A reforma do Código Penal brasileiro que tramita no Senado tem despertado reações opostas no movimento feminista. De um lado, o anteprojeto dispõe, por exemplo, que o aborto deixe de ser crime até a 12ª semana de gestação (desde que comprovado que a gestante não tem condições financeiras ou mentais para continuar a gravidez), previsão que gerou comemoração diante de tema tão caro ao movimento de mulheres. Do outro lado, conforme o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) tem alertado, alterações no Código podem levar a retrocessos em relação à violência de gênero e ao estupro, afetando, inclusive, a Lei Maria da Penha, um marco no processo de enfrentamento da violência contra a mulher. Tais preocupações se revelam por meio de termos, frases e pequenas nuances jurídicas.
De acordo com a advogada e assessora do Cfemea Luana Natielle, o novo Código Penal prevê, no artigo 129, que trata de crimes de lesão corporal, a substituição da pena por medidas alternativas. A Lei Maria da Penha veda qualquer tipo de medida alternativa quando há violência contra a mulher. “A violência doméstica, de gênero, se manifesta, dentre outras formas, por lesão corporal. A Lei Maria da Penha acrescentou ao artigo 129 parágrafo definindo a violência doméstica como qualificada, isto é, incidindo sobre o aumento da pena. No novo Código, o parágrafo está excluído. Da forma como está, o texto coloca a violência de gênero no rol de crimes de menor potencial ofensivo. Não podemos aceitar que o combate à violência contra a mulher sofra tal retrocesso”, critica Luana Natielle.
De acordo com Bernardo Campinho, advogado e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), a maneira como o texto configura-se deixa entrever que as lesões corporais leves estarão inseridas nesta abordagem. “Estou de acordo com o Cfemea, especialmente porque, em casos de violência de gênero e doméstica, as lesões mais leves podem ser o início de uma série de agressões que vão se agravando ao longo do tempo. A Lei Maria da Penha é um marco para o país, pois incorporou um tratamento mais rigoroso para a violência contra mulher. Tal medida poderia sinalizar um retorno da ideia de crime de menor potencial ofensivo. Em casos de agressão no contexto da violência doméstica e familiar contra a mulher, não concordo com a possibilidade de penas restritivas de direitos, mais conhecidas como medidas alternativas”, observa Bernardo Campinho.
Desde que foi implementada, há seis anos, a lei Maria da Penha estabeleceu um novo padrão de enfrentamento à violência de gênero, que até então era comumente punida com penas alternativas. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), até dezembro de 2011, foram instaurados 685.905 mil procedimentos baseados na lei. A sanção da lei foi relevante, inclusive, como tem apontado o movimento feminista, para expandir a percepção das mulheres, que passaram a ter mais discernimento de seus direitos. A violência de gênero, nesse sentido, deixou de ser vista como um fato natural, revelando-se em seus elementos socioculturais.
O tratamento penal, afirma Luana Natielle, é um aspecto relevante no caso da violência contra mulher. “Temos a consciência de que o sistema prisional brasileiro é precário, superlotado e repleto de falhas. No entanto, a pena de prisão é uma vitória simbólica das feministas e das mulheres, pois rompe com a ideia de que os crimes contra mulheres poderiam ser relativizados. Afinal, na sociedade patriarcal em que vivemos, a dominação dos homens, a questão da mulher como posse do companheiro e a justificativa da honra masculina ajudaram a construir certa inevitabilidade da violência doméstica, de gênero. Por isso, prender o agressor é tão importante, pelo seu efeito simbólico e pela garantia de proteção às mulheres vítimas”, observa a assessora do Cfemea.
O texto do novo Código Penal não estipula o feminicídio, incluindo o ambiente doméstico e familiar como qualificador para os crimes de homicídio. “Isso traz alguns problemas, pois há arranjos conjugais e tipos de relacionamento que não se encaixam nesses moldes. Como se procederá quando o namorado matar a namorada, sem que ambos vivam juntos, ou quando a violência se der em função do gênero feminino? Há situações em que a agressão ocorre sem que haja relacionamento.”, aponta Luana Natielle.
Estupro e aborto
Outro aspecto que resultou em críticas é a previsão sobre os crimes contra a dignidade sexual. No texto, não estão mencionados os estupros mediante fraude (quando a vítima é dopada por meio de drogas), coletivo (contra várias mulheres) e o corretivo (realizado com o objetivo de “curar” a homossexualidade). “São crimes específicos, que têm o gênero como elemento central. Acredito que não prever textualmente tais delitos retira das mulheres, de certa forma, formas de proteção que precisam estar bem definidas”, afirma Luana Natielle.
De acordo com o Cfemea, assim como outros movimentos de mulheres como as Católicas pelo Direito de Decidir (http://www.clam.org.br/destaque/conteudo.asp?cod=9867), a reforma no Código Penal traz avanços importantes no campo dos direitos das mulheres e dos direitos sexuais e reprodutivos. O texto prevê a criminalização da homofobia (por orientação sexual e identidade de gênero), equiparando-a aos crimes de discriminação e preconceito por cor e raça. Além disso, o aborto é estendido à mulher até a 12ª semana de gestação, ao ser constatado que ela não tem condições financeiras ou físico-mentais para levar à frente a gravidez. Tema que desperta a reação de setores religiosos e dogmáticos, atualmente, a interrupção da gravidez é legal quando resulta de estupro, põe em risco a vida da mulher ou quando o feto é anencéfalo. “São propostas muito bem-vindas. O aborto é um grave problema de saúde no Brasil. A ilegalidade da prática pesa mais sobre mulheres pobres e negras. É um tema muito importante ao movimento de mulheres. Ainda que o aborto permaneça como um direito tutelado, já que a permissão passa pelo aval de outra pessoa, a proposta representa um progresso. O Cfemea apoia o novo Código em seus avanços, mas sem perder de vista que há retrocessos que precisam ser solucionados”, afirma Luana Natielle.
Para a presidente da Comissão de Bioética e Biodireito (OAB-RJ), Maíra Fernandes, o novo Código Penal não é a proposta ideal, mas traz avanços importantes. “Em primeiro lugar, está previsto que se houver risco de vida ou à saúde da gestante, a interrupção da gravidez é permitida. É um passo à frente em relação ao Código atual, no qual apenas o risco imediato à vida autoriza o aborto. Por exemplo, se uma mulher, orientada pelo médico a não engravidar em função do que isso pode trazer à saúde dela, como um câncer de útero, acaba engravidando, não tem o direito de interromper a gravidez. Isso mudará, conforme o texto do novo Código. É uma mudança que está de acordo com o conceito de saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), que entende saúde como estado de bem-estar físico e mental”, observa Maíra Fernandes. “Outro aspecto importante é que seja mais preciso e claro o que se entende por falta de condições psicológicas e mentais. Significa, de qualquer forma, uma tutela à autonomia da mulher, pois a decisão é repassada para um terceiro. Ainda assim, estamos avançando na questão dos direitos reprodutivos das mulheres brasileiras, seja no plano jurídico, seja no plano da qualidade dos debates que têm sido promovidos pela mídia. Penso que a sociedade está amadurecendo”, completa Maíra Fernandes.
Buscando ajustar e melhorar os retrocessos, o Cfemea tem feito um esforço de advocacy com senadores para tentar inclui emendas no texto. O prazo final é 4 de novembro. “O senador Pedro Taques, relator do anteprojeto de lei, tem se mostrado sensível às sugestões no que diz respeito à violência contra a mulher. O tempo é curto, mas só nos resta empenharmos de maneira firme para que as mulheres brasileiras não saiam perdedoras na reforma”, conclui Luana Natielle.
Código em discussão
A repercussão da reforma do Código na sociedade brasileira tem mobilizado diversos setores, instituições e vozes nos debates sobre as implicações das mudanças propostas no texto. A OAB-RJ promoveu, no dia 24/10, o primeiro ciclo de palestras “Reforma do Código Penal: temas controversos, novos paradigmas”.
Na mesa sobre direitos LGBT, o presidente do Grupo Arco-Íris, Julio Moreira, destacou a necessidade de se criminalizar a homofobia. “A homofobia não é um tema apenas da população LGBT. Tem afetado também os heterossexuais. Temos visto casos de pais e filhos, irmãos e amigos que, abraçados, são vítimas de agressões por parecerem gays. A previsão de uma categoria jurídica que pune discriminação e preconceito por orientação sexual e identidade de gênero é um avanço muito bem-vindo”, afirmou Julio Moreira.
A inclusão da identidade de gênero como motivação de discriminação foi uma iniciativa da OAB-RJ, que argumentou que não apenas a orientação sexual desperta crimes de ódio. Os indivíduos trans também são vítimas constantes de agressões simbólicas e físicas.
Para Julio Moreira, o respeito à diversidade é combatido por setores fundamentalistas que fazem uso torpe das crenças como arma de ataque. “Nossos adversários não são as religiões. São grupos que fazem uso radical dos dogmas para embasar discursos de ódio. Eles nos acusam de queremos fazer uma lavagem cerebral, de querer impor nossa sexualidade aos outros indivíduos. Não é nossa intenção. Queremos, sim, ter nossos direitos e espaços respeitados”, afirmou Julio Moreira.
O advogado Evandro Ferreira Gomes falou sobre a importância da lei penal como instrumento de mudança de mentalidade. “Através das leis, o povo se adapta, apreende novos parâmetros. É uma forma de doutrinar as pessoas sobre o que é certo e errado. E a homofobia é uma forma de preconceito que precisa ser combatida”, argumentou o advogado.
O professor do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC) e mestre em Direito Penal Felipe Caldeira afirmou que a criminalização da homofobia é uma necessidade lógica. “Todo crime precisa de uma lógica para ganhar sentido. O estudo e a observação empírica mostram que há dados suficientes mostrando que é preciso punir a homofobia. Os atos de violência que temos visto contra tal segmento na imprensa demonstram isso. Portanto, é necessária uma tutela específica, nos moldes das que existem na questão da raça, etnia, procedência nacional e religião”, argumentou Felipe Caldeira, que se declarou contra a reforma do Código da forma como está e defendeu mudanças na redação do texto no que refere à questão da criminalização da homofobia. “O texto estipula a punição de práticas e condutas discriminatórias ou preconceituosas. É preciso indicar o que são tais condutas. Afinal, o Código faz menção a centenas de práticas criminosas. Da forma como está, fica muito aberto. Em todo caso, criminalizar a homofobia é uma maneira de resgatar a dignidade das pessoas homossexuais.”, explicou.
Na mesa sobre violência doméstica e Lei Maria da Penha, a professora e especialista em teorias feministas do Direito Ana Lucia Sabadell (UFRJ) criticou a ênfase penal na abordagem da violência de gênero. “A política educacional é o caminho mais adequado para combater o patriarcalismo, que muitas vezes se mostra presente nos textos e normas jurídicas. Aniquilar o machismo em sua origem não se faz por meio do encarceramento, mas sim pelo âmbito da educação. Não temos políticas de gênero na escola. A via penal muitas vezes é uma necessidade, mas não se pode fechar apenas em torno dela. Criminalizar o feminicídio não vai acabar com ele”, criticou Ana Lucia Sabadell, criticando também a ausência da academia brasileira na comissão de juristas encarregada do texto do novo Código.
A advogada e diretora da ONG Cepia, Leila Linhares, discordou da companheira de mesa. “A lei é uma forma de educar. O racismo, por exemplo, após a sua criminalização introjetou-se na mentalidade das pessoas como uma coisa errada, criminosa. Não podemos subestimar a punição penal da violência de gênero, que é um avanço para as mulheres brasileiras. Até 1994, a figura da defesa da honra era aceita como forma de defesa no Brasil. Isso demonstra como temos avançado nas questões legais e, ao mesmo tempo, chamado a atenção para a origem e a legitimidade social da violência contra a mulher, concretizada em códigos e condutas patriarcais”, afirmou Leila Linhares, que destacou a relevância do novo Código Penal não perder de vista os direitos das mulheres.