CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Puta Dei levanta debate na UERJ

A comemoração do Puta Dei, Dia Internacional das Prostitutas, no dia 2 de junho deste ano, trouxe ao espaço acadêmico um importante debate sobre a prostituição e as lutas de ativistas para enfrentar o estigma em torno da sua profissão. O evento marcou também os 30 anos do Movimento Brasileiro de Prostitutas, nascido em 1987Fala, mulher da vida foi o título daquele primeiro encontro nacional, ocorrido no Rio de Janeiro. 

 

Realizado pelo Instituto de Medicina Social da UERJ com o apoio do CLAM e do BIOMEDSCI (UERJ), do Observatório da Prostituição (IPPUR-UFRJ), Davida e da CasaNem, o evento provocou um debate, em particular, sobre como o tema da prostituição atravessa os campos de estudos e ativismo sobre migração e mobilidades. Foi idealizado e organizado como parte do curso "Migração, Gênero e Saúde", do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (IMS/UERJ). O curso explora foca em processos de mobilidade e deslocamento de pessoas em análises de cunho sócio-antropológico. Visa compreender, como gênero, sexualidade, raça e etnia, bem como a política e a economia da mobilidade humana, interseccionam a saúde das populações migrantes. 

 

Laura Murray (IMS e Observatório da Prostituição), que moderou o evento, explicou que a data escolhida remete ao 2 de junho de 1975, dia em que 150 prostitutas ocuparam a Igreja Saint-Nizier de Lyon, França, em protesto contra a discriminação e violência que sofriam por parte do Estado. Em reconhecimento de sua luta e coragem, data foi declarada Dia Internacional da Prostituta pelo movimento organizado de trabalhadoras/es sexuais e vem sendo celebrado anualmente desde 1976.  

 

Em 2012, no Brasil é cunhado o nome Puta Dei, dado em Belém pelo Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado de Pará (GEMPAC) e atualmente marca uma celebração que já se espalhou para várias cidades do Brasil, sempre no intuito de ganhar aliados e espaços na construção de novos significados da prostituição. 

 

A programação incluiu a exibição de vídeos de movimentos de prostitutas de vários países, disponíveis online. O curta Last Rescue in Siam (último resgate do Siam), por exemplo, realizado por trabalhadoras sexuais tailandesas, é uma sátira às operações de “resgate” de prostitutas feitas no país como parte das estratégias antitráfico. Clique nos títulos abaixo para acessar este e outros exemplos de uma rica produção internacional sobre a temática. 

 

> Last Rescue in SiamEmpower, 2010 (10 minutos, filme mudo em preto e branco, com legendas em inglês e tailandês) 

Trabajo Sexual en Primera Persona. Maria Riot, 2016 (44:58 minutos, cor, em espanhol)  

Trabajo Sexual en Primeira Persona. Carina de Casasco, 2016 (46:48 minutos, cor, em espanhol) 

Por que Gabriela Gosta da Palavra Puta, 2013 (3:52 minutos, cor, em português com legendas em inglês)  

> Gender Talents. Selma Ruiz, N/D (3:48 minutos, cor, em espanhol com legendas em inglês).   

 

A mesa redonda sobre a temática contou com a participação de Laura Lowenkon (IMS), Bete Guedes (Projeto "O que você não vê dDavida e o Observatório da Prostituição), José Miguel Olívar (Pagu/Unicamp) e Indianara Siqueiraidealizadora do projeto PreparaNem e da CasaNemativista dos grupos Davida e Transrevolução e Vereadora Municipal (Suplente) do Rio de Janeiro. 

 

A antropóloga Laura Lowenkronem fala intitulada "Corpos em trânsito e o trânsito dos corpos: a desconstrução do tráfico de pessoas em investigações da Polícia Federal", mostrou como o policiamento das fronteiras exercido pela Polícia Federal representa um esforço moral e administrativo contínuo, cotidiano e inacabado de ordenação de zonas de indefinição: 

 

Apesar do combate ao tráfico de pessoas ser politicamente ancorado na razão humanitária, diversos autores têm anunciado que um dos principais efeitos da luta antitráfico em diversas partes do mundo tem sido a intensificação do policiamento das fronteiras e a criminalização de trabalhadores e trabalhadoras migrantes marcados por gênero, sexualidade, idade, classe, raça, etnia e nacionalidade, afirmou a pesquisadora. 

 

 

Para o antropólogo José Miguel Nieto, a mobilidade de pessoas e a prostituição se relacionam de maneiras muito diversas: 

 

A prostituição é em si mesma um motor de movimentos. E de múltiplos movimentos. De movimentos que começam com movimentos corporais (…) até movimentos como o da Daspu [grife de moda lançada pelo Grupo Davida em 2005, cujas camisetas adornaram o evento]. A prostituição é um movimento também enquanto movimento social, enquanto movimento político. (…) Circulam prostitutas pelo mundo não só para fazer programa. Também para fazer programa, mas para se articular politicamente, para gerir mudanças de lei, para gerir projetos de intervenção internacional diversos, para gerir transformações nas políticas, comentou o pesquisador. 

 

Bete Guedes, participante do projeto "O que não se vê", afirmou ter exercido a prostituição em distintos momentos de sua vida e ilustrou os efeitos das políticas anti-tráfico a partir da sua experiência pessoal quando esteve em Angola, logo após um grande escândalo sobre um suposto caso de tráfico de pessoas. Apesar de ter ido com o objetivo de trabalhar, aquele clima fez que ela não se sentisse segura para isso: 

 

-Chegando lá eu não consegui, fiquei com medo. Os boatos eram que se eu fosse àquela casa, eu poderia sair do país sem poder voltar por algum tempo e me mandarem como se eu fosse uma bandida. E eu falei não. 

Bete ainda contribuiu ao debate ao falar sobre os estigmas que ela – enquanto mulher, negra e prostituta – sofre cotidianamente: 

 

Eu não sou só prostituta. Eu sou faxineira, sou garçonete, sou artesã. Faço muitas coisas. As pessoas não podem me olhar pela cor da minha pele, pela profissão que eu faço. Elas têm que me olhar como ser humano, como todos nós. (…) Se eu me prostituo, qual é o problema? O corpo é meu, eu sou dona disso aqui. Eu posso fazer o que eu quiser e ninguém vai me dizer o contrário. 

 

A ativista trans Indianara Siqueira trouxe outras chaves à discussão levantada por Bete Guedes: 

 

É praticamente natural (para a sociedade) uma mulher negra na prostituição, mas não é natural uma mulher branca dentro de um padrão do que se espera de uma mãe de família na prostituição. O corpo das mulheres negras já é objetificado, já é sexualizado. Então também é – naturalmente – visto como natural as travestis e as transexuais na prostituição. Todas as discriminações partem de uma ótica machista e do patriarcado. 

 

Presa na França sob a acusação de cafetinagem, por ter emprestado dinheiro para outras mulheres trans e travestis que buscavam trabalhar na Europa, ela explicou que este era um caminho muito procurado para quem queria fugir da violência policial: 

 

Nessa época, no Brasil, a gente apanhava muito nas ruas da Polícia que devia nos proteger. E eles cobravam das prostitutas – travestis principalmente – uma taxa de 5 mil reais para não serem presas e detidas como traficantes (…) Era muito complicado sobreviver nas ruas do Brasil e na prostituição porque a gente estava muito exposta à violência da Polícia. 

Quando as pessoas falam que a prostituição é violenta (…), quem nos violenta na prostituição é justamente o braço armado do Estado que deveria nos proteger. 

 

Como conclusão do evento, Tertuliana Lustosa, artista, performer, travesti, prostituta e estudante da UERJ, explorou outras dimensões da materialidade da experiência da mobilidade geográfica e do corpo como construção contínua. Começou apresentando imagens de nudez e prostituição em obras de Monetconsagrado artista francês do Século XIX, cujas obras, para Tertuliana, sugerem: 

 

 Ucerto discurso na arte [do] empoderamento da mulher através da prostituição [que refere a] um estereótipo cis branco. O que eu queria trazer mesmo é a gente pensar esses outros corpos, essas outras formas de existênciafora desse padrão hegemônico cis gênero branco que habita nosso imagético, como a gente julga que a pessoa é como ela se apresenta, pontuou a artista. 

 

A continuação, Tertuliana realizou uma performance em que ela, completamente nua, monta uma instalação artística. Na instalação, ela discute – através da exibição relatada de peças documentais sua experiência de trânsito por diferentes instâncias de registro civil (desde seu nascimento no sertão nordestino até hoje no Rio de Janeiro) e pelo ambulatório onde busca assistência para sua transição, no Hospital Universitário Pedro Ernesto, da UERJ. A instalação traz documentos que, a despeito da sua identidade de gênero e de políticas públicas que a afirmampersistem na referência a Tertuliana pelo seu nome de registro.   

 

Nós não temos legislação que seja coerente com nossos corpos no Brasil. Nós não temos tratamento médico da sociedade que condiga com aquilo que nos demandamos. E muitas vezes nós vivemos nesses ambientes, escandalizando. Daí eu estou escandalizando um pouco essas questões e lembrando esse dia, o Puta Dei. Tenho orgulho de ocupar esses espaços e de ter certeza de que eu faço com o meu corpo o que eu bem entender. 

 

 

A instalação de Tertuliana completou-se com recitado dcordel Sertransneja, do Coletivo Xica Manicongo: 

 

Travesti que é balaieira 

Roda no Maracatu 

E resiste no corpo balaio 

Na flor do caju 

Travesti é ser vivente 

Na sobrevida do sertão 

Enfrentar o ódio indolente 

É mais que aperreio, bala, facão 

Vão te chamar trava da peste 

Que que há se eu vim do nordeste? 

Eu vim de lá, eu vim de lá 

Roda Balaieira, vai rodando sem parar 

Vai rodando no balaio,na flor do Maracujá 

Axé maracatu elétrico, Axé meu povo nagô 

Axé as trans da Bahia, de Aracatiaçu 

Nessa dança, meu amor 

 

Confira na íntegra o debate “Mobilidades e Prostituição: entre mitos e direitos 

 

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