As três peças publicitárias estreladas pela modelo brasileira Gisele Bündchen para a marca de roupas íntimas Hope tinham, cada uma, por volta de 17 segundos. O suficiente para gerar grande repercussão que já dura há algumas semanas, quando a publicidade foi lançada nas emissoras de televisão. Nos anúncios, a modelo aparece de calcinha e sutiã, mostrando como se deve contar ao marido coisas desagradáveis, tais como ter batido com o carro, ter “estourado” o limite do cartão de crédito ou avisar que a mãe irá morar com eles. Na ótica dos publicitários responsáveis pelo comercial, a forma “correta” de uma mulher dar estes tipos de notícias é usando lingerie. Ao final, o locutor ainda afirma: ´’Você é brasileira, use o seu charme”.
O recurso ao estereótipo da mulher como objeto sexual apontado nas peças foi duramente repreendido. A Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), do governo federal, pediu ao Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) a suspensão dos anúncios, justificando que eles expressam conteúdo discriminatório contra a mulher. O Conar, no entanto, negou o recurso da SPM e liberou a veiculação das peças sob o argumento de que “os estereótipos presentes na campanha são comuns à sociedade e facilmente identificados por ela, não desmerecendo a condição feminina”. A Hope tinha afirmado que a propaganda teve o objetivo de mostrar de forma bem-humorada a sensualidade da mulher para contornar notícias ruins. Os defensores da campanha seguiram a mesma justificativa, alegando que se trata de uma brincadeira e acusando os críticos de autoritários.
Opiniões distintas fizeram a polêmica ganhar corpo em torno do tema da representação da mulher na mídia, uma das agendas do movimento feminista na atualidade. Jacira Vieira de Melo, diretora-executiva do Instituto Patrícia Galvão, afirma que a campanha da Hope reforça estereótipos no que tange à sexualidade. “Há a exploração da sedução como forma de manipular. É um estereótipo clássico da mulher, pois mexe com o imaginário. Para se relacionar com o masculino, a sedução seria o meio mais eficaz. Nesse sentido, acredito que seja uma peça discriminatória”, critica.
Para a socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero (Pagu/Unicamp) Iara Beleli, que há anos investiga representações de gênero e de corpo na mídia, o recurso do estereótipo é comum da propaganda. “Não é de hoje que a sexualidade e o corpo expressam uma forma de o marketing chamar e ganhar a atenção do consumidor. As propagandas – e o caso da Hope exemplifica bem essa realidade – operam a partir das diferenças sexuais e de convenções de gênero. Tais peças publicitárias não são algo inédito. Pelo contrário, há outras peças publicitárias que há anos vêm trabalhando com uma linguagem ainda mais sexista, como as de cerveja, nas quais muitas vezes a mulher limita-se a ser um objeto sexual”, explica Iara Beleli.
A campanha, observa Jacira de Melo, preocupa pela repercussão que pode ter, sobretudo em relação aos jovens. “É preocupante uma vez que pesquisas do próprio campo da publicidade demonstram que a televisão é um canal de informação muito forte para a juventude. Esse tipo de reforço de estereótipo entre homens e mulheres é nefasto para essa faixa da população, pois eles podem absorver e reproduzir tais representações. A publicidade da Hope atua com um grau de liberdade sem limites, oferecendo soluções de cunho sensual pra situações de conflito. Ao pedir que as mulheres exerçam o charme para resolver conflitos, a relação de respeito entre homens e mulheres é desprezada. É um caso em que a publicidade não é lúdica ou satírica, pois ela usa o imaginário e os estereótipos justamente para vender uma marca, um produto”, critica a diretora-executiva do Instituto Patrícia Galvão.
A propaganda da Hope não opera no vazio, aponta a socióloga e comunicadora social Angela Freitas, integrante da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB/RJ). “Faz parte de nossa cultura achar graça de publicidades como esta; faz parte valorizar a mulher pelo corpo e dentro de um padrão de beleza. O humor a que recorre a propaganda é um reflexo dessa situação. As pessoas acham graça. A desqualificação dos relacionamentos amorosos entre homem e mulher representam um valor em nossa sociedade”, afirma, completando que, em outros países, talvez esse tipo de publicidade recebesse uma reprovação muito maior do que no Brasil.
Iara Beleli afirma que é preciso analisar a polêmica com cuidado. “É fascinante o que uma peça sobre lingerie pode fazer. Acredito que a SPM agiu de forma legítima, pois se manifestou diante das inúmeras críticas que recebeu por meio de sua ouvidoria. No entanto, penso que a iniciativa poderia ser de outra ordem. Pedir a suspensão do anúncio não tem rentabilidade. Se há censura de uma propaganda, abre-se um precedente perigoso”, pondera Iara Beleli.
De acordo com ela, um dos desdobramentos mais preocupantes da polêmica foi a reação gerada na internet. “Em fóruns de discussão online, o tom foi virulento e agressivo. O alvo era a ministra e sua equipe: nos comentários, a iniciativa da SPM seria uma conseqüência do fato de elas serem mulheres feias, mal amadas e lésbicas. Isso é muito forte, sobretudo porque repercute sobre a própria história e definição do feminismo, que seria, na perspectiva sexista, um movimento de mulheres recalcadas”, comenta Iara Beleli.
Para Jacira de Melo, as acusações de autoritarismo em relação à atitude tomada pela Secretaria de Políticas para as Mulheres são infundadas. “Em países como França, Inglaterra e Espanha as autoridades interpelam com frequência propagandas que recorrem ao estereótipo da mulher como objeto sexual para vender produtos. Não há nada de autoritário nisso, há, sim, um processo natural do jogo democrático”, afirma a diretora do Instituto Patrícia Galvão.
De acordo com a doutora em Ciências da Comunicação e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Liv Sovik, a contra-acusação de cerceamento da liberdade de expressão é de praxe. “A acusação de sexismo à propaganda me parece fundamentada. A figura da mulher que seduz para obter vantagens da figura masculina é um estereótipo e, como tal, finge informar, sem efetivamente contribuir para um conhecimento sobre as pessoas nas relações cotidianas. O humor do anúncio da Hope ridiculariza a mulher através desse estereótipo”, critica.
Liv Sovik lembra que fabricantes e empresas fazem pesquisas de mercado, grupos focais, imitam concorrentes e tentam produzir atitudes positivas diante de marcas. No entanto, ressalta, “a relação entre consumidor e a compra de um produto ainda é um mistério. Se não fosse assim, não seriam necessárias agências de publicidade: bastariam departamentos de marketing, com seus planos promocionais, segundo [a socióloga] Celia Lurie e [o sociólogo] Alan Warde, ou de outros intermediários, como consultores de gestão e mídia, de acordo com [a socióloga] Elizabeth Moor. Presumimos que os publicitários detenham conhecimento especial sobre o público e seus desejos, mas há também, pelo menos de parte desses estudiosos, dúvidas a respeito disso. Em todo caso, a publicidade é idealizada por esses intermediários e não é mero reflexo da opinião pública”, argumenta Liv Sovik.
De acordo com a professora da UFRJ, a Hope optou por um discurso entre tantos outros. “Ao reiterar estereótipos que ridicularizam a mulher, a Hope escolheu um entre outros discursos possíveis. Quis provocar “um escândalo”, uma guerra nas estrelas em que muitos argumentos se cruzam no vazio. O mais seguro é que a Hope nos devolve mais uma vez aos discursos mais simplórios sobre a mulher, esvazia a possibilidade de ver arraigar-se outros, mais interessantes, e vende muitas calcinhas”afirma Liv Sovik
As críticas das feministas à Hope centraram-se preferencialmente no uso da mulher como objeto sexual. No entanto, ressalta Jacira de Melo, há outro aspecto de gênero a ser considerado: a representação do homem na campanha. “Se eu fosse homem, também protestaria diante desses anúncios. O que vemos é o retrato de um homem bobo, passível e manipulável. Não é uma representação positiva nem para homens, nem para mulheres. Há outras relações e outras referências existentes nas relações afetivas e conjugais”.
Para Angela Freitas, para uma mudança cultural é necessário ir além de ações pontuais.como a da SPM. “Não haverá uma transformação mais profunda apenas mudando a publicidade. A ação da SPM é legítima e cumpre um papel importante, pois dá um caráter oficial, forçando inclusive a imprensa a debater a questão. Mas uma verdadeira mudança cultural passa pelo investimento na Educação brasileira, pela qualificação dos livros didáticos adotados, e passa por uma abordagem mais responsável sobre o papel educativo da mídia”, argumenta Angela Freitas.
Campanhas e ações pelo mundo
A representação estereotipada da mulher na mídia não é específica do Brasil. Recentemente, dois manifestos – em Portugal e na Argentina – expressaram o repúdio em relação à maneira estereotipada e discriminante pela qual as mulheres são representadas na mídia.
Em Portugal, movimentos sociais e entidades se manifestaram condenando a tendência dos meios de comunicação do país de representar as mulheres brasileiras através de estereótipos e estigmas de ordem sexual.
Na Argentina, o Observatório da Discriminação na Rádio e na Televisão expressou recentemente preocupação com os meios de comunicação diante da discriminação das mulheres, frequentemente retratadas como subordinadas aos homens, como objetos ou como consumidoras obsessivas.
Clique nos links abaixo para assistir às peças da campanha da Hope.
http://www.youtube.com/watch?v=nk5H_BdxMz8
http://www.youtube.com/watch?v=X3CI3f3pZ2Y
http://www.youtube.com/watch?v=L-3Ygh0cHxY