CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Mulheres e Reforma Política

por Washington Castilhos


As candidaturas de Dilma Rousseff (PT) e Marina Silva (PV) à presidência da República têm colocado a questão de gênero mais presente no debate eleitoral brasileiro. No entanto, apesar de serem hoje maioria no eleitorado – 51,8%, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) –, as mulheres ainda estão sub-representadas em todos os cargos eletivos: o Brasil tem apenas três governadoras (entre 27 estados), dez senadoras (representando 11%), 106 deputadas estaduais e 505 prefeitas (menos de 10%, num total de 5.565 municípios). E mais: dos 513 parlamentares, apenas 45 são mulheres (8,57% do Congresso), o que faz com que o país ocupe, segundo um levantamento da União Interparlamentar, o 107º lugar em representação feminina no parlamento, atrás dos países desenvolvidos e de quase todos os latino-americanos.


Tal quadro poderá começar a ser alterado a partir de outubro. Em setembro de 2009, uma minirreforma eleitoral foi aprovada para entrar em vigor nas próximas eleições. Apesar de não ser a reforma política esperada pelo movimento feminista, graças à atuação da Comissão Tripartite instituída pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) para a revisão de Lei 9.504/1997, da Bancada Feminina no Congresso Nacional e do movimento de mulheres, foi possível garantir algumas ações afirmativas: agora, segundo a lei 12.034/2009, cada partido ou coligação é obrigado a ter, entre seus candidatos, no mínimo 30% de mulheres, a dedicar o mínimo de 10% do tempo de propaganda partidária para promover e difundir a participação feminina, e destinar 5% do fundo partidário à formação política das mulheres. Haverá punição para o partido que não cumprir a regra dos 5%: se não destinar esse percentual, deverá acrescentar mais 2,5% dos recursos do fundo no ano.

Os percentuais aprovados não correspondem ao que querem as mulheres, nem aos projetos de lei de iniciativa de deputadas, que tramitam na Câmara há bastante tempo. Mesmo assim, a maioria de deputados e senadores se negou a votar pela sua aprovação. “Não fosse a determinação das bancadas femininas, do movimento de mulheres e do ‘Comitê Multipartidário’, sequer essa limitada conquista teria sido alcançada. Só com muita negociação e forte pressão é que os parlamentares foram obrigados a ceder. Lamentavelmente, eles não têm consciência da importância da participação política das mulheres. Pelo contrário, encaram essa questão com muito preconceito e discriminação, além de se sentirem ameaçados diante de qualquer proposta que pretenda ampliar a presença das mulheres na esfera pública e nos espaços de poder”, assinala a ex-prefeita de São Paulo e atual deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP).

Na análise da também deputada federal Cida Diogo (PT/RJ), membro da bancada feminina do Congresso Nacional, o resultado não poderia sequer ser chamado de minirreforma. “O debate sobre a reforma política no Congresso foi frustrante. A relação de forças ainda é muito desfavorável para as mulheres. O que acabou direcionando a discussão foram algumas correções para que nesse ano o Judiciário não continuasse a legislar mais do que o próprio Legislativo, o que acontece quando o Legislativo não cumpre seu papel, inclusive em relação à questão eleitoral. Infelizmente não conseguimos incluir uma questão fundamental: acabar com o sistema de financiamento privado de campanha, o que contribuiria para uma participação maior das mulheres. A maioria das empresas tende a financiar candidaturas masculinas, enquanto as femininas acabam por captar menos recursos. Sendo assim, a reserva de 5% do fundo partidário à formação política das mulheres foi um dos poucos ganhos efetivos que conseguimos garantir”, destaca a deputada.

Para garantir o mínimo de 30% de mulheres, foi necessária uma alteração no artigo 10 da lei de 1997 – dispositivo conhecido como “lei de cotas para mulheres”. Em vez de “deverá reservar” 30% das vagas, como está escrito hoje na lei, a reforma estabeleceu o termo “preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo”, o que enfatiza o caráter obrigatório do dispositivo. Em outras palavras, a lei 12.034/09 substitui a palavra “reserva” pela palavra “preencherá”.

“A nossa expectativa é que esta mudança seja suficiente para obrigar os partidos a preencherem os 30% de candidatas do sexo feminino, assim como masculino. Se o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) exigir uma lista com o mínimo de 30% de participação feminina, as pesquisas mostram que haverá aumento do percentual de mulheres eleitas, pois os modelos estatísticos apontam que o número de mulheres eleitas aumenta quando aumenta o número de mulheres candidatas. Como a variável que mais explica as candidaturas é a reeleição, quando as mulheres tiverem tido a chance de participar das instâncias de poder, naturalmente o equilíbrio de gênero acontecerá e este tipo de ação afirmativa será dispensável”, prevê a demógrafa Suzana Cavenaghi, da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE).

“As cotas são importante instrumento para forçar a inclusão feminina, no entanto o seu cumprimento tem sido burlado por mecanismos artificiais, que não asseguram o crescimento do número de mulheres na democracia representativa. Na medida em que os partidos não mantêm políticas para a arregimentação de mulheres para a militância, persiste tal quadro”, analisa a jornalista e cientista política Télia Negrão, pesquisadora associada do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre a Mulher e Gênero da UFRGS e secretária executiva da Rede Feminista de Saúde.

A socióloga e comunicadora social Angela Freitas acredita que, embora as mudanças sejam insuficientes, será difícil realizar a reforma política de que o Brasil precisa nas circunstâncias atuais. E chama a atenção para uma disparidade nas cotas estabelecidas: “Soa estranho que a nova lei determine o quadro de candidaturas partidárias balanceadas, da ordem de um mínimo de 30% de candidatas mulheres, mas ao se referir à propaganda eleitoral esse mínimo vai para 10%. Não seria esta disparidade mais um mecanismo para reprimir as candidaturas femininas, e reservar mais tempo, sobretudo na mídia, para as candidaturas masculinas? Não haveria aí uma inspiração machista, ainda predominante nos partidos, sejam eles de esquerda ou de direita?”, questiona.

Apesar de não ser a reforma política esperada pelo movimento feminista, as especialistas acreditam que algumas das novas regras podem contribuir para elevar a representação política feminina, como por exemplo, o percentual de 5% do Fundo Partidário que deverá ser destinado à promoção da participação política feminina.

“Além do valor simbólico que a medida exerce, será possível destinar milhares de reais por ano, mesmo nos menores partidos, a atividades que promovam a participação feminina, como eventos de formação política, congressos, encontros, atos. O tempo de propaganda partidária a ser utilizado para o mesmo fim, apesar de ser muito baixo (10% do total), é um compromisso que os partidos terão de cumprir e, portanto, exerce uma função simbólica. O desafio agora será fazer com que os partidos políticos cumpram os compromissos assumidos neste processo. Além disso, os movimentos sociais deverão continuar insistindo para alcançar a reforma que queremos”, afirma a cientista política Patrícia Rangel, doutoranda no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB) e integrante da equipe de Assessoria Parlamentar do <CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria | | | _blank>>.



Listas preordenadas de candidaturas

Uma das propostas do movimento feminista no sentido de tentar alterar a situação de marginalização política da coletividade feminina é a adoção do sistema de lista fechada – uma das demandas dos movimentos sociais feitas aos parlamentares e que se tornou uma das principais questões em pauta na reforma eleitoral e partidária. No sistema brasileiro atual, eleitoras e eleitores votam em listas abertas de candidatas e candidatos, os quais acabam se sobrepondo aos partidos políticos. “Este sistema acaba por favorecer o personalismo e a competição interna em cada partido. A adoção da lista fechada – onde se vota nos partidos e não em pessoas – seria essencial para combater o personalismo, fortalecer e democratizar os partidos”, defende Patrícia Rangel, cuja dissertação de mestrado, defendida no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), versou sobre a representação feminina na Argentina, no Brasil e no Uruguai (clique aqui para ler a dissertação).

A Argentina usa o sistema de lista fechada com alternância de sexo (com pelo menos 30% de vagas distribuídas ao longo de toda a lista, o que diminui a competição entre candidatos do mesmo partido e exclui a possibilidade de se deixar as mulheres no final da lista). Lá tem que haver uma mulher pelo menos no terceiro, quinto e sétimo lugar da lista. Sendo assim, se o eleitor elege quatro deputados, uma vai ser mulher; se elege seis, duas serão do sexo feminino e assim por diante. Não à toa, no mesmo ranking da União Interparlamentar – onde o Brasil ocupa o 107º lugar em representação feminina no parlamento –, o país vizinho aparece como o 11º país no mundo, com 38,5% do Congresso ocupado por mulheres. Assim como a Argentina, o Uruguai adota listas fechadas, porém, não possui uma lei de cotas, apesar de vários projetos já terem sido apresentados nesse sentido. Na lista da IPU, o país aparece na 79ª posição.

“O caso uruguaio nos leva a concluir que listas fechadas e pré-ordenadas só beneficiam mulheres candidatas se houver o comprometimento dos partidos com a inclusão de mulheres ou algum tipo de legislação de cotas por sexo no sentido de obrigar a alternância do ordenamento por sexo, tornando o mecanismo de ação afirmativa mais eficaz”, analisa a cientista política.

Dos 11 países latino-americanos que possuem legislação de cotas, somente seis (entre eles a Argentina) estabeleceram algum tipo de pré-ordenamento dos candidatos na lista de forma a observar a alternância de gênero.

Para a deputada Cida Diogo, a adoção do sistema de listas preordenadas garantiria que os partidos se tornassem mais fortalecidos, e não as lideranças partidárias ou as pessoas que conseguem maior financiamento. “O sistema atual acaba fortalecendo um aspecto mais individualizado e pessoal do que o do conjunto partidário e institucional. Com a adoção da lista também garantiríamos a alternância da representação de gênero. Se passasse a vigorar desde já, iríamos triplicar o número de mulheres. Como houve resistência, passamos a negociar a possibilidade de esta alternância ser de 2 para 1. Mesmo assim, seria um avanço para a democracia”, assinala.

Assim como a colega parlamentar, a deputada Luíza Erundina defende a adoção do sistema de listas fechadas no Brasil, embora ainda sustente que o melhor seria a alternância de gênero de 1 por 1. “Não é que essa medida garanta de fato a participação das mulheres na política, mas contribui bastante para que se efetive. Prova disso são os países que adotaram essas cotas em lista pré-ordenada e fechada, com alternância de gênero. Nas últimas eleições em que adotaram esta mudança, houve um salto extraordinário em relação à participação da mulher nos parlamentos”, afirma.

Contudo, enquanto as parlamentares do sexo feminino apóiam esta mudança, os parlamentares do sexo masculino desaprovam. Pesquisa realizada pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) no Congresso Nacional revelou que 63% das mulheres parlamentares concordam com a adoção da lista fechada com alternância de sexo. Porém, 72% dos parlamentares homens discordam de adotar lista fechada com alternância de sexo, e 60% destes discordam da punição para os partidos que não cumprirem as cotas.

“O que a pesquisa do CFEMEA aponta é a antiga luta pela sobrevivência: os parlamentares estão legislando em função do interesse próprio. Porém, se houver uma pressão da sociedade, esta triste realidade pode mudar, dado que não foram eleitos para legislar em causa própria. Quem sabe, se o eleitorado, convencido de que uma democracia de fato necessita ter maior equidade de gênero na política, pudesse decidir esta questão por meio de um plebiscito, ajudando assim os seus representantes a legislarem pela maioria”, sugere Suzana Cavenaghi.

“O sistema brasileiro, de lista aberta, é um sistema em que a competição depende muito do candidato ou do capital político que ele tem. É bem diferente do sistema de lista fechada, em que, a depender da ordem da colocação na lista, estar na lista significa estar praticamente eleita”, argumenta a socióloga Clara Araújo, professora do Programa de Graduação e Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS/UERJ).

No entanto, Clara Araújo não acha que esta seja uma discussão fácil e que tampouco possa ser reduzida às cotas. “Não podemos olhar a validade e justiça do sistema eleitoral, se aberto ou fechado, isolando a ótica do gênero apenas. Saber qual o sistema mais democrático de lista envolve um conjunto de variáveis. Por exemplo, muitos defensores da lista aberta argumentam que ela preserva uma coisa importante, que é a autonomia do eleitor em relação ao partido. O eleitor não é obrigado a votar em uma lista colocada pelo partido. Outros, em relação às mulheres, argumentam que o sistema de lista fechada põe as mulheres numa situação de dependência da direção partidária e lhes coloca a exigência da lealdade. Assim, quem for aliada da direção tem assegurada uma boa posição na lista; quem não for, corre o risco de não ser eleita… Há paises como a Finlândia, com lista aberta, e que tem um dos mais altos percentuais de participação de mulheres. Mas há também muitos países com lista fechada, de tradição partidária mais aberta, democrática e transparente, em que a existência das cotas fez um bem enorme”, ressalva Clara Araújo.

Cotas: sucesso na Argentina, fracasso no Brasil

Ao contrário de outros fenômenos, não é difícil compreender o sucesso das cotas na Argentina e seu fracasso no Brasil, desde que a lei foi instituída, em 1997. Na Argentina, o sucesso das cotas em muito se deveu à sua interação com o sistema eleitoral. Outra diferença entre um país e outro é a atuação das instituições responsáveis pelo cumprimento e aplicação das normas eleitorais. No país vizinho, as decisões judiciais positivas da Câmara Nacional Eleitoral foram decisivas para legitimar o sistema de cotas, o qual, além de encontrar condições favoráveis, é respeitado pelos partidos políticos, graças às sanções previstas. Esse, na análise de especialistas, é o primeiro passo para criar um ambiente favorável para a participação feminina e para estimular mulheres com interesse em política a se tornarem candidatas.

No Brasil, por sua vez, o descaso das instituições e a ausência de sanções para os violadores da norma contribuem para que o mecanismo assuma um valor mais simbólico do que efetivo. “No caso brasileiro, a institucionalização da ação afirmativa já não era respeitada em sua etapa de preparação. A cada novo projeto de lei visando diminuir as disparidades de participação política entre os sexos, apresentava-se outro projeto neutralizando seu efeito. Não existe fórmula eleitoral mágica, e o sucesso da representação feminina em cargos legislativos depende da interação de um sem-número de fatores e das peculiaridades de cada país”, critica Patrícia Rangel.

Uma pesquisa feita pelo Ibope juntamente com o Instituto Patrícia Galvão mostrou que a grande maioria da população brasileira (75%) apoia a política de cotas para as mulheres, e um número ainda maior (86%) declarou concordar com a punição aos partidos políticos que não cumprirem a meta de 30% de candidaturas femininas. Os resultados revelaram ainda que 83% dos entrevistados concordam que a presença de mulheres no poder melhora a política nesses espaços; 75% admitem que só há democracia, de fato, se elas estiverem nos espaços de poder e 73% confirmam que a população brasileira ganha com a eleição de um maior número de mulheres.

Líder no Congresso na discussão do tema, a deputada Luíza Erundina não acredita que os partidos cumprirão as determinações legais da minirreforma por iniciativa própria. “Vai ser necessário que as mulheres dos diferentes partidos se organizem, se articulem e se mobilizem para pressionar coletiva e pluripartidariamente as direções dos partidos, acionando, se necessário, o Poder Judiciário para que a lei seja cumprida. Isso terá que ser feito o quanto antes, para que as mulheres, em seus respectivos partidos, influenciem e participem da definição das normas e procedimentos necessários à aplicação da lei”, assinala.

Para Angela Freitas, o Brasil precisa das duas coisas: “Uma reforma política radical – e com o perfil do Congresso hoje isto parece praticamente impossível – e a existência de quadros femininos dispostos e preparados para ocupar os espaços que, por exemplo, a própria minirreforma oferece. Concordo com as cotas como medida democrática, mas tenho clareza de que não funcionam para mudar o sistema machista se não houver quadros interessados e formados para lutar contra a maré”, salienta.

Segundo todas as especialistas entrevistadas, o país poderá vir a alcançar posição melhor no ranking da representatividade feminina na política. Por enquanto, está entre os piores. Em quase dois séculos de Legislativo, nunca uma mulher ocupou a mesa diretora da Câmara. Não à toa, na lista da União Interparlamentar, o Brasil só esteja acima de países com nenhuma ou quase nenhuma mulher no parlamento, como a Arábia Saudita.

Para a deputada Luiza Erundina, há várias razões para que o número de mulheres que militam na política ainda seja muito pequeno. Ela cita desde o condicionamento cultural, social e econômico que se impõe à presença feminina na sociedade, ao machismo presente nas esferas pessoal, social e política. Além disso, para ela “a mulher ainda não tomou plena consciência do seu papel na sociedade; dos seus direitos de cidadania e da participação política como condição para garantir seus direitos”, afirma.

A socióloga Clara Araújo pondera: “A impressão que tenho é que olhamos o final do processo e não o processo como um todo, e centramos basicamente no partido o fato de não haver candidatas, mas não olhamos como e quais as condições para que mais mulheres queiram ser candidatas. É preciso ampliar esse olhar. De todo modo, creio que será uma boa experiência poder comparar o resultado até então obtido com os resultados que virão com a obrigatoriedade das cotas”, conclui.

Leia também o relatório “Mulheres, Poder e Decisão”, do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero.


Veja a situação em outros países da América Latina.