“Conseguimos algo que todos achavam que seria impossível”, comemorou Edson Torres, após o juiz da Vara da Infância e da Juventude de Ribeirão Preto, Paulo Cesar Gentile, conceder em janeiro a guarda definitiva de quatro irmãos a ele e a seu companheiro, João Amâncio. O casal está junto há 17 anos e há três tinha a guarda provisória das crianças, que viviam em um abrigo da cidade paulista desde 2003, quando foram abandonadas pelos pais biológicos.
Histórias como a dos cabeleireiros Edson e João, que apenas recentemente começaram a se tornar realidade no Brasil, costumam chamar a atenção e causar reações conservadoras. Apresentado em dezembro de 2008 na Câmara dos Deputados, o <
De acordo com o documento, a adoção poderá ser formalizada “apenas por casal que tenha comprovado o casamento oficial e a estabilidade da família, sendo vedada a adoção por homossexuais”. Em sua justificativa, o deputado argumenta ser necessário proteger a criança adotada da possível exposição a situações que possam interferir na sua formação, acrescentando que “toda criança deve ter direito a um lar constituído de forma regular, de acordo com os padrões da natureza”.
Autora da tese de doutorado “Nós Também Somos Família: estudo sobre a parentalidade homossexual, travesti e transexual”, a antropóloga Elizabeth Zambrano (UFRGS) critica o uso de argumentos sem suporte científico para dar embasamento ao projeto. Segundo Elizabeth, os resultados de um grande número de pesquisas, nas áreas da Psicologia e Ciências Sociais, realizadas em diferentes países desde a década de 1970, mostram que crianças vivendo em famílias homoparentais apresentam um desenvolvimento equivalente ao daquelas que vivem em famílias heteroparentais. “As diferenças que podem vir a ocorrer são dependentes das capacidades parentais dos cuidadores e não das suas orientações sexuais”, afirma.
A antropóloga também chama atenção para o fato de que, caso seja aprovado, o PL 4508/2008 impedirá que crianças que se encontram em abrigos institucionais sejam acolhidas por lares que efetivamente as desejam. “O projeto deixa sem a proteção do Estado crianças que já vivem em famílias homoparentais e impede que outras cresçam com amor e cuidados que, dificilmente, as casas de abrigo institucional podem oferecer”, lamenta.
De fato, este não é um dado que deva ser desprezado: existem no país hoje cerca de 80 mil crianças em instituições como estas. Mas, segundo a desembargadora aposentada Maria Berenice Dias, advogada especializada em Direito Homoafetivo, o interesse desses casais geralmente é por crianças pequenas, ficando à deriva aquelas que já não se encaixam neste perfil.
“A procura desses casais, que freqüentemente não conseguem ter filhos, é por crianças que sejam a sua imagem e semelhança. Este é um assunto cercado de muitas frustrações e mascaramento. Vários sequer contam sobre a adoção, pois não querem que os outros saibam que não cumpriram com esta ‘obrigação social’, que é ter filhos”, observa.
Por outro lado, casais homoafetivos impõem menos restrições quando dão entrada em um processo de adoção. Nesse sentido, Maria Berenice revela que os cabeleireiros Edson e João, que adotaram quatro irmãos com idades entre 12 e 06 anos, não são uma exceção.
“No caso dos homossexuais, como está muito flagrante que o filho não é deles, eles não têm esse tipo de preocupação. Eles são tão alvo de preconceito que não têm preconceitos na hora de adotar”, explica.
Assim, muitas crianças que não se enquadram no que seria o “perfil” privilegiado por casais heterossexuais – seja por questões de cor/raça, idade ou pelo fato de terem irmãos (já que a preferência, na Justiça, é pela não separação das crianças, o que muitas vezes gera desinteresse por parte dos adotantes) – possivelmente não teriam outra chance de ter um lar.
A questão, na opinião de Maria Berenice, é que os legisladores estão preocupados principalmente em agradar o eleitorado, que é majoritariamente heterossexual. O conseqüente descaso em relação aos interesses das minorias explicaria a elaboração de um projeto como o PL 4508/2008 que, na análise da desembargadora, é “de uma inconstitucionalidade flagrante”.
“Há um princípio que veda o retrocesso social: a lei não pode retroceder. E esse projeto vai contra esse princípio. O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) admite a adoção por pessoas sozinhas, sem restrição à orientação sexual”, afirma. “Além disso, a família não é constituída exclusivamente pelo casamento. Até 1967 era assim, mas a Constituição atual não diz isso. O conceito de família abrange tanto o casamento, como a união estável e a família monoparental, também sem qualquer restrição quanto à orientação afetivo-sexual de quem a compõe”.
O advogado Enézio de Deus, autor do livro “A Possibilidade Jurídica de Adoção Por Casais Homossexuais”, também não manifesta dúvidas em relação à inconstitucionalidade do projeto. No artigo Adoção Homoafetiva e Inconstitucionalidade, publicado no site do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), o advogado argumenta que família “não se trata de um dado biológico/natural, mas de uma realidade afetiva (teia intersubjetiva) cultural e plural – com variadas formas de composição, dentro das quais não existe padrão de ‘regularidade’ ou de ‘normalidade’”. Enézio argumenta ainda que a orientação afetivo-sexual das pessoas é um direito fundamental, personalíssimo de todo indivíduo, e que não deve servir como critério para vedar o exercício de um outro direito, qual seja, o de adotar.
Na opinião de Maria Berenice Dias, o PL 4508/2008 é, na verdade, uma “artimanha” para tentar arquivar o PL 2285/2007, ao qual foi apensado. Com efeito, no início de março foi solicitada a desapensação do projeto que veda a adoção por homossexuais, mas o pedido foi negado esta semana pela Mesa da Câmara, sob a alegação de que ambas proposições tratam de assuntos conexos.
O PL 2285/2007, apresentado pelo deputado Sérgio Barradas Carneiro (PT-BA), cria o <
“Vimos que seria mais adequada a confecção de um estatuto autônomo, desmembrado do Código Civil. Não é mais possível tratar questões visceralmente pessoais da vida familiar valendo-se das mesmas normas que regulam as questões meramente patrimoniais, como propriedades, contratos e demais obrigações”, explica o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do instituto. “Ocorre que várias manobras legislativas tentam distorcer o Estatuto das Famílias”.
Crítico ao projeto apresentado pelo deputado alagoano, Rodrigo lamenta que, na maioria das vezes, a moral prevaleça sobre a ética no momento de se aprovar ou não determinada lei:
“Se pensassem simplesmente pelo viés da ética, projetos considerados polêmicos envolvendo questões de família e sexualidade seriam aprovados. Entretanto, esses parlamentares trazem consigo, em sua história pessoal, em sua subjetividade, a sua moral particular”, observa, acrescentando que a aprovação do PL 4508/2008 representaria um retrocesso em relação aos avanços já conquistados no Judiciário.
Com efeito, a jurisprudência brasileira já reconhece a união homoafetiva como entidade familiar. Em 2008, informa Rodrigo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu uma decisão paradigmática ao recomendar que ações que envolvem o direito homoafetivo sejam julgadas em varas familiares e não em varas cíveis.
“Até então, a união homoafetiva era vista como uma sociedade de fato, ou seja, um ‘contrato entre sócios’. Com essa decisão de vanguarda, há a possibilidade de o Judiciário admitir a união entre pessoas do mesmo sexo, atribuindo todos os efeitos decorrentes dessa relação”, esclarece.
No que diz respeito especificamente à adoção por casais homoafetivos, alguns tribunais estaduais, acompanhando o avanço das demandas sociais, também chegaram a consenso sobre o tema. É o caso do Rio Grande do Sul, um dos estados mais progressistas em relação ao tema. Lá, os magistrados entendem que, sempre que forem cumpridas as exigências sócio-econômicas e psicológicas comuns aos heterossexuais, a adoção por casais homoafetivos será concedida.
Tal consenso contribuiu para que os casais passassem a se candidatar à adoção de forma conjunta. Antes, para tentar escapar do preconceito, muitas pessoas se submetiam ao processo sozinhas. Esta solução, no entanto, acabava trazendo danos à criança:
“Só um se submetia às avaliações e tinha obrigações em relação à criança, quando na realidade ela iria morar com os dois e criaria vínculo afetivo com os dois”, afirma Maria Berenice Dias. “No caso de morte do adotante, a criança tornava-se órfã e no caso de separação do casal, não havia obrigação do pagamento de pensão”.
Segundo a desembargadora, a jurisprudência deferindo a adoção por homossexuais no Rio Grande do Sul data de 2006 e casos como estes são tratados diariamente nas Varas de Infância e Juventude. Apesar de acreditar que exista um número significativo de adoções homoparentais no estado, Berenice afirma ser impossível quantificá-las, pois nas situações em que a vara habilita a adoção pelo casal e não são impetrados recursos, o processo não chega ao Tribunal de Justiça.
Frente à reação conservadora do deputado, instituições e pessoas ligadas às Universidades e aos movimentos sociais de defesa dos direitos humanos formularam um abaixo-assinado em repúdio ao Projeto de Lei nº 4508/2008.