Autor de “Além do Carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX”, o historiador James Green ministrou a conferência “30 anos do movimento LGBT no Brasil”, na quarta-feira, 18 de junho, no CLAM. Green fez uma leitura da história deste movimento no país a partir de seus marcos iniciais – a fundação do Grupo SOMOS, em São Paulo, e o surgimento do jornal O LAMPIÃO, em 1978 – e de duas referências mais recentes: a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, que este ano reuniu mais de 3 milhões de pessoas, e a I Conferência Nacional, em Brasília, que contou com a presença do presidente Luis Inácio Lula da Silva em sua abertura.
Para o pesquisador, diretor do Center for Latin American Studies do Watson Institute for International Studies da Brown University, é importante entender que, assim como ao longo dos últimos 30 anos foram criadas as condições para que o movimento LGBT chegasse até a I Conferência Nacional, já existia no Brasil dos anos 50 um pré-movimento, que criou as possibilidades de uma organização política de gays e lésbicas iniciada em 1978.
“Esse pré-movimento era o resultado de uma série de fatores sociais e econômicos do país, como a urbanização e a concentração de pessoas nas grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, centros que atraiam gays de todo o país. Nesses ambientes das grandes cidades criam-se, a partir de 1951, as primeiras boates e outros espaços particulares para gays – e eventualmente lésbicas –, como os bailes de carnaval e redes sociais de amigos, os quais criam uma identidade para além de uma individualidade. Ou seja, uma rede social que cria uma noção de que temos alguma coisa em comum, somos todos bichas, somos todas sapatões, temos uma série de vivências que são similares e enfrentamos questões parecidas. Havia também uma conjuntura internacional associada às mudanças de gênero aqui no Brasil: mais mulheres da classe média indo para a universidade, mais empregos para mulheres que se tornavam independentes da família. E muitas influências culturais, como o tropicalismo, em nível nacional, e, internacionalmente, a cultura hippie e o rock, que vão questionando, em certo sentido, as questões de gênero e o comportamento masculino e feminino, oferecendo alternativas de construção do gênero diferentemente dos padrões rígidos construídos nos anos após a Segunda Guerra Mundial. Foi essa conjunção de condições sociais, de sociabilidades e mudanças culturais na sociedade que abriu a possibilidade do surgimento de um movimento político”, relatou o historiador.
Segundo o historiador, se não tivesse havido a repressão militar ao final de 1968 e o Ato Institucional Número Cinco, ou AI-5 – instrumento de poder que deu ao regime militar poderes absolutos e cuja primeira conseqüência foi o fechamento do Congresso Nacional por quase um ano – os primeiros grupos ativistas organizados teriam surgido no país entre 1969 e 1970. “Esses grupos teriam feito o mesmo tipo de reivindicações que surgiram na Argentina – através da “Frente de Liberacíon Homosexual” –, no México, nos Estados Unidos e na Europa”.
James Green considera que o auge da primeira fase do movimento – iniciada com a formação do Grupo SOMOS – coincidiu com a greve geral de trabalhadores no ABC paulista, em 1980. “O encontro nacional foi realizado durante a Semana Santa, a greve geral estava em curso, houve repressão e intervenção no sindicato. Um setor do movimento homossexual vai então participar da manifestação do 1º de Maio, ostentando duas faixas, uma que dizia “contra a intervenção do sindicato ABC, S.O.M.O.S Grupo de Afirmação Homossexual”, e outra contra a discriminação do trabalhador homossexual. Ninguém nessa época levantava essa questão da possibilidade de discriminação no sindicato no Brasil. Mas foi então inaugurada a primeira iniciativa de diálogo nesse sentido”, relembrou.
James Green relembrou ainda a fase de recessão no movimento. “A partir de 1983 muitos grupos acabaram, inclusive o SOMOS, por falta de recursos e a ausência do financiamento do Estado. Neste momento ainda não havia a cultura das ONGs, então os grupos lentamente foram desaparecendo”, disse ele.
O surgimento da epidemia da Aids marcou, para ele, o início de uma segunda fase do movimento. “Havia uma grande confusão nesse momento e alguns nomes que militavam no movimento vão ajudar na formação de grupos para dar uma resposta à situação da AIDS no país, como Luiz Mott, da Bahia. Ele vai ser o grande dirigente do movimento durante os anos 80. Paralelamente, o João Antonio Mascarenhas criou o grupo Triangulo Rosa. Juntamente com Mott, ele encaminha uma campanha para a proibição da discriminação da homossexualidade para a Constituinte de 1988. A proposta ganhou 25% da votação dos representantes e não foi aprovada”.
O historiador lembrou que o Congresso da ILGA (International Lesbian and Gay Association), realizado no Rio de Janeiro em 1995, foi fundamental para a criação, entre os militantes, de uma noção de existência de um movimento internacional. “No final do congresso, houve uma passeata que reuniu entre mil e duas mil pessoas. No dia anterior, o movimento havia confeccionado muitas máscaras, com a idéia de que as pessoas iam sair às ruas mascaradas, com medo de assumirem publicamente sua sexualidade. Mas as máscaras foram jogadas fora, e todos foram às ruas assumidos e contentes, com muitas pessoas assistindo. Foi muito importante para o movimento consolidar essa idéia”, recordou.
Debate
Para Green, a I Conferência Nacional LGBT marca o início de uma terceira fase do movimento. “O encontro em Brasília é muito emblemático pelo fato de o presidente Luís Inácio Lula da Silva estar presente. O mesmo Luís Inácio Lula da Silva que, em 1979, declarou que não existiam homossexuais na classe trabalhadora, que era muito preconceituoso e que só aceitava a questão dentro do PT por que havia um setor da esquerda que apoiava em parte essa reivindicação”. O historiador terminou sua exposição falando do atual momento do movimento e dos rumos que este deve tomar nos próximos anos. “Existe atualmente uma visão clara das necessidades desse movimento, da inclusão na política do Governo, uma política contra a homofobia. Penso que nenhum outro governo vá, de agora em diante, regredir nessas questões. Ou seja, a partir desse momento, é só cobrar e dizer: “Você está fazendo menos do quê o anterior, você tem que fazer mais”. O Governo tem que ser parceiro do movimento, no sentido de avançar nas nossas conquistas no país. Seja quem for o próximo presidente não poderá fazer menos, vai ter que fazer mais do que está sendo feito atualmente, senão vai ser cobrado por um setor do seu partido, e isso para mim é muito positivo. Não existe mais a direita “direitona” neste país, por isso vai ser difícil haver um recuo”, afirmou.
Essas últimas colocações de James Green em relação às conquistas atuais do movimento LGBT, sua relação com o Estado e seu futuro – vislumbrado positivamente pelo expositor a partir de tais conquistas – geraram um instigante debate. Enquanto na visão assumidamente otimista de Green – como o próprio definiu – o movimento terá um futuro de inúmeros ganhos, a julgar pelas recentes conquistas (em especial a I Conferência Nacional LGBT, financiada pelo Estado), a antropóloga Maria Luiza Heilborn (CLAM/IMS/UERJ) ponderou sobre a perspectiva otimista do historiador em torno da linearidade da história. A pesquisadora fez uma analogia do movimento LGBT com o feminista em relação a seus avanços e retrocessos. Maria Luiza salientou que a história não é necessariamente progressiva, ao contrário, é passível de retrocessos.
“A questão do aborto legal em caso de estupro, por exemplo, é uma das coisas que não se consegue implantar nos serviços públicos de saúde, apesar de garantido na lei há anos. Constantemente surgem decisões contrárias. Ou seja, ganhamos a lei e de repente uma legislação local impede a realização da lei, por isso não podemos dizer que a direita “direitona” seja um obstáculo realmente descartado. É difícil dizer que no Brasil não existe realmente uma direita. Em alguns temas cruciais, como a união civil de pessoas do mesmo sexo e o aborto, se produz backlash sistematicamente. Penso que essa analogia com o movimento feminista é importante”, analisou Maria Luiza.
Também presente ao evento, o antropólogo Peter Fry (IFCS/UFRJ), autor dos clássicos “O que é homossexualidade” e “Para inglês ver”, criticou a dependência financeira do movimento LGBT ao Estado.
“Não acredito que o movimento LGBT seja um movimento de massa. Não sinto que as demandas pela união civil, direito à herança e adoção de crianças por casais do mesmo sexo estejam vindo da sociedade, mas sim do governo. O movimento é algo orquestrado pelo Governo. As decisões vêm de cima, como a convocação da I Conferência Nacional. Conquista é conquista, não é uma coisa dada”, ponderou Peter Fry.
O antropólogo afirmou existir no atual governo o que ele chama de uma “ideologia da diversidade, do multiculturalismo”. “O Estado está dedicado a produzir um Brasil distinto, de identidades diversas. Então nós temos que ter bichas com seus direitos, pretos com seus direitos e senhoras com os direitos delas, e assim vai”, afirmou Peter.
Peter Fry lembrou que, nos tempos do jornal O LAMPIÃO – do qual fez parte do conselho editorial – se discutia a necessidade de se criar uma identidade homossexual. “A tendência atual é de cada vez mais produzir o ser identitário para conseguir qualquer coisa. Eu li no jornal que uma das propostas aprovadas na Conferência foi a criação de um estatuto LGBT. A proposta do estatuto significa criar direitos específicos. Penso que devemos ter uma visão crítica do que está acontecendo, e não ficar totalmente deslumbrados por que o Lula deu um sorriso para os gays. Não é assim tão simples, é mais complicado”, avaliou o antropólogo.
Coordenador da mesa, Sérgio Carrara (CLAM/IMS/UERJ) ponderou: “Temos que começar a ficar atentos para o fato de que o movimento está se organizando de uma forma bastante distinta do que vinha se organizando. Não se trata apenas de ONGs cujos recursos vêm através de projetos financiados por governos e fundações. Um exemplo disso é a organização do núcleo LGBT nas Universidades. A UNE tem hoje um setor deste segmento organizado por estudantes em quase todas as universidades federais do país. Ou seja, esse tipo de organização não passa pelo Governo Federal, não passa pelo financiamento para a AIDS. Penso que essa forma de mobilização tende a se espalhar e vai jogar esse movimento em um outro contexto, que não é mais o da dependência do Estado”.
James Green finalizou afirmando que tal dependência do movimento ao Governo se dá por conta da realidade social brasileira. “Concordo que o movimento enfrenta um grande problema de financiamento e de dependência do Estado, mas acho que a realidade no Brasil é que torna essa relação muito estreita. Mas, se por um lado, essa relação atrai muitas coisas negativas, por outro lado ela pode criar condições positivas. Concordo também que o movimento não pode seguir sempre dependendo do financiamento para a AIDS, pois esses financiamentos nacionais e internacionais vão acabar em algum momento e se não houver uma autonomia financeira e organizativa por parte do movimento será muito difícil avançar”, concluiu.