CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

O amor no mercado sexual

Por Washington Castilhos

As pessoas são educadas para acreditar que o amor deve ser espontâneo, transcendental, irracional, desinteressado e não envolver dinheiro. Existe mesmo a crença de que a comodificação inevitavelmente destrói a intimidade, o que pode ser a razão pela qual a interseção entre trabalho sexual e o amor gere tanta confusão e conflito. Mas quem disse que um exclui o outro?

No livro On the move for love, a antropóloga Sealing Cheng, professora associada de Antropologia na Universidade Chinesa de Hong Kong, acompanha a vida de imigrantes Filipinas que trabalham em boates na Coreia do Sul. Abordando suas aspirações por amor e por um futuro melhor, a etnografia de Cheng ilumina as complexas relações que estas mulheres constroem com seus empregadores e seus clientes-namorados. A autora nos oferece uma crítica dos discursos anti-tráfico que enxergam as mulheres apenas como vítimas, ignorando sua agência e livres escolhas. 

Depois de quase duas décadas de pesquisa e reflexão sobre assuntos ligados ao trabalho sexual, uma das lições mais importantes que ela ‘aprendeu’ foi sobre o amor. “Sim, essas mulheres podem encontrar esperança e amor, amizade e dignidade entre elas, e com seus clientes e os donos das boates”, afirma Sealing Cheng, que abriu a IX Conferência da Associação Internacional para o Estudo da Sexualidade, Cultura e Sociedade (IASSCS), realizada em Buenos Aires em agosto.

“Com meu trabalho de campo, aprendi que o amor pode surgir da gratidão, que se pode ‘aprender a amar’. Uma maneira de se acessar o amor pode envolver o dinheiro, ele pode estar relacionado a quanto é dado a uma pessoa. E o amor não tem a ver somente com os sentimentos de uma pessoa, mas também com o bem-estar e a satisfação de sua família. Ideias muito diferentes daquelas que aprendi enquanto crescia”, diz ela.

Sealing Cheng começou sua pesquisa sobre prostituição em campos militares da Coreia do Sul em 1998, especificamente nos chamados R&R (rest and recreation), onde trabalham os militares norte-americanos instalados no país após a guerra entre as duas Coreias como parte dos esforços para conter o comunismo. Atraída pelas experiências das mulheres coreanas que trabalhavam em clubes noturnos nas cidades onde existem campos militares, ao chegar ao país a pesquisadora se deparou com outra realidade: as nativas estavam sendo substituídas pelas filipinas e mulheres oriundas de países que faziam parte da antiga União Soviética. O rápido crescimento econômico da Coreia do Sul, combinado com o estigma e os baixos salários, culminaram numa diminuição no número de mulheres coreanas dispostas a servir os soldados norte-americanos. Para cobrir as vagas deixadas por elas, os donos das boates então importaram a mão-de-obra mais barata das mulheres das Filipinas e da antiga União Soviética.

Na época, mulheres do terceiro mundo que migravam para se engajar na prostituição no exterior tornaram-se um potencial foco de atenção da ONU, que no fim daquela década promulgaria o Protocolo de Palermo.

“Para muitas acadêmicas feministas e ativistas que tinham trabalhado com o tema antes de mim, eu estava pesquisando sobre a violência que o militarismo, o patriarcalismo, o capitalismo e a globalização trouxeram para as mulheres. Mas em meu trabalho de campo, não houve um dia sequer sem que eu falasse com as filipinas e os militares, assim como com os proprietários dos clubes, sobre relacionamentos, brigas, ciúmes, desconfianças e amor entre as filipinas e os soldados. Eu me perdi por um tempo entre o discurso do tráfico humano que os Estados e as ONGs usavam para descrever mulheres como aquelas filipinas, e o que apreendia com a minha interação diária com elas. Sim, elas tinham que lidar com as dificuldades pessoais e as condições de trabalho, mas ainda assim, a sua maneira, a maioria tinha encontrado esperança e amor, amizade e dignidade entre elas mesmas, com seus clientes e com os donos das boates”, relembra a pesquisadora.

Para ela, ainda que em grande medida a vida daquelas mulheres se encaixem na definição de tráfico –– seus empregadores apreendem seus passaportes e salários, e arbitrariamente lhes impõe castigos –– “se usarmos a perspectiva do tráfico humano para analisar sua presença nos campos militares, presumindo uma vitimização sexual, e trabalharmos para resgatá-las e mandá-las de volta para casa, talvez estaremos indo contra não apenas suas vontades, mas também nunca compreenderemos por que essas mulheres querem permanecer nos clubes, por que desejam encontrar seus namorados soldados, por que muitas vezes elas fazem sexo de graça, e por que elas até mesmo falam sobre o amor”.

Cheng decidiu então nomear o seu livro ––On the Move for Love(“Em busca do amor”, numa tradução livre) –– a partir das experiências das trabalhadoras sexuais Filipinas na Coreia do Sul, além de passar a ministrar uma disciplina sobre Amor e Intimidade para ajudar a pensar o “amor” como uma construção histórica e cultural, e o quanto ele está imerso na nossa compreensão de gênero, sexualidade, raça, classe, nação e história.

“Não quero dizer que o amor seja o grande equalizador que pode apagar os diferenciais entre as trabalhadoras sexuais filipinas e seus clientes soldados norte-americanos. Eu tento mostrar que o amor é um aspecto integral das negociações em suas relações estruturalmente assimétricas”.

Em resposta à crença de que a comodificação destrói o amor e a intimidade sexual, a antropóloga argumenta que uma grande variedade de relações interpessoais combinam a atividade sexual com a atividade econômica, desde as mais breves relações chamadas de “trabalho sexual” (Stitchcombe, 1994), até as mais duradouras, a que convencionou-se chamar de “unidades domésticas” (Zelizer, 2006).

“Esta crença reduz a comodificação a uma lógica racionalista e idealiza a intimidade sexual como uma mera experiência emocional. Como uma ideia moderna, ela reforça a noção da família como um abrigo seguro de amor e cuidado, livre do frio e rude mundo exterior. Mas sempre esquecemos que nos engajamos em um monte de transações econômicas nas nossas vidas particulares”.

Para mostrar como a mercantilização (o dinheiro) e a intimidade sexual não necessariamente se excluem, seja na comercialização do sexo ou em outras relações interpessoais, Cheng cita a ideia de “autenticidade delimitada” (“bounded authenticity” no original) trabalhada pela socióloga Elizabeth Bernstein (Barnard College):

“Bernstein aponta em seu estudo que, tanto quem vende quanto quem compra sexo por dinheiro percebe a troca como uma conexão autenticamente emocional e física. O que os clientes compram na transação da prostituição é a fantasia de um encontro sexual desejado e vivenciado como especial ou mesmo romântico por ambos (trabalhador/a do sexo e cliente). Bernstein afirma que o que os clientes/informantes buscavam no que ficou conhecido como “Girlfriend Experience” – onde o que é vendido e negociado é uma autenticidade manufaturada que simula a existência de uma namorada – não é um substituto para uma namorada de verdade, mas sim exatamente a relação demarcada. O pagamento feito pelo serviço funciona como seu limite, e se busca exatamente isto, o limite. Ou seja, sexo/afeto como experiência ‘livre’ das obrigações costumeiras. As relações que as filipinas constroem com seus clientes-namorados se encaixam neste formato”, conclui Sealing Cheng.