Quase três décadas depois do surgimento da Aids e de múltiplas iniciativas dos movimentos sociais no combate ao preconceito e à discriminação, pesquisas apontam a persistência de uma representação demasiado negativa da soropositividade. Na investigação “Práticas sexuais e conscientização sobre Aids: uma pesquisa sobre o comportamento homossexual e bissexual”, realizada em 2006 pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), 58% dos respondentes afirmaram que não teriam relação sexual com uma pessoa declaradamente soropositiva para o HIV e 60,5% não estabeleceria uma parceria regular com esta pessoa. Um novo estudo conduzido pela instituição, intitulado “Levantamento de necessidades em HIV/AIDS entre homossexuais soropositivos no Rio de Janeiro”, cujos resultados preliminares foram apresentados no dia 19 de fevereiro deste ano, confirma os dados da pesquisa anterior, de 2006, quando foram entrevistados (através de um questionário) 400 homo e bissexuais, a qual revelou um alto índice de rejeição a um soropositivo como um potencial parceiro sexual.
O levantamento atual, financiado pelo Programa Fundação Schorer da Holanda e realizado entre agosto e dezembro de 2007, com homens homossexuais soropositivos (em sua maioria de 35 a 45 anos), enfoca os impasses e dificuldades destes na retomada da vida sexual e afetiva. O estudo, realizado através de entrevistas, grupos focais e etnografias de espaços de sociabilidade homossexual, apresenta relatos sobre a constante rejeição de parceiros ao revelarem a soropositividade, sua tendência ao isolamento, depressão e até desinteresse sexual.
“Hoje em dia vemos que o universo homossexual está adotando a ‘evitação’ como estratégia de prevenção. Há um preconceito gerando a rejeição, inclusive dentro da comunidade homossexaul, isto é, observamos uma estratégia de rejeição e não de consenso, como se as pessoas estivessem achando que desta forma vão se proteger melhor, demonstrando uma falta de confiança no preservativo. É necessário resgatar a estratégia calcada na aceitação do outro e na confiança na camisinha”, avaliou Veriano Terto Jr, que coordenou a pesquisa ao lado do cineasta Vagner de Almeida, da psicóloga Cristina Pimenta e do médico Juan Carlos Raxach. Também fizeram parte da equipe os pesquisadores João Francisco Lemos e Igor Torres.
O levantamento procurou enfocar as dificuldades enfrentadas pelos homossexuais soropositivos na retomada da vida sexual, após o diagnóstico. “Ele vai retomar a vida sexual e afetiva mas com percalços. Os dados revelam tanto a prevalência de estigmas negativos ligados à soropositividade, quanto o desconhecimento a respeito das possibilidades de prevenção e cuidado em relações sorodiscordantes”, analisou o sociólogo João Francisco Lemos, que apresentou os dados na última terça-feira.
Segundo o pesquisador, o estudo mostra que as pessoas ainda desconhecem as possibilidades da relação sorodiscordante. “Elas não percebem o sujeito soropositivo como um possível parceiro sexual. O estigma associado à soropositividade apresenta-se, deste modo, como um obstáculo em muitas dimensões na vida do grupo-alvo, inclusive na esfera afetiva”, disse.
A pesquisa destaca pequenos dilemas aliados aos problemas de saúde. Um desses impasses enfrentados na retomada da vida sexual é a preocupação constante com a reinfecção e com a infecção de parceiros, o que leva o sujeito ao dilema do contar ou não contar. “Há um impasse quando o relacionamento está caminhando para uma configuração mais linear. Os entrevistados disseram sentir-se na obrigação de contar sobre sua situação sorológica. O problema é que revelar a soropositividade para os parceiros pode implicar rejeição”, afirmou o sociólogo.
Além do risco da rejeição, outros temores pioram ainda mais o drama de ter que lidar com o momento da revelação. Vários países, entre eles Inglaterra e Suíça, criminalizam a transmissão por HIV. “A Aids está trazendo de volta o uso da lei criminal no campo da saúde pública. No Brasil, pessoas soropositivas já foram levadas ao tribunal por tentativa de assassinato”, relatou Veriano Terto.
Outro dilema enfrentado pelos soropositivos, confirma o estudo, é o medo da desvalorização do corpo, uma vez que a lipodistrofia – alterações corporais causadas por alguns anti-retrovirais – ainda é uma questão. “As pessoas sentem que estão fugindo ao padrão de beleza. A ‘cara da Aids’, preocupação constante até os anos 90, é um estigma que parece estar de volta. Mas se isto se coloca como um problema, temos que lutar por medicamentos menos tóxicos e que não causem tais alterações, mesmo que estes sejam mais caros. Este é um dos novos desafios”, salientou Veriano.