Se a redução da fecundidade afastou as projeções pessimistas de uma possível explosão demográfica no Brasil, ela não se fez acompanhar de indicadores que traduzam o efetivo respeito aos direitos reprodutivos. Práticas danosas à saúde feminina continuam rotineiras no país, observam as pesquisadoras Maria Luiza Heilborn (IMS/UERJ), Estela Maria Aquino (ISC/UFBA), Regina Maria Barbosa (NEPO/UNICAMP), Elza Berquó (CEBRAP) e Fabíola Rohden (IMS/UERJ), e o pesquisador Francisco Inácio Bastos (FIOCRUZ) na apresentação do livro “Sexualidade, reprodução e saúde” (Editora FGV).
Os estudos do gênero e saúde ganham cada vez mais força no Brasil. Os autores reunidos nesta coletânea analisam as conexões entre sexualidade e reprodução sob perspectiva interdisciplinar, no âmbito de diferentes relações sociais. Os textos apresentados são frutos de investigações e debates promovidos pelo Programa Interinstitucional de Treinamento em Metodologia de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva, e são representativos de todas as regiões do Brasil, além da Argentina e Colômbia.
Leia abaixo a apresentação do livro:
As múltiplas facetas da pesquisa em sexualidade, gênero, reprodução e saúde
Maria Luiza Heilborn, Estela Maria Aquino, Regina Maria Barbosa, Francisco Inácio Bastos, Elza Berquó, Fabíola Rohden
O campo de estudos de gênero, sexualidade e saúde reprodutiva conheceu, nas duas últimas décadas, um expressivo incremento da produção científica. As análises ganharam em profundidade e diversificação de abordagens. Certamente esse cenário deve-se, de um lado, à consolidação crescente dos programas de pós-graduação no Brasil e, de outro, às transformações significativas nas condições de saúde na sociedade brasileira. Destaca-se, no que tange a esta última questão, a progressiva, sistemática e, inclusive, homogênea queda da fecundidade das mulheres brasileiras, registrada recentemente pelos resultados da PNDS 2006 (Wong, 2008).
Se a redução da fecundidade afastou as projeções pessimistas do que era cunhado como possível explosão demográfica no país, ela não se fez acompanhar de indicadores que traduzam o efetivo respeito aos direitos reprodutivos. Apesar do relativo freio da intensidade da esterilização da população feminina em fase reprodutiva, observa-se que práticas danosas à saúde feminina continuam rotineiras no país, tais como a episiotomia e a indicação “liberalizada” da cesariana. A episiotomia foi realizada em 70% dos partos normais declarados, de acordo com dados da PNDS (Lago e Lima, 2008:154-155). Essa prática, tida como facilitadora da intervenção médica de auxílio ao parto normal, é reveladora da maneira como a reprodução é priorizada em relação ao exercício da sexualidade pós-parição. Esse é um dos exemplos que demonstram por que o campo de estudos das inter-relações entre gênero, sexualidade e reprodução é de importância capital para o exame da saúde no país (Diniz e Chacham, 2004)
O segundo fenômeno de grande magnitude na área da saúde relacionado à sexualidade foi a epidemia de HIV/aids, que contou, no país, com uma bem-sucedida aliança entre os esforços de políticas públicas e a ação da sociedade civil, através das organizações não-governamentais, para driblar a propagação de uma epidemia que se imaginava de consequências catastróficas. Contudo, constata-se, no início do século XXI, que a aids segue em expansão no planeta, com marcadas assimetrias regionais e populacionais (Bastos, 2006:83). As profundas fissuras da sociedade brasileira têm dado lugar a epidemias de cunho local ou, até, regional, ainda que, no conjunto, verifique-se, grosso modo, uma estabilização do quadro. O HIV, como qualquer outro agente infeccioso, não tem qualquer opção preferencial por pobres, mas se beneficia das linhas de fragilidade das redes sociais nas quais é introduzido (Bastos, 2006:87).
A crescente legitimação da articulação entre essas temáticas se fez também pela criação de diversas iniciativas de formação e treinamento dos quadros de pesquisa. De um lado, já registramos a formação stricto sensu da pós-graduação, com diversos núcleos geradores de pesquisa, responsáveis pela produção de dissertações de mestrado e teses de doutoramento sobre a temática e, de outro lado, cursos de formação mais curtos, com a finalidade de promover a capacitação de diferentes atores no campo da saúde (Aquino et al., 2002:18). Entre estes, destaca-se o Programa Interinstitucional de Treinamento em Metodologia de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva. Criado em 1996, pela parceria entre a Fundação Ford e o Instituto de Medicina Social da Uerj, o Nepo/Unicamp, o Instituto de Saúde Coletiva/UFBA, a Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz, o Instituto da Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, o programa já realizou 12 versões de seu curso, com o total de 244 alunos, dos quais 97 foram contemplados com bolsa de pesquisa.
Os cursos são disponibilizados a profissionais que investigam e/ou atuam em serviços e ONGs nas áreas de sexualidade, saúde reprodutiva e gênero. A clientela possui uma formação diversificada: psicologia, comunicação, direito, ciências sociais, medicina, enfermagem, serviço social, nutrição, entre outras. De abrangência nacional, os cursos são realizados em três centros: no Instituto de Saúde Coletiva/UFBA, em Salvador, que recebe pesquisadores das regiões Nordeste e Norte; no Instituto de Medicina Social/Uerj (em conjunto com a Fiocruz), no Rio de Janeiro, e no Nepo/Unicamp (em conjunto com o Instituto de Saúde), em Campinas, ambos responsáveis pelas regiões Sudeste e Centro-Oeste e Sul do país. Cabe destacar que, nas últimas duas edições do programa, contamos com a participação de seis alunos oriundos de diferentes países da América Latina (um da Argentina, dois do Peru, dois da Colômbia e um do México), além de um de Cabo Verde e um de Moçambique.
Essa iniciativa objetivou fortalecer as estruturas institucionais já existentes, além de estimular o diálogo entre as experiências dos centros de ensino e pesquisa, sobretudo no que concerne à descentralização geográfica dos quadros. Dada esta proposta de treinamento dirigida à capacitação metodológica de jovens investigadores, a realização de cursos regionalizados foi a forma adotada para proporcionar a expansão da problemática em questão. Os cursos foram realizados durante três semanas de formação intensiva, seguindo-se a seleção de um certo número de projetos para o desenvolvimento de pesquisa, no período de um ano. A elaboração e o desenrolar do projeto são acompanhados por dois workshops em duas etapas, justamente por considerarmos fundamental promover a associação entre aprendizado teórico e empiria, mediante supervisão e interlocução com pesquisadores mais experientes.
O formato regionalizado constitui uma escolha que, nestes 12 anos de existência, demonstrou ser o modo mais adequado de resposta às variadas demandas, com suas especificidades. Já a perspectiva interdisciplinar, capaz de conjugar tanto a metodologia qualitativa como a metodologia quantitativa de investigação, baseia-se no pressuposto de que não se trata de estratégias opostas, mas de distintos enfoques, passíveis de articulação no processo de construção do conhecimento científico. Dessa maneira, ao oferecer ensino e treinamento, a partir de fundamentação conceitual e metodológica proveniente de diversas disciplinas, o programa imprime a marca da interlocução interdisciplinar.
Este livro reúne textos de pesquisadores e bolsistas que participaram das oitava, nona, décima e décima primeira edições do Programa Interinstitucional de Treinamento em Metodologia de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva, destinado à formação de novos investigadores nesse campo. Esta obra é precedida por duas outras publicações (Barbosa et al., 2002; Aquino et al., 2003), que reuniram trabalhos de edições prévias do programa.
Os textos aqui apresentados espelham a proposta interdisciplinar de exame sobre as conexões entre sexualidade, reprodução e saúde, todas elas permeadas pela forma como as relações societárias são estruturadas pelo gênero. O leitor poderá constatar a riqueza e o rendimento dessas perspectivas, que reúnem análises sobre gênero, geração, raça/etnia, classe social, nível de escolaridade, diversas categorias profissionais e diferentes modos de intervenção ou de atuação social. As pesquisas abrangem distintos aspectos concernentes à sexualidade, reprodução e saúde, em diferentes estratos e espaços sociais, bem como grupos etários variados. Investigações foram empreendidas em todas as regiões do Brasil – Norte, Centro-Oeste, Nordeste, Sudeste e Sul –, além da Argentina e Colômbia. Agrupamos os textos em quatro módulos, ainda que sejam possíveis outras disposições, em função do rico entrelaçamento entre as temáticas abordadas, como: investigação sobre gênero, sexualidade e saúde; reprodução, contracepção e conjugalidade; saúde, sexualidade e mediações institucionais; e, por fim, gênero, ciclo de vida e sexualidade.
O primeiro módulo apresenta reflexões acerca de determinados aspectos implicados nos estudos de gênero, sexualidade e saúde. A partir da experiência na equipe de coordenação do programa no Instituto de Medicina Social/Uerj e da participação em congressos de saúde coletiva e de ciências sociais – em grupos dedicados a estas áreas de investigação –, Fabíola Rohden aborda a aproximação entre os campos de estudos de gênero, sexualidade e saúde, questionando os modos pelos quais estas três áreas têm sido vinculadas na produção de pesquisas interdisciplinares. Em “Gênero, sexualidade e saúde em perspectiva”, a autora parte da seguinte e instigadora pergunta: trata-se apenas de justaposição entre os temas ou propriamente de uma articulação? No segundo texto, “Desafios e vicissitudes da pesquisa social em sexualidade”, Maria Luiza Heilborn, Fabíola Cordeiro e Rachel Aisengart Menezes analisam as características da investigação em torno desta esfera da vida, evidenciando as dificuldades e vicissitudes enfrentadas por pesquisadores. As autoras apontam a necessidade de uma perspectiva de desentranhamento desse objeto. Não se trata apenas de adotar uma postura reflexiva em face do estatuto autonomizado da sexualidade na sociedade ocidental contemporânea, como também de evitar a produção de novos significados para os nativos, no contexto da interação pesquisador-entrevistado. No terceiro texto deste módulo, “Gênero e ciência no Brasil: contribuições para pensar a ação política na busca de equidade”, Estela Maria Aquino apresenta a trajetória das relações entre gênero e ciência, sublinhando a condição da mulher como investigadora, no campo da pesquisa em saúde no Brasil. A perspectiva da equidade de gênero norteia a identificação das prioridades de ação e a apresentação de propostas estratégicas para ampliar a inclusão mais efetiva das mulheres na academia.
O segundo módulo – Reprodução, contracepção e conjugalidade – reúne distintas investigações sobre os referidos temas, apresentando as múltiplas articulações entre eles, em diferentes contextos. “Sorodiscordância para o HIV e decisão de ter filhos: entre risco e estigma social”, de Neide Kurokawa Silva e Márcia Thereza Couto, aborda o desejo de ter filhos em uniões conjugais sorodiscordantes para o HIV, a partir de pesquisa empreendida com casais, em serviços de saúde especializados em DST/aids do município de São Paulo. A condição sorológica e a decisão reprodutiva se inserem em um campo de negociações, no qual determinados valores racionais e morais, que podem se opor, tensionam a escolha dos casais, entre o risco de transmissão ao parceiro soronegativo ou ao bebê, e o estigma social de ser portador do vírus ou, ainda, do vínculo com sujeito soropositivo.
O texto seguinte – “Da dádiva divina ao direito de decidir: a emergência de uma norma contraceptiva na Colômbia” – apresenta as mudanças de comportamento no que concerne à sexualidade, reprodução e contracepção, em três gerações de famílias colombianas. A partir de entrevistas com duas famílias, Manuel Rodriguez, Claudia Rivera Amarillo, Andrès Góngora e Marco Julián Martinez evidenciam a emergência de uma norma contraceptiva em seu país: o adiamento da reprodução e o uso regular da contracepção. Como o próprio título do ensaio explicita, há expressivas diferenças entre as gerações, analisadas a partir das reações dos sujeitos investigados, no que tange aos valores que regem a tomada de decisões contraceptivas e reprodutivas.
A seguir, três textos se dedicam à reflexão acerca da sexualidade, decisões contraceptivas e gravidez em jovens de camadas populares, de três cidades: Salvador, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Em “Jovens baianos: conjugalidades, separações e relações familiares”, Acácia Batista e Clarice Peixoto abordam a conjugalidade na juventude a partir da parentalidade, em adolescentes residentes em Salvador. As autoras examinam os relacionamentos entre os jovens pais/mães e suas famílias de origem, assim como as mudanças que ocorreram após o evento da gravidez e nascimento do/a filho/a. No contexto investigado, as relações familiares são marcadas pela busca juvenil em asseverar sua autonomia, e a nova condição de parentalidade tende a potencializar esse processo. Em “Paternidade na trajetória juvenil: uma contribuição ao debate sobre ‘gravidez na adolescência’”, Cristiane Cabral se dedica ao mesmo tema, da perspectiva da experiência de rapazes de uma comunidade favelada da cidade do Rio de Janeiro. A autora discute em que medida a paternidade juvenil se constitui como uma das possíveis formas de transição para a vida adulta, na trajetória dos investigados. Explicita ainda as lógicas subjacentes à gestão da vida contraceptiva e seus desdobramentos, em caso de gravidez das parceiras, que funciona como poderosa confirmação da masculinidade dos sujeitos. Paula Sandrine Machado, autora de “Muitos pesos e muitas medidas: uma análise sobre masculinidade(s), decisões sexuais e reprodutivas”, apresenta investigação realizada com homens moradores de uma favela da periferia da cidade de Porto Alegre, sobre a escolha de métodos de prevenção, seja para evitar gravidez e/ou DSTs. Para tal, Machado analisa os valores acionados no processo de tomada de decisões, e conclui que eles estão intimamente articulados ao percurso em direção a se tornar homem, à família como valor, às avaliações classificatórias e hierarquizantes atribuídas às parceiras e às representações corporais construídas pelos sujeitos investigados.
O terceiro módulo – Saúde, sexualidade e mediações institucionais – é composto por textos que se debruçam sobre as estratégias de agências, instituições e seus profissionais na modelação de concepções sobre saúde e sexualidade, gênero, família e pessoa. Em “Tecnologia reprodutiva: razão pública e normatização”, Fabiane Simioni analisa os projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional brasileiro, concernentes ao uso das novas tecnologias reprodutivas. Os modelos de família apresentados pela legislação constituem objeto de exame, a partir do qual a autora aponta problemas morais e jurídicos na normatização das tecnologias de reprodução medicamente assistidas. Enquanto não há consenso em torno da normatização do acesso às tecnologias de reprodução humana, o mercado e as diferentes formas pelas quais os indivíduos buscam essas tecnologias permanecem mais ou menos “livres”. Dessa forma, quando o Estado não assume sua função, como última instância reguladora das relações sociais, verifica-se a chamada “mão invisível” gerenciando o crescente mercado da reprodução humana medicamente assistida no contexto brasileiro. Por fim, Simioni indaga se haveria uma resposta única para justificar um determinado modelo legislativo para tratar das tecnologias reprodutivas no Brasil. Como resposta, indica o atendimento à premissa da não violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, além dos demais princípios norteadores do tema, como da proteção à família, do direito ao acesso universal à saúde e a promoção do bem, como objetivo fundamental de um estado democrático de direito.
O texto seguinte, “Estratégias de comunicação preventiva na MTV Brasil: reconstruindo significados para a aids”, de João Francisco de Lemos, é dedicado ao exame de dois vídeos de prevenção ao HIV/aids, voltados para público jovem, produzidos pela emissora MTV Brasil. O autor evidencia as mudanças nas representações da aids na mídia, de acordo com a trajetória da epidemia no país. Para Lemos, esses vídeos incorporam algumas pautas contemporâneas do movimento social da aids, como a transformação dos estigmas veiculados pelos meios de comunicação. As vinhetas examinadas afastam os aspectos trágicos ou fatalistas, que antes já acompanharam as narrativas dessa doença. Desse modo, colaboram para a construção da imagem positiva do sujeito portador de HIV. Além disso, para o autor, esses vídeos formulam scripts para a juventude em contexto de socialização para o risco, condição de uma norma sexual preventiva em curso. A produção bibliográfica de um controverso médico e pesquisador baiano, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, defensor da supressão medicamentosa da menstruação em mulheres férteis, é o objeto da análise de Daniela Manica, em “Imperativos da natureza: sexualidade, gênero e hormônios na produção de Elsimar Coutinho”. Partindo do pressuposto de que o discurso desse profissional permite apreender os valores atuantes tanto na produção científica quanto na fabricação de hormônios pela indústria farmacêutica, a autora discute as concepções em jogo de corpo, natureza, sexualidade e gênero, contribuindo ao debate sobre natureza/cultura.
O aparato médico também é abordado por Rozeli Maria Porto em “Profissionais de saúde e aborto seletivo em um hospital público no Sul do Brasil”. Ela analisa a assistência a mulheres com demanda de abortamento legal, em serviço de referência nesta modalidade de atendimento, em Santa Catarina. Investigação etnográfica e realização de entrevistas com profissionais de saúde da referida instituição se combinam para elucidar as representações em curso sobre o aborto legal, em caso de gestação de feto com anencefalia.
A atenção e o cuidado infantil prestados por profissionais de saúde de um bairro popular de Salvador são enfocados por Vânia Bustamante. O argumento central do texto consiste em que as precárias condições da assistência residem em razões estruturais – as desigualdades de renda, gênero e raça – e relacionais, que englobam as famílias, os profissionais não residentes no bairro e os cuidadores oriundos da região. “O cuidado infantil em um bairro popular de Salvador: perspectivas de profissionais” demonstra a desvalorização do cuidado entre os agentes dedicados a essa atividade, inclusive entre aqueles inseridos no Programa de Saúde da Família. Evidencia ainda a existência, entre os profissionais, de um modelo de família idealizado, que colide com a realidade na qual eles atuam.
A instância pedagógica constitui o objeto de exame do texto “Corpo e gênero na educação sexual: análise de uma escola carioca”, de Helena Altmann. A partir de pesquisa realizada em um colégio municipal de ensino fundamental na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, a autora reflete sobre as diferenças entre as representações de corpo, sexualidade e gênero, em aulas de ciências, além do tratamento desses temas em oficinas de educação sexual, presididas na mesma escola.
Rachel de Las Casas, autora de “‘Mandar a coisa ruim embora’: gênero e saúde em uma epidemia de diarréia infantil na etnia Maxakali”, descreve o episódio, ocorrido em 2004. A análise elucida as formas de enfrentamento da situação, tanto pelos indígenas quanto pelos profissionais de saúde, que acionam lógicas de intervenção diferenciadas para sanar o problema. A autora assinala a interdependência entre fatores culturais, de saúde e de atribuições de gênero para a resolução do evento. “O agente comunitário de saúde e as relações de gênero nos seringais do município de Xapuri, Acre”, de Mauro César Rocha e Silva e Valéria Rodrigues da Silva, também apresenta o modo de inserção e gestão de profissionais que atuam na área da saúde. Os autores enfatizam a importância das relações de gênero na atenção à saúde, sobretudo relativa às mulheres que trabalham nessa região. Para eles, o papel do agente comunitário de saúde foi fundamental para atender as demandas do cuidado em saúde, principalmente por promover prevenção e educação em torno de saúde e doença nos seringais, proporcionando, também, mudança em tabus culturais.
Por fim, o quarto e último módulo – Gênero, ciclo de vida e sexualidade – é composto por cinco textos. A partir da tendência de pauperização e heterossexualização da epidemia do HIV/aids, Júnia Quiroga analisa a vulnerabilidade para o risco ao HIV em homens e mulheres que mantêm relacionamentos inter-raciais, em uma comunidade favelada de Belo Horizonte, Minas Gerais. Seu ensaio, “Aproximando ou separando a cor: a combinação racial da união determina a prevenção?”, foi elaborado a partir de entrevistas com indivíduos de ambos os sexos que mantinham, à ocasião, relacionamento estável de coabitação, situação na qual a negociação em torno da prevenção de DST/aids apresenta dificuldades. Para a autora, a composição racial da união não se constitui como componente essencial para compreensão do processo decisório em torno da prevenção, enquanto o eixo de gênero revelou ser mais promissor. A autora conclui que, embora a maioria dos entrevistados esteja razoavelmente informada sobre transmissão e prevenção do HIV, a coexistência de informações certas e erradas indica a necessidade de investimento em divulgação de informações sobre HIV/aids, sobretudo entre as mulheres. Se, no universo pesquisado em Porto Alegre por Paula Sandrine Machado e em Belo Horizonte por Júnia Quiroga, os homens seriam os responsáveis pelo uso do preservativo, uma vez que mulher “direita” não deve portar camisinha, a análise de Leandro Oliveira evidencia um panorama diverso, a partir de seu estudo etnográfico em uma boate no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro, frequentada por travestis, cross-dressers e seus parceiros. Em “‘Homem não paga’: diversidade sexual, interação erótica e proteção entre frequentadores de uma boate no Rio de Janeiro”, são apresentados os distintos posicionamentos a partir da qualificação segundo a performance de gênero: o ingresso no estabelecimento é cobrado somente dos clientes avaliados como “femininos”. O texto explicita e analisa os nexos estabelecidos entre performance de gênero e responsabilidade pelo porte e utilização do preservativo, condição assumida pelos cross-dressers e travestis.
O texto seguinte, “‘Cidade pequena, inferno grande’: fofoca e controle social da sexualidade entre adolescentes da cidade de Trelew (Argentina)”, traz a pesquisa com jovens entre 15 e 19 anos, de escolas públicas da referida cidade. Daniel Jones evidencia a existência de papéis de gênero que são poderosos operadores de controle social. É esperado que a mulher seja recatada e resista aos avanços do parceiro, e este deve demonstrar sua masculinidade e virilidade por meio de táticas de conquista. Configura-se um modelo generificado de gestão da sexualidade, similar ao encontrado entre jovens brasileiros. A avaliação moral também é abordada por Moisés Lopes em “‘Casar e dar-se ao respeito’: conjugalidade entre homossexuais masculinos em Cuiabá”. Entrevistas com 10 homens envolvidos em uniões homossexuais explicitam suas concepções sobre conjugalidade, parceria civil e, em especial, a construção de uma imagem de respeitabilidade pública do casal, condição necessária para sobreviver ao controle social, em uma cidade na qual os valores acerca da orientação sexual podem resultar em estigmatização.
Finalmente, “A sina de ser forte: corpo, sexualidade e saúde entre lutadores de jiu-jítsu no Rio de Janeiro”, de Fátima Cecchetto, analisa as configurações da masculinidade entre os lutadores e os usos do corpo em suas relações afetivo-sexuais. Aborda as representações sobre corpo, saúde e sexualidade entre os sujeitos investigados, sobretudo a partir de notícias na mídia, que associam a prática do jiu-jítsu a comportamento violento, agressões a mulheres e homossexuais. Nas academias de luta, a construção da masculinidade se dá mediante um trabalho corporal intenso, a partir de uma instrumentalização por meio de um conjunto de saberes estratégicos, tidos como significativos de determinado estilo de vida, inspirado na filosofia de uma arte marcial, orientada para o controle da violência. Fora da academia, há um tenso exercício do autocontrole da violência física, condição que demanda autodomínio das emoções dos sujeitos investigados. Para a autora, os princípios reguladores dos comportamentos masculinos no contexto da academia, mais que contraditórios, são interdependentes.
A multiplicidade de análises possíveis em torno do imbricamento entre os distintos temas atinentes ao corpo, à saúde, sexualidade e reprodução é explicitada pela apresentação dos textos. O agrupamento dos ensaios possibilita evidenciar diferentes eixos de articulação, entre tantas variáveis sociais que se demonstram relevantes no estudo da saúde.
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