A prostituição, no Brasil, é uma atividade matizada, que envolve inúmeros significados e características. Esta foi a opinião dos participantes no debate “Prostituição: os corpos como mercadoria ou a sexualidade como atividade econômica?”, uma das mesas que compuseram o Seminário “Corpos, Sexualidades e Feminilidades”, ocorrido no final de setembro na UERJ.
A antropóloga Adriana Piscitelli (Pagu/Unicamp) destacou que, atualmente no Brasil, as fronteiras conceituais entre trabalho e exploração sexuais se confundem. “O limite entre as duas coisas não parece claro. O país vive uma situação singular. No Código Penal de 1940, o termo exploração sexual não estava presente. Em 2009, com as alterações estabelecidas pela lei 12.015, surge como crime o ato mediar ou induzir alguém a satisfazer a lascívia de terceiros. Parece um sinônimo de prostituição, como se a exploração, que envolve coerção e ameaça, englobasse o ato de se prostituir”, observou Adriana Piscitelli.
Algumas mudanças estão na pauta política nacional. A proposta de reforma do Código Penal, que tramita no Senado, dispõe sobre crimes contra a dignidade sexual, indicando novos caminhos para a questão da prostituição. O texto propõe a exclusão dos artigos do Código atual que preveem punição para quem fizer mediação para servir à lascívia de alguém, atuar como rufião (tirando proveito da prostituição alheia) e para quem possuir casas de prostituição.
Pelo texto, as casas de prostituição – chamadas de prostíbulos – serão legalizadas, contrariamente à situação atual, na qual ter um estabelecimento deste tipo é punível com pena de reclusão de 2 a 5 anos, mais pagamento de multa. Dessa forma, a prostituição em si, que não é expressamente criminalizada, nem regulamentada, ganhará algum respaldo institucional, pois permitirá que trabalhadores e patrões estabeleçam vínculo empregatício. Para se encaixar nesta previsão, os trabalhadores deverão estar de forma espontânea no prostíbulo e ter 18 anos ou mais. A prostituição compulsória, forçada pelo dono do estabelecimento, poderá resultar em penas de 5 a 9 anos.
Adriana Piscitelli explicou que há alguns modelos de abordagem institucional e social em relação à prostituição. “Há o modelo regulamentarista, no qual o Estado regulamenta a profissão, mas não oferece direitos trabalhistas. Para este modelo, apesar do reconhecimento da profissão, os trabalhadores representam uma ameaça à saúde pública e à ordem. No modelo trabalhista, há leis civis e laborais que protegem os trabalhadores. A prostituição deixa de ser uma questão penal. Há o modelo de proibição, que associa prostituição com delinquência, e que, portanto, deve ser policiada e punida. E há o modelo abolicionista, ligado a alguns setores do movimento feminista que vinculam a prostituição ao tipo de sociedade sexista em que vivemos. A prostituta, nesse sentido, é uma vítima”, afirmou Adriana Piscitelli,
Na leitura abolicionista, exploração e prostituição são domínios próximos, pois a troca do prazer por dinheiro já representa uma violência sexual. Prostituir-se, nesse sentido, viola a dignidade das mulheres, indo contra um dos princípios basilares dos direitos humanos.
As divergências semânticas e ideológicas foram ponderadas pela cientista social Carmen Lucia Paz. Prostituta há 30 anos, ela é uma das fundadoras do Núcleo de Estudos da Prostituição (NEP), de Porto Alegre (Rio Grande do Sul). De acordo com ela, a entrada na prostituição se deu por necessidade. “Estou na profissão até os dias de hoje porque quero. É uma escolha. Discordo da visão de que a prostituição é uma forma de exploração ou violência. Desde que seja praticada de forma autônoma, é uma opção legítima. Vivemos em uma sociedade em que o sexo é um tema delicado. Tudo relacionado a ele ganha significados muitas vezes estigmatizantes. Quando eu digo que continuo me prostituindo mesmo depois de ter me formado e ter cursado pós-graduação, as pessoas me perguntam o porquê de tal escolha Como se a prostituição fosse um crime, uma opção equivocada. Precisamos pensar a prostituição também como direito, dentro do âmbito dos direitos humanos”, afirmou Carmen Lucia Paz, chamando atenção para um dado que evidencia o grau de estigmatização do trabalho. “As ações que governos oferecem para o nosso segmento estão geralmente atreladas a programas de Aids. Isso diz muito sobre a concepção geral que se tem da prostituição”, completou
Carmen Lucia Paz argumentou que é preciso politizar a questão da prostituição. “O movimento de prostitutas é muito incipiente. Nesse aspecto, o movimento LGBT está muito à frente. Ocorre que as próprias prostitutas têm vergonha de se expor, diante do contexto moral em que vivemos. Não havendo uma mobilização incisiva, como pressionaremos o poder público?”, questionou, acrescentando que a inclusão em 2002 da prostituição na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO / Ministério do Trabalho) é a única política pública existente em nível nacional para o segmento.
Prostituição em contexto transnacional
A antropóloga Ana Paula da Silva (Universidade Federal de Viçosa) abordou a questão da prostituição sob a perspectiva do turismo sexual. De acordo com ela, a temática da prostituição envolve uma bagagem histórica que desqualifica a ocupação. “A prostituição já foi entendida, em finais do século XIX, como uma patologia, na esteira dos discursos científicos e biomédicos que se proliferavam então. Além disso, há a questão do gênero, isto é, o trabalho sexual feminino é socialmente mal visto e condenado, diferentemente do que ocorre com o trabalho sexual masculino”, observou Ana Paula da Silva.
Nos últimos anos, tem se intensificado o combate ao chamado “turismo sexual”. Notícias na imprensa e campanhas têm proliferado. O enfoque tem se destacado por alguns códigos específicos. “A criminalização da prática passa pela criminalização de relacionamentos afetivos transnacionais, especialmente aqueles que envolvem homens estrangeiros com mulheres pobres e negras. Estamos em um terreno onde se articulam raça, gênero e classe social. As formas de combate ao chamado “turismo sexual” se constroem com tais estereótipos”, afirmou Ana Paula da Silva.
De acordo com Ana Paula da Silva, a abordagem da questão tem como finalidade regular moralmente as relações afetivo-sexuais, sobretudo das mulheres não-brancas de classes populares, vistas como responsáveis pela imoralidade. “É uma abordagem perigosa, pois retira-se dessas mulheres seus direitos. O discurso se articula em um pânico moral carregado de sentido pejorativo. Tais mulheres são estigmatizadas e sexualizadas, em um movimento de tentativa de controle de seus corpos e desejos. Por que o turismo sexual não se aplica também a relacionamentos que envolvem mulheres das classes mais abastadas?”, argumenta Ana Paula da Silva. “Com esse tipo de abordagem, as políticas de combate à exploração não dão conta das relações de exploração que de fato ocorrem fora do alcance dos discursos moralizantes. Isso represente um perigo, pois nesses processos o valor dos direitos se perde”, concluiu Ana Paula da Silva.
Além da reforma do Código Penal, o projeto de lei 4211/2012, do deputado federal Jean Wyllys, procura regulamentar a atividade de profissionais do sexo. De acordo com o texto, haverá diferenciação entre prostituição e exploração sexual. O segundo caso seria caracterizado pelo não pagamento do serviço contratado, pelo ato de forçar alguém a se prostituir mediante grave ameaça ou violência e pela apropriação total ou maior que 50% do rendimento de prestação de serviço sexual por terceiro. O projeto, apresentado em julho de 2012, ainda tramita pelas Comissões da Câmara dos Deputados. Diante do horizonte moral brasileiro, resta aguardar quais os discursos e argumentos que irão compor a discussão legal.