CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Misoginia na rede

A militância beligerante de atores conservadores na política nacional não é algo novo no Brasil. Não obstante, chama a atenção hoje a maneira articulada e explícita com que ela se manifesta das mais variadas formas, especialmente através dos meios virtuais. Uma escalada reacionária cujo alvo preferencial são os direitos das mulheres e das minorias sexuais encontrou na internet um terreno fértil para propagar cada vez mais um clima de hostilidade e pânico moral. Assim foi no caso da discussão do gênero na educação, que políticos aliados a setores religiosos enfrentaram como uma verdadeira cruzada conservadora. Para conseguir o apoio popular que permitiu banir a temática nos planos municipais e estaduais de educação, eles propagaram nas redes sociais a ideia de uma perigosa “ideologia de gênero” (ou “ideologia antifamília”), a qual, segundo eles, deturparia os conceitos de homem e mulher entre estudantes ao ser baseada em teorias “equivocadas” sobre a construção social do gênero, como a obra da filósofa Simone de Beauvoir.

A discussão voltou à cena quando o Ministério da Educação brasileiro incluiu no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) – prova que dá acesso a universidades públicas brasileiras – uma pergunta sobre feminismo que trazia uma citação com a célebre frase de Beauvoir (“Não se nasce mulher, torna-se mulher”), e, como tema da redação, a ‘persistência da violência contra a mulher’. Assim, 8 milhões de pessoas, em sua maioria jovens, tiveram uma pouco frequente oportunidade de refletir sobre feminismo e violência de gênero.

A inclusão dos temas relativos a gênero na prova foi comemorada em páginas e fóruns feministas. Mas também foi alvo de piadas machistas em espaços virtuais comandados pelos grupos intitulados “masculinistas”. Em um vídeo que circulou na rede, um pretenso comediante que simulava fazer a redação do ENEM apelava à jocosidade para desqualificar a pesquisa segundo a qual no Brasil uma mulher é agredida a cada cinco minutos – e com ela a inclusão da temática no ENEM: “Já estou fazendo a prova há três horas e ainda não vi nenhuma mulher apanhar!”, ironizava.

A piada “viralizou”, sendo curtida por milhares no Facebook. O trocadilho misógino parece inocente ao lado da avalanche de conteúdos que não hesitam em pregar o ódio contra mulheres, gays, negros, índios,nordestinos e jovens de periferias. Circulam livremente pela internet agressões verbais de todo tipo, muitas delas estimuladas e celebradas pelos participantes de fóruns misóginos.

As comunidades online são propícias à expressão e à afirmação da sexualidade, o que revela o potencial da internet como um espaço de ativismo e experiência da diversidade sexual. Mas é também um espaço de disputas e antagonismos. Assim, por exemplo, nos espaços virtuais onde há a defesa da diversidade sexual, encontram-se também expressões homofóbicas. Em fóruns onde se defende os direitos das mulheres, também vão marcar presença posições misóginas – que muitas vezes vão além do simples comentário machista.

Nessa onda de hostilidade, blogueiras feministas têm sofrido constantes ameaças por defender seus direitos, ou por simplesmente falar sobre um determinado assunto ligado ao papel das mulheres. No ano passado, a misoginia online entrou na roda com o chamado “gamergate”: mulheres na indústria dos jogos, como as desenvolvedoras Zoe Quinn e Brianna Wu, além da blogueira Anita Sarkeesian, foram alvo de uma onda de ataques. No Twitter, no Reddit e em imageboards como o 4chan, as mulheres receberam ameaças de estupro e morte, e em alguns casos chegaram a ter informações pessoais reveladas – como o endereço de suas residências ou número de telefone.

O Gamergate foi uma reação de um grupo masculinista (ou “meninist”) conhecido como “Men’s Rights Activists” nos EUA. Afirmando encampar um esforço em criticar a ética em jornalismo sobre jogos de vídeo game, eles capitanearam uma campanha de perseguição irascível contra debates sobre gênero na mídia especializada em vídeo-games e entre a comunidade de jogadores. Esta campanha foi especialmente voltada contra Anita Sarkeesian, que produziu um documentário disponível no YouTube]  sobre a misoginia institucionalizada implícita (ou explícita) em muito jogos, realizado com recursos reunidos através do site de financiamento coletivo Kickstarter. Os ataques desta natureza contra o ativismo feminista online são deliberados, planejados e articulados.

A interação entre agressores online e seus alvos é peculiar ao anonimato facilitado pela tecnologia da internet. No entanto, os usuários de fóruns misóginos que se escondem no anonimato não se dão conta que eles não são 100% anônimos. Esse anonimato é relativo: na Internet quase sempre há um meio de identificação. Em 2012, um desses sites (chamados de chans), que defendia a legalização do estupro e o estupro corretivo para lésbicas, foi tirado do ar e seu autor foi preso, enquanto alegadamente tramava um atentado na Universidade de Brasília para matar “vadias e esquerdistas”. Nessa época, por denunciar o site de ódio, a blogueira Lola Aronovich, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), autora do blog feminista Escreva, Lola, Escreva, foi alvo de inúmeras ameaças, que nunca pararam. Os masculinistas divulgaram seu endereço residencial e, segundo ela, chegaram a estabelecer recompensas para quem a matasse.

Desde então, Lola recebe ameaças de estupro e morte. Em 2014 as ameaças se intensificaram: logo após publicar no Twitter que ela havia voltado de uma viagem, a professora recebeu ligações com ameaças de morte em sua casa. "Qualquer mulher que se destacar na internet vai ser ameaçada de estupro. Infelizmente, a internet reflete a misoginia que existe na sociedade”, comentou ela em seu blog.

Em outubro último, os agressores atacaram novamente: eles inventaram um novo site de ódio em seu nome. A página “fake”, assinada como Lola, Escreva, Lola, prega o aborto, o infanticídio e a castração de meninos, contendo, inclusive, link para o seu currículo acadêmico Lattes. O site viralizou no feriado do Dia de Finados quando, enquanto Lola viajava,membros do movimento masculinista o divulgaram no Facebook e no Twitter.

Ataques como os sofridos por Lola e outras ativistas feministas através da internet não acontecem em um mundo separado, à parte do “real”. A comunicação online representa apenas uma outra interface para a interação real entre as pessoas. Por isso nela se reproduzem o machismo, o racismo, a homofobia e todas as outras discriminações enfrentadas no cotidiano.

O pesquisador Bruno Zilli (CLAM/IMS/UERJ) analisa o fenômeno dos ataques online a feministas em dois perfis. Um seria o do “masculinista incidental”, aquele que apenas concorda com esses conteúdos hostis quando os vê, os “curte” e rebloga, ou apenas assimila essa posição de ódio ao feminismo e o reproduz sem um esforço mais dedicado. “É o troll típico, que habita os comentários de qualquer postagem na internet, só que é um troll temático, anti-feminista em tom”, avalia.

O troll é um indivíduo que age online perturbando (“trollando”) intencionalmente ou não espaços de sociabilidade virtual, como fóruns, ou atacando diretamente indivíduos; através de comentários que criam discórdia.

O outro perfil identificado por Bruno Zilli é mais organizado e vai bem longe. Suas ações incluem, por exemplo, criar uma página e alimentá-la com conteúdo, como criar a página falsa da Lola e buscar e publicar informações pessoais dela, o que requer tempo e certo domínio técnico. São, segundo ele, os que se dedicam a enfrentar as "feminazis", que é como alguns grupos misóginos chamam feministas. Em ocasiões, esses agressores dedicados incorrem em condutas criminosas, inclusive para além do discurso de ódio, como no caso da fraude contra a identidade de Lola Aronovich.

Entretanto, “de onde vem tanta disposição? De um ódio contra o que elas falam, talvez combinado com uma sensação de estar sendo vitimado pelo discurso que busca dar agência às mulheres? É preciso entender melhor o que se passa na cabeça desses sujeitos”, analisa o pesquisador do CLAM, que integra o coletivo EROTICS, um projeto do Programa de Direitos das Mulheres da APC – Association for Progressive Communications. Através de várias pesquisas, que no Brasil contaram com a parceria do CLAM e do SPW – Observatório de Sexualidade e Política, o projeto busca averiguar os diferentes modos como comunidades sexuais de maneira geral, e mulheres em especial, têm seu uso da Internet facilitado ou impedido, e qual o impacto desses processos na expressão de sua sexualidade e direitos. No seu lado ativista, o coletivo se dedicou, por exemplo, a desenhar uma série de “princípios feministas da Internet] ”.

Uma das campanhas da APC sofreu recentemente um ataque, no dia 9 de outubro, empreendido contra as hashtags do Twitter #TakeBacktheTech e #ImagineAFeministInternet por grupos misóginos associados à hashtag #Gamergate, que postaram milhares de tweets e memes anti-feministas em resposta a um chat organizado pelo Internet Governance Forum (IGF) para discutir o impacto da violência online.

Mas como atuar contra quem propaga o ódio contra mulheres e outros grupos na internet?

As denúncias relacionadas a conteúdos ilícitos na internet aumentaram 8,29% em 2014, aponta levantamento da Central de Denúncias de Crimes Cibernéticos da ONG SaferNet Brasil, associação civil sem fins lucrativos que possui acordo de cooperação com o Ministério Público Federal, além do apoio de entidades como o Comitê Gestor da Internet no Brasil e a Justiça Federal. A organização recebeu 189.211 reclamações, envolvendo 58.717 páginas distintas da web. Os dados mostram um aumento de 34,15% das páginas indicadas como racistas e de 365,46% de conteúdos relacionados à xenofobia. Entre as denúncias, destacam-se as manifestações contra nordestinos, por exemplo. No ano passado, 222 denúncias foram relativas a vazamentos de fotos íntimas (geralmente obtidas das trocas de mensagens conhecidas como sexting), o que significa um aumento de 119,8% em relação a 2013, quando 101 casos foram atendidos. Mais da metade das vítimas tinha até 25 anos, das quais 25% tinham entre 12 e 17 anos. Cerca de 40% tinham acima de 25 anos.

Os casos reportados à SaferNet são feitos voluntariamente pelos próprios usuários da internet, quando se deparam com conteúdos que evidenciam atividades ilícitas, em particular violações de direitos humanos, na web. Para fazer a denúncia, o usuário deve acessar o portal da organização e enviar o link do site onde identifica o ato ilícito, listado a partir de categorias como a pornografia infantil/pedofilia; racismo, xenofobia e intolerância religiosa; neonazismo; apologia e incitação a crimes contra a vida; homofobia; e apologia e incitação a práticas cruéis contra animais. É comum sites de relacionamento online, por exemplo, conterem “banners” onde clicando é possível acessar diretamente o portal de denúncias.

As denúncias são recebidas e analisadas pela Safernet e, em seguida, enviadas aos Ministérios Públicos e à Polícia Federal. As denúncias de crimes cibernéticos contra os direitos humanos na internet podem ser feitas diretamente à Polícia Federal através do site: http://denuncia.pf.gov.br/. Porém, lembra Magaly Pazello, pesquisadora do Emerge – Centro de Pesquisa e Produção em Comunicação e Emergência da Universidade Federal Fluminense (UFF), é ingenuidade achar que no dia ou na semana seguintes à denúncia o site estará fora do ar, uma vez que muitas vezes o nome de domínio do site ou página que viabiliza a agressão é sediado fora do Brasil, o que limita a jurisdição para retirada de conteúdo ou suspensão do site. “Mas o volume de denúncias via Safernet e Polícia Federal é importante para gerar massa crítica e dar subsídios para a busca policial”, afirma a ciberativista e feminista, citando como exemplo o que aconteceu com o site chamado “Tio Astolfo”, que há meses disseminava uma “receita de como estuprar vadias”. Depois de denúncias feitas através da Safernet e do site de denúncias de crimes cibernéticos da PF, o site foi retirado do ar.

O Marco Civil da Internet

Elaborado com base em uma consulta pública online e em vigor desde junho de 2014, o Marco Civil da Internet é uma lei que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres dos usuários da Internet. Após duas décadas de uso da Internet no Brasil, no país não havia qualquer lei que estabelecesse diretrizes para proteger os direitos dos usuários.

Em princípio, no Brasil, os provedores não têm responsabilidade pela ação dos usuários, embora algumas exceções tenham sido incluídas na Lei. O provedor pode sofrer alguma penalidade se ele não atender a uma ordem judicial que determine a remoção de um conteúdo específico.

Segundo o Marco Civil da Internet, se o servidor do fórum ou blog onde a violação de direitos sob investigação judicial estiver no Brasil, ele é obrigado a passar os registros de acesso a aplicações e registros de conexões para a Justiça. Se eles estiverem no exterior, acordos internacionais também garantem que os dados sejam acessados pelas autoridades brasileiras. Se o provedor não cumprir a lei, guardar e fornecer os registros, ele vai acabar sendo responsabilizado pelos danos que os usuários causaram.

O Marco Civil não versa sobre crimes, apenas sobre a responsabilização civil dos provedores de aplicativos pela retirada ou não do conteúdo. No entanto, a regulamentação do Marco Civil da Internet permanece como a principal pauta ainda a ser alcançada. É necessário que o decreto de regulamentação seja editado com brevidade a fim de que os dispositivos da lei sejam consolidados.

Misoginia no Facebook

Em 2013, a maior rede social do mundo, com mais 1 bilhão de usuários, admitiu que não lidava bem no controle da misoginia, e prometeu melhorar. A boa notícia é que foram as feministas quem fizeram a rede criada por Mark Zuckerberg enxergar o que até então a empresa parecia não ver: várias organizações feministas em língua inglesa escreveram uma carta exigindo que a rede social assumisse a existência de inúmeras mensagens de ódio e que fizesse algo para não tolerar tal conteúdo, desde o treinamento de moderadores até a retirada desses discursos. E elas foram além: anunciaram uma campanha para conscientizar empresas a deixarem de anunciar na rede social até que eles tomassem alguma atitude a respeito. Na ocasião, empresas como a Nissan do Reino Unido apoiaram o boicote ao FB.