecção, tendência contrária à média mundial (infecções diminuíram 13% nos últimos três anos). No relatório, os homens gays aparecem como um grupo vulnerável: 11% vivem com o vírus e/ou a doença. Já o Ministério da Saúde brasileiro, no Boletim Epidemiológico de 2013, aponta que entre 2002 e 2012 o total de homossexuais vivendo com HIV/Aids cresceu de 22% para 33%. Em números absolutos, isso significa que são 4,3 mil homens soropositivos atualmente.
Apesar do quadro e dos avanços tecnológicos, para o médico Juan Carlos Raxach, da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), a recomendação da OMS deve ser ponderada. “Por um lado, não se pode negar que essas novas tecnologias são coisas boas na área de prevenção. Significam mais ferramentas para o enfrentamento da epidemia. No entanto, o caminho a se seguir é que considero inadequado. Estamos querendo achar o que é melhor para o outro, sem saber o que esse outro pensa. A autonomia do indivíduo não pode ser desprezada. A recomendação é válida e importante, quando considerada em conjunto com outras formas de prevenção, mas não pode ser arbitrária. Sou crítico desse tom vertical de enfrentamento à epidemia”, argumenta Juan Carlos Raxach.
A aposta na medicação antirretroviral como prevenção é fruto de um cenário no qual uma série de pesquisas médicas e clínicas indicam o potencial dos ARVs para essa finalidade. Entre as mais notórias, está a HTPN 052, segundo a qual a terapia ARV reduz em até 96% a transmissão do vírus. É essa pesquisa, inclusive, que baliza a recente mudança no protocolo de manejo da epidemia do Ministério da Saúde brasileiro: desde o início do ano, o início da terapia ARV é recomendado a partir do diagnóstico, e não mais a partir de marcadores clínicos (contagem de células CD4 e da carga viral). Para a OMS, vale ressaltar, a PrEP reduziria em até 25% a incidência global do HIV entre homens gays. A cidade de Nova Iorque também passou a adotar, desde o início do ano, a PrEP como estratégia de prevenção à epidemia.
A PrEp, no entanto, tem sido problematizada. Movimentos de direitos humanos, médicos e ativistas questionam a falta de uma abordagem mais ampla, que leve em conta os aspectos sociais e culturais da epidemia. Desde os primeiros casos de Aids, nos anos 1980, o estigma e o preconceito foram elementos centrais para que uma linguagem moral associasse determinados grupos sociais, como os homossexuais, à doença. Assim, ter Aids significava um castigo ao “desvio” representado pela homossexualidade.
A dimensão atual da epidemia mostra que esses elementos permanecem. O estigma e o preconceito não figuram apenas nos discursos conservadores sobre a epidemia. Na prática, o preconceito é ele próprio uma das razões para que a doença avance entre os homossexuais. A Unaids, assim como diversos outros organismos e instituições, destaca os efeitos da discriminação sobre os gays, afastando-os dos esforços de prevenção, bem como da testagem e do tratamento. Sem falar, sob uma perspectiva global, dos países onde relações entre pessoas do mesmo sexo são criminalizadas.
Nesse contexto, o médico Juan Carlos Raxach afirma que teme que a recomendação da OMS se firme como regra. “Não podemos permitir que nenhuma tecnologia caia no normativo-prescritivo. Com a camisinha, acontece algo parecido. Em alguns lugares no Brasil, é indicada por receita. A relação entre médico e paciente torna-se muito mecânica, numa lógica de ordem e aceitação. É preciso diálogo e sensibilidade para compreender as expectativas do paciente”, destaca.
Atualmente, o Brasil tem cerca de 720 mil pessoas vivendo com HIV/Aids. A redução da carga viral na população tem orientado a estratégia do Ministério da Saúde, cujo protocolo de tratamento preconiza o início da terapia ARV imediatamente após o diagnóstico. A recomendação da OMS parece seguir o mesmo caminho. “Essa visão de saúde pública talvez não seja a mais adequada, pois o foco é no cenário geral, perdendo-se de vista o particular. A prevenção, assim como o tratamento e o cuidado, deve ser feita de maneira individualizada”, destaca Juan Carlos Raxach.
Prescrever medicamentos nem sempre significa a adesão do paciente. Por isso, quando se fala em PrEP, Juan Carlos Raxach lembra que isso pode abrir novas vulnerabilidades. “Nós, que trabalhamos no enfrentamento à epidemia, sabemos que há um abismo entre a recomendação da OMS e a realidade brasileira. Não nego os benefícios da medicação, mas sei que existe uma série de problemas no sistema de saúde. O acesso nem sempre acontece, a distribuição é falha, nem sempre há orientação. Não vivemos em um contexto perfeito. Por isso, temo que essa nova recomendação possa criar novas vulnerabilidades”, observa Juan Carlos Raxach.
Assim como a terapia ARV usada para o tratamento, a PrEP também produz efeitos colaterais, como perda óssea, alteração no ritmo cardíaco, enjoos, vômitos, fadiga etc. Essa é mais uma das razões para guardar certa cautela com a recomendação da OMS. “Estamos lidando com pessoas que têm suas fragilidades, medos, angústias por viverem com uma doença socialmente problemática”, afirma, completando que outro efeito dessa recomendação pode ser o reforço da associação perigosa de gays com a doença. “Como definir o ‘homem que faz sexo com homem’? De fato, o sexo anal é mais suscetível à transmissão do HIV. Mas isso não significa dizer que todos os HSH são iguais ou que vivem apenas em função do sexo anal. As pessoas são plurais, dinâmicas, têm práticas e comportamentos variados, identidades múltiplas. Não podemos situar a epidemia apenas em determinadas populações. Por que culpabilizar os gays?”, argumenta.
No contexto político brasileiro, o enfrentamento à epidemia tem retrocedido. Nos últimos anos, o Governo Federal tem recuado na promoção de campanhas e outras iniciativas destinadas a essas populações vulneráveis. Em 2012, a partir de dados que já apontavam o crescimento da Aids entre homens gays, o Ministério da Saúde desenvolveu uma campanha específica a ser veiculada no carnaval. As peças seriam veiculadas nas redes de televisão, mas foram suspensas. O motivo: pressão de setores religiosos dogmáticos instalados no Congresso que têm se aproveitado de temáticas sobre sexualidade e saúde para chantagear, com propósitos eleitorais, o Poder Executivo. Ano passado, o Ministério da Saúde também suspendeu, logo após colocar em circulação, uma campanha voltada para prostitutas. Pressões como essas configuram um quadro de retrocessos, na contramão da história de um país internacionalmente reconhecido pela resposta à epidemia baseada no envolvimento com os movimentos sociais e em uma linguagem de direitos humanos.
No texto das novas diretrizes da OMS há a preocupação com um enfrentamento amplo que também atue com foco nas vulnerabilidades sociais, culturais e legais. Fato que, no contexto brasileiro atual, está longe de ser realidade. “Para o Brasil, a recomendação da OMS deve ser vista na conjuntura atual de fortalecimento de discursos preconceituosos, baseados na moral religiosa, que é acompanhado por um descaso com políticas públicas em relação aos homossexuais. O Governo Federal tem recuado em ações específicas. Em um ambiente de discursos discriminatórios e recuos institucionais, tenho medo de que a PrEP se torne algo impositivo, colocando a responsabilidade sobre o indivíduo. A prevenção ao HIV/Aids tem que ser feita de maneira integral, em um diálogo constante, franco e respeitoso entre paciente e profissional de saúde. O direito à escolha hoje, como sempre, deve ser fundamental. A questão não é estar contra ou a favor das novas tecnologias e políticas para prevenção de infecções, mas sim acompanhar e participar ativamente no monitoramento de como elas são oferecidas para as populações. Isso significa que o aconselhamento é uma etapa essencial nos esforços de prevenção. Por isso, penso na ideia de prevenção ampliada, da qual a PrEP seria uma escolha, mas não a única ou a principal, acompanhada de campanhas periódicas e não pontuais de combate ao preconceito e de políticas públicas inclusivas.”, conclui Juan Carlos Raxach.