O trabalho de Gilberto Velho (1945-2012), conforme descrito por ele próprio durante a 32ª Reunião Anual da Anpocs, em 2008, foi sobretudo um trabalho de interlocutor, de estimular pesquisas, de orientar teses e dissertações, e de organizar reuniões através das sociedades e instâncias científicas que presidiu, como a ABA e a Anpocs.
Pioneiro na linha da antropologia urbana no Brasil, Gilberto dispensava atenção para o que não era convencional, teve contato estreito com a problemática do desvio e da transgressão, especialmente em relação ao uso de drogas. Aberto intelectualmente, tinha um descortino a temas sensíveis, falava da complexidade do mundo social. Seu interesse pela literatura e fascínio pela antiguidade ampliou o horizonte de sensibilidade aos variados temas de pesquisa que ele orientava.
“Meu interesse em história e literatura fez com que, quando eu me aproximei da antropologia, já tivesse a atitude de observar participando”, ele lembrou em certa ocasião.
Gilberto Velho inaugurou o campo da antropologia urbana no país, publicando inúmeros livros e artigos sobre assuntos diversos, desde a Utopia Urbana (1973) – no qual escreveu sobre a experiência social de morar num prédio de conjugados em Copacabana – a temas candentes, como a violência urbana e o significado social e político das drogas. Elaborou, a partir de diálogo fundado em Georg Simmel e Louis Dumont, modos inovadores de pensar o fenômeno do individualismo. Centrou-se no estudo de conceitos como “camadas médias” e na problematização do “desvio e divergência”.
Sempre aberto a temas para os quais muitas vezes os cientistas sociais ainda não davam atenção, como a legalização das drogas, a sexualidade, a vida urbana e a segurança pública, influenciou o pensamento brasileiro. Teve papel importante na institucionalização das Ciências Sociais no Brasil e sua internacionalização, e foi peça-chave na consolidação do programa de pós-graduação do Museu Nacional.
Instigava-o a discussão de indivíduo e sociedade e a questão das trajetórias individuais, das opções, das escolhas, e atribuía isto a seu contato com a literatura existencialista de Jean-Paul Sartre. Por esta generosidade de seu olhar sobre variados temas, incluindo a sexualidade, orientou uma das primeiras teses sobre homossexualidade no país – “O homossexual visto por entendidos”, de Carmem Dora Guimarães, em 1977 – hoje publicada na coleção Sexualidade, Gênero e Sociedade (CLAM/Garamond Universitária). Além disso, orientou vários outros trabalhos fundamentais para a consolidação deste campo de pesquisa no Brasil, como “Dois é par: conjugalidade, gênero e identidade”, tese de doutorado defendida por Maria Luiza Heilborn em 1992, e atualmente publicada na mesma coleção.
Ao longo de sua carreira, foram 61 dissertações de mestrado e 35 teses de doutorado, o que representa toda uma geração de antropólogos que, por sua vez, formaram e continuam a formar novos pesquisadores em diversos campos nas universidades brasileiras. Introduziu inovações intelectuais importantes no Brasil e orientou nomes como Luiz Fernando Dias Duarte – “Da vida nervosa: pessoa e modernidade entre as classes trabalhadoras” (1985) –, Karina Kuschnir – “Política e sociabilidade: um estudo de antropologia social” (1998) –, Myriam Lins de Barros – “Testemunho de vida: um estudo antropológico de mulheres na velhice” (1980) –, Jane Russo – "O corpo contra a palavra: as terapias corporais no campo psicológico dos anos 80" (1991) -, entre outros.
Em nota pessoal, Karina Kuschnir ressaltou a obsessiva disciplina do antropólogo para orientar. "Cobrava, reclamava e brigava – muito. Mas tentava compensar essa rigidez com um imenso afeto e vontade de nos ver crescer". À antropóloga colombiana Maria Elvira Diaz-Benitez, sua orientanda na tese "Nas redes do sexo: bastidores e cenários do pornô brasileiro" (2009), ele aconselhava, de modo paternal: "Tenha cuidado com os limites do bizarro, não se exponha demais". Quando propôs o tema de sua dissertação de mestrado "O baile funk: festas e estilos de vida metropolitana" (1987), Hermano Vianna convidou o orientador a acompanhá-lo a um baile funk no subúrbio carioca. Gilberto o acompanhou. Colega de docência no Museu Nacional, Adrianna Vianna destaca que o bom humor e o olhar arguto eram suas características marcantes.
No plano da política institucional, Gilberto Velho ocupou posições importantes: foi presidente da Anpocs e da ABA, e, em 2000, tornou-se o primeiro cientista social a ser incorporado à Academia Brasileira de Ciências (ABC), até então restrita a pesquisadores e cientistas do âmbito das ciências exatas e naturais. Foi condecorado com a Ordem Nacional do Mérito Científico, com o grau de comendador, em 1995, e com o grau Grã-Cruz, em 2000, da Presidência da República. Em 1999, também foi condecorado comendador da Ordem do Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores.
Publicou 113 artigos em periódicos e 28 livros, vários dos quais coletâneas produzidas com alunos e ex-alunos, uma delas o famoso Desvio e Divergência: uma crítica da patologia social que, ao ser lançado exitosamente para os padrões da época, fez com que um intelectual dissesse: “Não tem sentido um antropólogo estudar puta e viado. Antropólogo tem que estudar índio”. Anos depois, ao relembrar o fato, o antropólogo observou: “O fato é que as pessoas têm o direito a opiniões diferentes. O que não pode se aceitar é que tentem barrar o caminho de outras”.
Assista vídeo da conversa com Gilberto Velho realizada no 32º Encontro Anual da Anpocs – 2008