Uma temática largamente discutida na IX Conferência IASSCS (Buenos Aires) refletiu, na verdade, sobre uma articulação histórica e permanente: a sexualidade e as ciências biomédicas, cuja imbricação gera efeitos de diversas ordens, não apenas em termos teóricos, mas também em termos políticos. Na sessão “Patologização da sexualidade”, a antropóloga Fabíola Rohden (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) apresentou algumas considerações sobre tal imbricação, afirmando que, nos últimos anos, tem havido uma expansão de discursos e intervenções médicas no tocante à sexualidade.
Durante o século XIX, o conhecimento em sexualidade atrelou-se, de diversos modos, à perspectiva biológica, como se a experiência do desejo e dos comportamentos respondesse a motivações meramente orgânicas. Tal padrão de conhecimento mantém-se vigente ainda que as Ciências Sociais e Humanas tentem ampliar o foco sobre o campo.
Para Fabíola Rohden, há uma naturalização da sexualidade nos dias atuais. Citando as abordagens mais comuns, ela lembrou sobre os discursos produzidos pela sexologia contemporânea a respeito das disfunções sexuais. “É possível notar uma ênfase muito forte no desempenho pessoal voltado para a relação sexual. É uma visão reducionista da função sexual. Os discursos médicos geralmente ignoram uma visão holística da sexualidade, priorizando aspectos meramente biológicos e fisiológicos”, observou Rohden.
Tamanha ênfase está baseada na centralidade dos aspectos orgânicos, que cada vez mais ganham terreno nas formulações e reflexões sobre a sexualidade masculina e feminina. “A visão biomédica é hegemônica. Nesse sentido, perde-se a dimensão social da sexualidade, suas representações culturais. Ficamos presos a uma medicina sexual que não prioriza a coletividade”, destacou Fabíola Rohden.
Um dos efeitos de tal visão é que, com o afastamento de uma abordagem mais integral e social da sexualidade, a temática da diversidade e dos direitos sexuais se esvazia. “Os discursos biomédicos aparecem atualmente centrados numa lógica heteronormativa. O núcleo privilegiado está nos casais hetero. As campanhas e mesmo determinadas políticas trabalham com a representação do casal estável, do homem definido em termos de uma masculinidade hegemônica, na qual ele pratica apenas o sexo penetrativo”, afirmou Rohden.
Nesse contexto, a sexualidade tem se deslocado para o espaço da individualidade. Drogas e tecnologias produzidas pela indústria farmacêutica privilegiam o modelo biológico da sexualidade, o que, para Fabíola Rohden significa uma “administração bioquímica da sexualidade”.
No entanto, a sociedade apresenta demandas e particularidades que não necessariamente estão contempladas neste modelo. A epidemia de HIV/Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis, a contracepção e a homossexualidade parecem não existir. “É um paradoxo que, em meio à explosão de discursos baseados numa lógica biomédica, questões como doenças transmissíveis pelo ato sexual sejam ignoradas. O desempenho e a satisfação parecem imperar, como se a prevenção e aspectos psíquicos não importassem. A sexualidade que a medicina sexual atual propõe está fortemente ancorada em marcadores sociais hegemônicos, como noções tradicionais de gênero. Além disso, temas historicamente sensíveis em termos morais são expurgados. Assim, aborto, homossexualidade, práticas e desejos não hegemônicos ficam de fora. É um processo de reiteração do modelo heteronormativo”, argumentou Fabíola Rohden.
Para a antropóloga, isso representa uma limitação aos avanços que têm sido conquistados no campo dos direitos sexuais e reprodutivos. “Ficamos presos ao ato sexual em si. Por isso, acredito que é importante discutir tal modelo para se politizar uma questão que tem sido esvaziada. Precisamos reiterar o marco de resistência que a academia representa, de modo a problematizar a sexologia que tem predominado. Temos visto que a atividade sexual está consolidada como marcador de qualidade de vida, como índice de saúde. É preciso pensar em que bases tal processo se configura e avançar sobre modelos estritamente organicistas.”, afirmou Fabíola Rohden, para quem existe uma separação entre o ativismo político e a academia. “Há um afastamento dos movimentos sociais em relação à medicina sexual. A reflexão traria ganhos na medida em que colocaria em pauta, no espaço público, visões distintas ao modelo vigente de medicina sexual. No entanto, o cenário mostra uma falta de diálogo: de um lado, movimentos sociais e políticos; do outro, indivíduos com problemas de ordem sexual entregues a um modelo que é questionável”, completou.
O trabalho apresentado pela pesquisadora Livi Faro (IMS/UERJ) exemplificou a dinâmica exposta por Rohden. Em estudo que analisou artigos publicados em periódicos biomédicos que trazem resultados de ensaios clínicos com o Intrinsa, medicamento à base de testosterona voltado para o tratamento do ‘transtorno do desejo hipoativo’ em mulheres, Livi Faro demonstrou como a literatura biomédica é utilizada pela indústria farmacêutica para ampliar o mercado dos medicamentos voltados para o desempenho sexual. A produção do remédio, da Procter & Gamble, em meados dos anos 2000, baseou-se na ideia de que há uma associação entre níveis de testosterona e desejo sexual.
Nos primeiros ensaios clínicos, o fármaco foi concebido para o tratamento de uma determinada condição – ‘baixa libido’ – de uma população bem específica: mulheres com ‘disfunção de desejo sexual hipoativo’, com menopausa cirúrgica (devido à retirada dos ovários e útero) e que faziam reposição hormonal com estrógenos. Os artigos eram escritos por médicos denominados ‘líderes de opinião’ ou ‘experts’, que trabalham em articulação com a empresa farmacêutica no desenvolvimento da droga, e por empregados formais da Procter & Gamble. A justificativa para a necessidade da intervenção ocorria através do argumento de que parte da produção da testosterona ocorre nos ovários, sendo a queda abruta deste hormônio uma consequência da cirurgia que poderia estar relacionada com o desenvolvimento do ‘transtorno do desejo hipoactivo’. Seguindo esta lógica de raciocínio, a incorporação do Intrinsa (testostorona) ao ‘pacote’ da reposição hormonal com estrógenos surgia como solução para a disfunção sexual.
Mas os ensaios clínicos publicados posteriormente apresentaram estratégias variadas para ampliar o número de candidatas ao tratamento com o Intrinsa. Um dos eixos de expansão ocorreu a partir da modificação do ‘status de menopausa’ associado ao medicamento. Paulatinamente, os ensaios clínicos passam a incluir mulheres não apenas com menopausa cirúrgica, mas também mulheres na chamada ‘menopausa natural’ e, posteriormente, na ‘pré-menopausa’. Ao operar tais deslocamentos, a justificativa para o uso do medicamento nesta população precisou mudar, uma vez que a menopausa natural ou a pré-menopausa não implicam em reduções nos níveis de testosterona. A referência deixou de ser o estado anterior à menopausa (cirúrgica) e se deslocou para a juventude. “A concentração total de testosterona sérica observada entre mulheres depois dos 50 anos é aproximadamente metade da de mulheres entre 20 e 30 anos” (SHIFREN et al., 2006:771).
O corpo jovem passou a ser padrão de comparação a partir do qual os níveis de testosterona são avaliados, impulsionando o processo de medicalização da velhice. Outra via de expansão do mercado consumidor consistiu em um trabalho sobre sua associação com o estrógeno. Se os primeiros ensaios clínicos foram realizados com mulheres que tomavam estrógeno, sendo esta uma condição para o uso do Intrinsa, publicações posteriores testaram o medicamento sem a associação com o estrógeno. Isto teve como efeito ampliar significativamente o universo de mulheres que poderiam utilizar o Intrinsa, além de retirar o fármaco do campo de controvérsias relacionado à reposição hormonal com estrógeno. Finalmente, a pesquisadora demonstrou que há artigos que sugerem a possibilidade de um novo alvo para o medicamento: o ‘bem estar diminuído’. Assim, o alvo do medicamento, que originalmente era a‘baixa libido’, ampliar-se-ia para incluir mulheres em envelhecimento com diminuição do ‘bem-estar’.
Através da análise dos artigos, Livi Faro procurou destacar a ligação entre pesquisadores e indústria farmacêutica que aponta para a comodificação da pesquisa médica, demonstrando formas pelas quais o sexo é colocado no mercado através da produção de conhecimento. Sem defender o mito do pesquisador ‘neutro’ e desinteressado, lembrando que tal missão já foi denunciada como impossível tanto pelo feminismo quanto pelos estudos sociais da ciência, enfatizou a necessidade de se pensar sobre as consequências de um processo de construção de conhecimento que se opera através de relações embebidas no chamado conflito de interesse.
Referência bibliográfica
SHIFREN, J. et al. Testosterone patch for the treatment of hypoactive sexual desire disorder in naturally menopausal women: results from the INTIMATE NM1 Study. Menopause, 13(5): 770-9, 2006 Sep-Oct