CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Romper o silêncio

Por Luisa Bertrami D’Angelo*

Foi divulgado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN/MJ) o InfoPen, levantamento que traz as mais recentes informações sobre o sistema prisional, referentes à 2016. Segundo o relatório, o Brasil tem, hoje, mais de 726 mil presos e presas, o que equivale ao dobro do número de vagas do sistema. Nos últimos 26 anos, o a população prisional foi multiplicada oito vezes, fazendo do Brasil o terceiro país que mais encarcera no mundo, atrás apenas de Estados Unidos e China. A superlotação do sistema está diretamente ligada a um processo de superencarceramento que, de maneira seletiva, atua sobre determinados grupos sociais. Fica evidente nos dados levantados pelo DEPEN e em diversas pesquisas realizadas no sistema prisional que nos últimos dois anos e meio as prisões brasileiras ficaram 20% mais superlotadas e a população prisional é, em sua maioria, formada por homens (95% do total da população prisional), negros (64%) e jovens (55% tem entre 18 e 29 anos), com baixa escolaridade (75% não chegam a completar o ensino médio).
 
Além da seletividade penal, um dos principais fatores do aumento do encarceramento é a política de guerra às drogas adotada pelo Brasil – que afeta particularmente as mulheres presas. Enquanto o tráfico de drogas representa 26% dos encarceramentos no caso dos homens privados de liberdade, nas prisões femininas este percentual sobe para 76%. Neste contexto, em que jovens, negros(as), pobres e moradores(as) das periferias são os principais alvos do sistema, é relevante apontar as precárias condições físicas e estruturais das unidades prisionais. Também o alto índice de presos(as) provisórios(as): 34%, segundo relatório do Conselho Nacional de Justiça – número que se agrava no caso do Rio de Janeiro, subindo a mais de 45%). Tal panorama entranha inúmeras violações de direitos humanos, conforme apontam, por exemplo, relatórios elaborados pelos Mecanismos de Combate e Prevenção à Tortura, a nível nacional e estadual. Esses relatórios encontram-se disponíveis online: MECPT/RJ, 2016; MECPT, 2017.
 
A mediação constante das tensões entre marcos de saúde e segurança e hierarquização de riscos que caracteriza o cenário da saúde penitenciária não é alheia à situação do HIV entre a população carcerária. Apesar disso, o InfoPen, o mais atual levantamento sobre sistema penitenciário não menciona, por exemplo, a quantidade de pessoas privadas de liberdade com HIV/Aids ou a coinfecção por tuberculose e outras doenças. Sem o acesso a estas informações torna-se mais difícil a construção de estratégias e ações de prevenção/promoção de saúde no âmbito do HIV/Aids.
 
O assunto foi foco de ações de sensibilização, prevenção e promoção de saúde por parte de diversas organizações, no marco do Dezembro Vermelho, iniciado com o Dia Internacional de Luta contra a Aids no dia 1º. Nos últimos anos, este também tem sido um tema explorado em pesquisas acadêmicas, cujos aportes serão abordados em próxima matéria. Ainda que a maioria das pessoas privadas de liberdade seja formada por homens, parte significativa dos estudos sobre HIV/Aids nas prisões focam-se em mulheres privadas de liberdade. Outros estudos discutem a saúde de homens presos e trazem subsídios para pensar os atravessamentos entre as produções e experiências de masculinidades e o cuidado em saúde no âmbito prisional.
 
Fica evidente a relevância da discussão sobre sexualidade nas prisões para a compreensão dos jogos de poder e das forças que atravessam o sistema prisional e, portanto, a saúde da sua população. Os modos como a sexualidade é vivenciada, experimentada, controlada, regulada e produzida nas prisões está intimamente ligado às possibilidades e desdobramentos das ações em saúde. Nesse contexto é constante o acionamento da sexualidade como moeda de troca, considerada frequentemente “benefício indevido à criminosos(as)” no que diz respeito à visita íntima. Mas está também relacionada à construção de relações de afeto, poder e negócios no dia-a-dia prisional. Seja no que diz respeito à distribuição ou não de preservativos, seja na eleição de quem precisa ou merece atendimento em saúde sexual, sempre mediado por negociações e disputas dos presos e presas entre si, com agentes penitenciários e com outros(as) profissionais, as ações de prevenção e o acesso à terapia antirretroviral inserem-se neste complexo contexto.

No marco da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), as ações de prevenção e promoção de saúde no campo das Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), assim como todas as ações de saúde, devem ter como objetivo inserir pessoas privadas de liberdade na integralidade do Sistema Único de Saúde (SUS). Tendo em vista este objetivo, em novembro de 2017, foi realizado um seminário que reuniu representantes do Ministério da Saúde, do Ministério da Justiça, da Pastoral Carcerária, e coordenadores estaduais de DST/Aids e Hepatites virais, além de representantes das Administrações Penitenciárias e Representantes das Áreas de Saúde Prisional das 27 Unidades Federadas para debater HIV/Aids e coinfecção com tuberculose, sífilis e hepatites no sistema prisional. No mesmo mês, no Rio de Janeiro, foi realizado, pelo Fórum Permanente de Saúde no Sistema Penitenciário do estado do Rio de Janeiro, que discutiu como a arquitetura prisional afeta a saúde da população presa. Devido às precárias condições de saneamento e ao modelo arquitetônico no qual foram construídas as unidades, as doenças infectocontagiosas têm maior incidência e sintomas agravados.

Para discutir este panorama, entrevistamos o psicólogo Roberto Pereira, que trabalha com orientação e prevenção de IST. Na década de 1990, Roberto coordenou o Projeto TERESA – Fugindo da Aids, que de 1993 a 1994 teve apoio financeiro da Fundação McArthur, Com atuação em 10 unidades prisionais do estado do Rio de Janeiro (uma feminina e nove masculinas) o projeto incluía visitas semanais de educadores que circulavam pela unidade, conversavam com os(as) presos(as) e realizavam rodas de conversa, palestras e orientações individuais, esclarecendo dúvidas, fornecendo preservativos e intermediando encaminhamentos com as equipes técnicas e de saúde da unidade. Atualmente, Roberto Pereira é representante do Fórum Estadual de ONGs Tuberculose no Estado do Rio de Janeiro, instância de articulação, mobilização e representação política do coletivo de ONGs e de Associações Comunitárias envolvidas no combate à tuberculose no estado. Sua atuação presta relevante atenção ao sistema prisional. Ele é integrante do Centro de Educação Sexual (CEDUS).
 
Há alguns dias foi divulgado o InfoPen de junho de 2016, com as mais recentes informações sobre o sistema prisional brasileiro. Entretanto, o relatório não indica quantas pessoas no sis-tema vivem com HIV/Aids ou quais as doenças que mais afetam a população carcerária. Co-mo a escassez de dados a este respeito dificulta a formulação de políticas públicas para esta população?
 
Na verdade, essa precariedade de dados e informações só reforça a “invisibilidade” dessa popula-ção que, assim como outros segmentos extremamente vulnerabilizados, têm seus direitos básicos de cidadania negados ou relegados ao descaso. Nunca é demais repetir que, ao contrário do que acontecia num passado relativamente recente, com a descoberta de novas medicações e a implan-tação de estratégias inovadoras de tratamento, as pessoas portadoras do vírus HIV, quanto mais precocemente diagnosticadas e inseridas numa rotina de tratamento, tendem a manter sua sorolo-gia sob controle e a saúde praticamente normal. Entretanto, para que isso aconteça, ela depende de um bom acompanhamento terapêutico e exames regulares, o que dentro do Sistema Penal é pra-ticamente inexistente.
 
Quais você identifica como sendo as maiores dificuldades para pensar a saúde penitenciária a partir do que está preconizado no SUS?
 
De imediato, a constatação da superlotação e das condições precárias das unidades já se apresen-ta como uma das grandes dificuldades. Somando-se isso à precariedade de dos quadros técnicos e as dificuldades de transporte e acesso a serviços especializados, quando necessário, tornam esse acesso mais restrito ainda.
 
Em relação ao HIV/Aids, quais você diria que são os maiores desafios no contexto de privação de liberdade?
 
Sem sombra de dúvidas, o lidar com o estigma que a questão do HIV/Aids ainda tem junto à popu-lação como um todo e, em especial, dentro do Sistema, é com certeza um dos maiores desafios. Se, para muitas pessoas fora do Sistema, ter sua condição sorológica de conhecimento público, mesmo nos espaços familiares, ainda é um grande desafio, para a população prisional essa condição tende a gerar uma série especulações e eventuais represálias e constrangimentos, tendendo a levar esses pacientes a uma condição muito delicada.
 
Atualmente é preocupante a coinfecção por tuberculose e HIV no sistema. Quais ações vêm sendo tomadas para garantir a atenção a este cenário?
 
Na verdade, a questão da tuberculose, mesmo quando não estiver diretamente associada ao HIV, já é de extrema vulnerabilidade por inúmeros fatores. Para começar, não podemos esquecer que dife-rentes estudos apontam que a possibilidade de uma pessoa se infectar e adoecer por conta da tu-berculose, dentro do sistema carcerário, são 40 vezes maiores. O risco dessa infecção e das repeti-das reinfecções se darem por “cepas” daquilo que chamamos TBMR (tuberculose multidrogas re-sistente) também tendem a aumentar bastante nesses espaços, o que vem a dificultar ainda mais a manutenção dos tratamentos, o “lidar” com eventuais efeitos colaterais da medicação.
 
Quais as especificidades da incidência de HIV/Aids no sistema prisional?
 
Podemos dizer que o que mais caracteriza essa incidência é exatamente a invisibilidade, seja pela negligência do Sistema em implantar e manter a rotina do “diagnosticar e tratar”, ou pela atitude das pessoas afetadas que, mesmo sabendo da sua condição sorológica, temem pelas reações do coletivo motivadas pelo estigma e preconceito que essa condição ainda gera junto à população e suas possíveis consequências. Outra questão que precisa ser pensada são as condições arquitetôni-cas dos presídios, pois espaços com grande concentração de pessoas, sem condições mínimas de incidência solar e pouco arejamento, tendem a favorecer o aumento significativo de transmissão do bacilo da tuberculose e reinfecções.
 
Pensando no Dezembro Vermelho, como podemos construir campanhas de sensibilização à temática do HIV/Aids no contexto das prisões?
 
Dentro dos presídios, assim como fora, romper o silêncio, desconstruir os estigmas e falar aberta-mente sobre essas doenças, suas formas de prevenção e tratamento, são, com certeza, de funda-mental importância, inclusive envolvendo os profissionais que atuam diretamente com essa popula-ção e desenvolvendo ações de educação em saúde preventiva junto aos familiares.
 
*Mestre e doutoranda em Psicologia Social pela UERJ.