Existem trabalhos acadêmicos, como o livro “O que é Homossexualidade”, de Peter Fry e Edward MacRae, cujo impacto na sociedade e no movimento social produz efeitos tão importantes quanto as ações políticas e conquistas do próprio movimento, assinalou o antropólogo Sergio Carrara (CLAM/IMS/UERJ) ao comentar a primeira mesa do Fórum “Sexualidades, movimentos sociais e academia: pesquisas e intervenções no Brasil”, evento realizado pelo CLAM no dia 10 de junho, por ocasião do XXVIII Congresso Internacional da Associação de Estudos Latino-Americanos (LASA), que aconteceu no Rio de Janeiro, de 11 a 14 de junho. Participante do evento, Peter Fry (IFCS/UFRJ) fez uma reflexão biográfica durante sua apresentação na primeira mesa – Histórias e gerações na pesquisa e ativismo LGBT.
“A relação do Estado com a sociedade mudou radicalmente nos últimos 30 anos. Esse pequeno movimento – menor do que o movimento feminista – é o único que consegue colocar nas ruas mais de 3 milhões de pessoas todos os anos. Não se trata de um movimento de gueto, mas inclusivo, com capacidade de incorporar, de fazer alianças e causar simpatias. Graças a isso, estamos vivendo uma situação muito melhor”, disse ele.
O antropólogo destacou a diferença entre movimento e movimentação. “O que vemos em dias de Paradas do Orgulho LGBT, com metrôs e ônibus lotados, não é o movimento, mas sim uma movimentação. Mas o movimento consegue se aliar a essa movimentação, e é esta que vai dar a visibilidade ao movimento. Há uma solidariedade da sociedade para com o movimento”, analisou.
Seguindo uma mesma linha biográfica, o historiador James Green (Brown University) lembrou quando, em setembro de 1978, entrou para o Grupo SOMOS, de São Paulo, primeiro grupo de defesa dos direitos homossexuais do país, criado em maio daquele ano. “Ao sair da ditadura militar com aqueles ativistas, era difícil imaginar um movimento LGBT tão amplo como o que vemos hoje”, afirmou.
Green ressaltou a histórica e recorrente aliança do movimento com a esquerda brasileira – e enfatizou em particular a aliança feita com o movimento sindical dos metalúrgicos do ABC paulista da década de 1970, do qual o atual presidente do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva, então metalúrgico, fez parte.
“O imaginário da época era de que não existia operário homossexual. Quem poderia imaginar que algum dia haveria um trabalho contra a homofobia na classe operária e que Lula participaria da abertura da Conferência LGBT de 2008? Foram as transformações no Brasil dos anos 70, 80 e 90 que abriram as possibilidades desse grande movimento que hoje existe no Brasil”, finalizou o historiador.
Richard Parker (Columbia University) fez uma reflexão sobre a interface do movimento LGBT e a Aids, a partir do começo da resposta brasileira frente à doença. Ele dividiu o movimento em quatro momentos históricos, com o primeiro terminando em 1992, com a morte de Herbert Daniel, vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) no início dos anos 90 durante a gestão de Herbert de Souza, o Betinho, fundador da instituição que também morreria de Aids em 1997.
“De 1985 a 1992 tivemos uma desarticulação do movimento, muito por conta da maneira que a Aids atingiu lideranças importantes, como Néstor Perlongher e Herbert Daniel. Foi o que chamo de ‘período heróico’, onde há o conflito entre o movimento ativista e o Estado. A comunidade ativista criticou e transformou o primeiro programa de Aids criado nas Américas, em 1984, em São Paulo”, lembrou.
Segundo ele, uma segunda etapa iria dos anos de 1993 a 1997, período em que haveria a chegada do tratamento antirretroviral e a entrada de muitos ativistas nos espaços governamentais, onde podiam, mesmo que ainda timidamente, influenciar nas políticas públicas.
“Em 1993 há um novo tipo de dinâmica que cruza com a questão da epidemia da Aids no país: o uso do dinheiro público e de recursos governamentais em ações de grupos ativistas”, disse.
Para ele, um terceiro momento se iniciaria entre os anos 96/97, trazendo mudanças que seriam determinantes dali para frente. “Essas mudanças se devem à introdução de novos medicamentos e da transformação da Aids em uma doença crônica e tratável. A Aids tornou-se uma questão administrável”, afirmou.
Com a cronificação da doença veio, segundo o antropólogo, a incorporação da perspectiva de direitos humanos, quarto momento. “Ao adotarmos esse paradigma, criaram-se setores para cuidar de certas questões, e houve o surgimento, a partir daí, da perspectiva dos direitos sexuais, incorporada nos debates nacionais pelos movimentos feminista e homossexual”, finalizou.
A cientista social Regina Facchini (Pagu/Unicamp) lembrou de seus tempos na Escola de Sociologia e Política da Unicamp, onde, segundo ela, era improvável que alguém falasse de homossexualidade nos idos dos anos 90. “Tive meu primeiro contato com o movimento em minha pesquisa monográfica de graduação, em 1995. Entre 95 e 97, já no programa de mestrado, não havia quase nada de produção literária sobre o movimento homossexual”, disse ela.
Foi, segundo ela, seu trabalho de campo, desenvolvido entre 97 e 2000, e o contato com pesquisadoras como Regina Maria Barbosa, Adriana Piscitelli e Maria Filomena Gregori, que a levaram ao encontro de diversas instituições, como a o Pagu, o Nepo (Núcleo de Estudos de População – Unicamp) e a Abia. “O encontro com essas instituições foi fundamental para saber que a produção de conhecimento é importante para a satisfação das necessidades estratégicas de gestores e ativistas”, concluiu a autora do livro “Sopa de Letrinhas” (CLAM/Garamond), fruto de sua dissertação de mestrado.
Encontros entre militância e academia
Em sua reflexão na mesa Encontros entre militância e academia, a pesquisadora Sonia Correa (Abia/SPW) optou por um caminho chamado por ela de memorialista, iniciada a partir de sua participação nos coletivos feministas. “Alimentávamos uma enorme rejeição ou mesmo repulsa ao Estado. Subordinação, conscientização, revolução eram parte de nosso vocabulário. Éramos pequenos coletivos, grupos de reflexão, de estudo e de conscientização. Tínhamos muitos nomes no final dos anos 70”, relembrou.
Segundo ela, como as mulheres do então emergente movimento feminista não tinham voz nos espaços políticos de esquerda, estas se reuniam em espaços alternativos, como os encontros da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), os Encontros de Sociologia da Unicamp, e a reunião da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep) de 1984, a qual teve uma mesa sobre sexualidade. A pesquisadora citou ainda a importância do GT de Gênero da Associação Brasileira de Saúde Coletivo (Abrasco), da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), da Fundação Carlos Chagas, do NIGS – Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades da Universidade Federal de Santa Catarina, responsável pelo Encontro Feminista “Fazendo Gênero”, e, mais recente, a Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH) e o CLAM.
“As feministas antecederam em alguns anos o movimento LGBT e o da Aids. Porém, esse relato vitorioso não deve obscurecer as tensões ainda presentes, como a questão dos recursos financeiros e o fato de haver ainda uma matriz marxista refratária. O tema do essencialismo nos acompanha desde os anos 70. A Aids foi a única a deslocar o tema do essencialismo. Afinal, como diz Veriano Terto, presidente da Abia, ninguém nasce soropositivo. O essencialismo não está somente presente nas disciplinas ditas duras – como a biologia, a epidemiologia etc . Hoje ele está presente nas normas religiosas e no Estado”, finalizou.
O ativista Beto de Jesus (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Trasngêneros) iniciou sua apresentação com um questionamento: Por que se produzem conhecimentos e quais deles são reconhecidos? Como aproveitar o que é produzido?
“O movimento LGBT no Brasil fez opção identitária. Como se pensar, por exemplo, uma pessoa trans dentro de uma estrutura? Há aí um nível de especificidade. Este caminho tem sido viável para aquilo que alcançamos até agora. A política identitária é uma cilada em muitas vezes, mas em outras tem se mostrado uma estratégia efetiva”, disse Beto.
Segundo ele, nunca houve antes um momento tão intenso em número de pesquisas sobre as questões LGBT na universidade. “Porém, ainda temos que desconstruir a desconfiança do movimento com a universidade”, afirmou.
O antropólogo Julio Simões (USP) falou sobre a produção de uma visão mais geral do que é o movimento LGBT e de como a sexualidade e a homossexualidade são tratadas pelas Ciências Sociais, buscando responder aos questionamentos levantados por Beto de Jesus. “Nos anos 70, o trabalho de Edward MacRae gerou polêmica com o pessoal do Grupo SOMOS, especialmente com seu presidente, João Silvério Trevisam. Mas nem MacRae era só pesquisador e nem Trevisam era só militante. Os dois reuniam as duas habilidades. Ambos contribuíram para que o SOMOS assumisse um lugar de precedência que ocupa na história do movimento de defesa dos direitos de pessoas LGBT”, lembrou.
Segundo o pesquisador, o uso da expressão “orientação sexual” ilustra a relação universidade – movimento social. “O movimento fez esta escolha buscando a cooperação acadêmica. Deram pareceres sobre esta questão, além de MacRae, os pesquisadores Peter Fry, Marisa Correa, Gilberto Velho e Luiz Fernando Dias Duarte. Formou-se aí uma colaboração interessante”, disse Simões.
A questão da violência e da vitimização também ilustram, na análise do pesquisador, a cooperação universidade-militância. “A visão do movimento era de que a vítima sexual era uma vítima indefesa diante de seu algoz. Por sua vez, as pesquisas acadêmicas relativas ao tema chamam a atenção para as vulnerabilidades especiais”, afirmou.
O antropólogo citou ainda outra contribuição importante: o livro “O que é homossexualidade”, de Fry e MacRae. “A obra afasta a visão patologizada da homossexualidade e contribuiu para uma energização da produção científica em torno do tema”, finalizou.
Na mesa da tarde, diversos pesquisadores e pesquisadoras apresentaram seus projetos de intervenção e de pesquisa. Participaram Yone Lindgren (Movimento D’Elas), Beto de Jesus (ABGLT), Veriano Terto Jr. (ABIA), Eliane Berutti (UERJ-ABEH), Fabiola Rohden (CLAM/IMS/UERJ), Gustavo Venturi (Fundação Perseu Abramo), Julio Simões (USP), Laura Moutinho (USP) e Regina Facchini (Unicamp).