CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

O que é preciso saber sobre a CE

Medicamentos relacionados ao exercício da sexualidade despertam sempre comentários e juízos de valor, deixando os consumidores — especialmente quando se trata de mulheres — suscetíveis a uma avaliação moral de seu comportamento sexual. Um exemplo é a contracepção de emergência — designada no senso comum como “pílula do dia seguinte” — , equivocadamente concebida como uma “bomba hormonal”. O recém-lançado website Pílula de Emergência, produzido a partir dos resultados da pesquisa “Uma investigação socioantropológica no âmbito das farmácias: posição de farmacêuticos e balconistas sobre a contracepção de emergência”, realizada com apoio da Faperj e do CNPq, pode ajudar a afastar e elucidar tais concepções em torno do contraceptivo. O site é um recurso didático que traz importantes informações e dados sobre a CE, buscando municiar balconistas e farmacêuticos para que esclareçam suas dúvidas e orientem melhor consumidores sobre o tema.

O atendimento à consumidora no balcão da drogaria, ainda que breve, pode vir a ser um espaço fundamental de orientação e atenção à saúde entre farmacêutico/a e clientes. O site disponibiliza várias informações e documentos que orientam os profissionais de saúde, para que as usuárias possam ser devidamente atendidas e orientadas quando buscam o método. A CE é um contraceptivo que pode ser utilizado em situações emergenciais, após a relação sexual desprotegida, devendo ser administrado no prazo de 120 horas para se evitar uma gravidez. Quanto mais cedo a contracepção de emergência for corretamente ministrada, preferencialmente nas primeiras 24 horas após a relação sexual sem proteção, maior sua eficácia na prevenção da gravidez. Muitos dos profissionais que atuam nos estabelecimentos farmacêuticos, entrevistados na pesquisa que originou o site, desconheciam que a contracepção de emergência estava incluída no rol de métodos contraceptivos ofertados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). E está. A pílula de emergência pode ser obtida gratuitamente nos serviços públicos de saúde. O Protocolo para Utilização do Levonorgestrel, lançado pelo Ministério da Saúde em 2012 no âmbito do Programa Rede Cegonha, tornou mais ágil a dispensação de pílulas de emergência para usuárias do SUS. O contraceptivo pode ser dispensado pelo(a) enfermeiro(a) sem necessidade de prescrição médica.

A ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) recomenda a apresentação da receita médica para a compra da contracepção de emergência nas farmácias/drogarias, embora tal exigência não seja acatada, exceto nas farmácias populares. As farmácias privadas representam importante alternativa à rede pública de saúde: segundo a PNDS de 2006, elas aparecem como via de acesso a métodos contraceptivos modernos para 42,5% das usuárias de 15 a 49 anos, reunindo métodos hormonais e preservativo masculino. Por estes estabelecimentos permanecerem abertos à noite e nos fins de semana e também devido aos constrangimentos e obstáculos que as mulheres enfrentam nos serviços públicos, o estudo que originou o site — feito entre 2012 e 2014 por uma equipe de pesquisa do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro — buscou conhecer os valores e sentidos associados à anticoncepção de emergência por quem a dispensa nas farmácias (Conheça os procedimentos metodológicos da pesquisa).

Os resultados chamam a atenção: embora somente 22% dos 383 farmacêuticos entrevistados a considerem abortiva, para 92%, ela é uma “bomba hormonal”. As origens históricas de tal designação, que mobiliza as categorias de “alta dosagem hormonal” e os supostos efeitos explosivos nos corpos femininos, precisam ainda ser melhor investigadas, mas não deixa de ser curioso o fato de a pílula anticoncepcional de uso diário não receber tal designação, sendo também um método hormonal. “O uso da expressão ‘bomba hormonal’ nos pareceu funcionar mais como uma categoria de acusação moral a suas usuárias, que não poderiam ter mantido relações sexuais sem antecipadamente se preocuparem com os cuidados contraceptivos. Os ‘perigos’ e ‘riscos’ do contraceptivo hormonal são acionados quando as expectativas sociais sobre o comportamento sexual feminino são subvertidas”, afirma Elaine Brandão, coordenadora da pesquisa.

A pesquisadora dá pistas de que a condenação moral tem a ver com o controle da sexualidade feminina. Em Pleasure and Danger: Exploring Female Sexuality, de 1984, a antropóloga Carole Vance argumenta que o que caracteriza a vida sexual das mulheres é uma tensão: segundo a autora, a sexualidade feminina é um terreno de exploração e prazer, mas ao mesmo tempo um terreno de constrangimento, de repressão e perigo.

Se o advento da contracepção passou a permitir uma liberdade às mulheres antes impensada, a comercialização da “pílula do dia seguinte” reforça a ideia do senso comum de que elas estão mantendo relações sexuais indiscriminadamente. O estudo empreendido pela equipe do IESC/UFRJ identificou entre os/as balconistas entrevistados a construção de juízos de valor distintos sobre as usuárias da pílula anticoncepcional de uso regular e as da contracepção de emergência. As primeiras seriam mulheres mais velhas, em relações estáveis, que buscam o anticoncepcional de uso regular durante a semana, consideradas previdentes. As segundas, mulheres mais jovens, adolescentes, em relacionamentos fortuitos, que procuram a contracepção de emergência nos finais de semana e feriados, tidas como “irresponsáveis”, que se entregam ao prazer sem se preocuparem com a contracepção. Sobressai uma reprovação moral sobre o uso da CE porque, para os/as balconistas, ele evidenciaria uma falha anterior das mulheres em disciplinar seu exercício sexual. Nessa perspectiva, o uso regular da pílula anticoncepcional estaria relacionado com valores como racionalidade e disciplina, enquanto a contracepção de emergência carrega o peso da irresponsabilidade, irracionalidade e imoralidade.

Os balconistas entrevistados apresentam sérias preocupações em relação aos efeitos da contracepção de emergência e quanto à forma como percebem que o medicamento está sendo consumido. Em suas narrativas é evidente a percepção da CE como um “medicamento perigoso” para a saúde das mulheres, pelos inúmeros danos que poderia causar. Na sua acepção, tais riscos estariam associados ao uso “descontrolado” ou “indiscriminado” do medicamento, especialmente por jovens adolescentes.

Apesar dessas representações negativas, para Elaine Brandão, os usos sociais do método podem revelar dimensões significativas de agência e gestão femininas na relação com os parceiros. “Culturalmente, a negociação com os parceiros para o uso do preservativo masculino nas relações sexuais sempre foi permeada pela hierarquia de gênero, tornando desfavorável a posição das mulheres, que nem sempre conseguem obter adesão do parceiro para o uso do preservativo. Assim, frente à resistência masculina em usar o preservativo e à ausência de outro método contraceptivo em uso regular, a contracepção de emergência oferece a chance de prevenir a gravidez, cujos encargos sempre recaem nas mulheres, sem necessariamente precisar da anuência do parceiro para fazê-lo”, afirma a pesquisadora.

As fortes concepções morais associadas à contracepção de emergência podem afastar potenciais usuárias do método e denegrir quem já o utiliza. Daí a importância do website Pílula de Emergência no sentido de informar e desconstruir mitos e equívocos. A ferramenta eletrônica mostra que os contraceptivos de emergência com levonorgestrel, disponíveis no Brasil, apresentam eficácia de prevenção da gravidez de 59% a 95%, e esclarece, entre outras coisas, que o medicamento é seguro, não é abortivo (não interrompe uma gravidez já estabelecida), não previne a AIDS ou outras DSTs e não funciona para as relações sexuais mantidas depois que for tomado. Além disso, tira dúvidas quanto a efeitos colaterais, como uma adolescente pode conseguir o medicamento, e o que o farmacêutico ou balconista pode fazer para esclarecer as dúvidas da consumidora da pílula de emergência.

Diante de um quadro de desconhecimento técnico em relação à CE, que resulta na baixa propagação de informações confiáveis sobre o contraceptivo, o site se soma a outros esforços empreendidos em prol de uma melhor divulgação do método. “Esperamos principalmente promover uma reflexão sobre a postura do profissional no atendimento ao público, pautada no cuidado, no respeito ao outro e na ética profissional”, finaliza Elaine Brandão.