CLAM – Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos

Sexualidade como direito

Nos vinte anos em que atuou em projetos sociais voltados a crianças, adolescentes e jovens, Vanessa Leite, doutoranda em Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ), percebeu que as políticas públicas e projetos voltados para esse segmento pouca ou nenhuma atenção destinavam aos assuntos de sexualidade.

O diagnóstico da pesquisadora, que acompanhou como profissional e ativista o processo de construção do “novo direito da criança e do adolescente”, a partir da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), foi suscitado pela dificuldade identificada no campo de garantia de direitos de crianças e adolescentes, de se efetivar propostas que lidassem com o exercício da sexualidade como um direito, e, assim, tratá-la como tantos outros direitos a que essas ações pretendem garantir aos jovens.

“A sexualidade não era tratada pela maioria das organizações e espaços de formulação de políticas”, reforça Vanessa Leite, acrescentando que, atualmente, o tema ainda mantém-se fora da agenda da maioria dos projetos educacionais e assistenciais voltados para crianças e adolescentes. Segundo a pesquisadora, isso se deve, em parte, à histórica influência do discurso religioso no campo voltado à garantia dos direitos de crianças e adolescentes.

De acordo com ela, a abordagem da sexualidade é marcada por uma perspectiva negativa, vinculada com freqüência, por exemplo, à gravidez, às doenças sexualmente transmissíveis e à violência (sobretudo à exploração sexual e ao abuso no âmbito da família). Ainda que esses sejam problemas fundamentais a serem enfrentados, a pesquisadora avalia que tal visão da sexualidade tem como conseqüência um entendimento equivocado do tema, que se torna atrelado à idéia de risco, e não à noção de direito.

“A reflexão acerca da sexualidade, em suas múltiplas facetas e como uma arena de exercício de direitos, não está presente no conjunto de espaços de intervenção junto aos adolescentes. Da mesma forma, não está presente na esfera pública, onde se encontram os diferentes atores sociais que atuam na formulação, gestão, execução e controle das políticas sociais voltadas a eles”, afirma.

A mudança de rumo no contexto em que a sexualidade dos jovens está inserida exige, segundo Vanessa Leite, a discussão sobre a possibilidade de construção de uma agenda positiva em relação aos direitos sexuais, o que envolve, invariavelmente, a necessidade de compreensão acerca de como os direitos são definidos, legitimados e efetivados na prática.

A idéia de direitos sexuais, surgida na esteira das Conferências Internacionais de Cairo e Pequim, em 1994 e 1995 respectivamente, foi articulada na perspectiva de descolar a sexualidade da reprodução e da patologia. Desta maneira, buscou-se viabilizar um entendimento em que o tema fosse compreendido e redefinido “como algo positivo em si mesmo, um direito humano, não necessariamente ligado à violência, ao casamento e à reprodução”.

Em sua dissertação de mestrado, Vanessa Leite investigou percepções e representações de Conselheiros de Direitos da Criança e do Adolescente, nos âmbitos municipal e estadual do Rio de Janeiro e do Conselho Nacional, sobre a possibilidade de afirmação da sexualidade como um direito dos adolescentes. Os Conselheiros atuam como agentes de formulação e controle das políticas públicas voltadas para o público infanto-juvenil.

Seus interlocutores confirmaram que a grande maioria das instituições não trata formalmente o tema da sexualidade com os adolescentes, negando, de certa maneira, essa dimensão da vida deles. E, quando elas o fazem, é numa perspectiva de “prevenção” da gravidez e das doenças sexualmente transmissíveis. Não há uma intenção de articular a dimensão sexual a outras na vida dos adolescentes. O percurso da pesquisa de Vanessa Leite demonstrou a dificuldade para se articular direitos sexuais e adolescentes, uma vez que o foco recai sobre a afirmação de um direito que ainda não é plenamente considerado direito, para uma categoria social, os adolescentes, que ainda não são considerados efetivamente sujeitos.

A pesquisadora afirma que no cenário político dos direitos humanos, tem-se encontrado grande dificuldade para a afirmação da sexualidade como um campo de exercício de direitos, se não estiver vinculada à reprodução, à violência e às doenças. Quando se pensa sexualidade para o conjunto de sujeitos de direitos, o enfoque do risco ou da vitimização permanece, e não só para os adolescentes.

“Quando postulo uma agenda positiva, já descarto a entrada em discussão a partir destes fatores. E o faço, porque considero que esses caminhos representam a agenda negativa. A meu ver, estas são armadilhas fáceis para se continuar focalizando em uma perspectiva negativa do exercício da sexualidade na adolescência”, propõe.

Além disso, ressalta a pesquisadora, no que se refere às crianças e adolescentes, a partir da promulgação do Estatuto (ECA), pelo menos no plano legal, eles passam a ser considerados sujeitos de direitos próprios. Contudo, nossa sociedade foi historicamente autoritária e tutelar com essas categorias sociais, o que torna necessário a construção de uma nova relação do mundo adulto com a infância e adolescência. “As crianças e adolescentes sempre foram traduzidos por outros, e continuam nessa situação. A outorga de direitos não os faz sujeitos. Enquanto forem ‘objetos’ da política voltada à garantia de seus direitos dificilmente chegarão ao lugar de sujeitos de direitos”. É fundamental refletir sobre o lugar que crianças e adolescentes efetivamente ocupam no próprio campo de garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Diferente de outras categorias sociais, o campo não tem como ator fundamental os próprios sujeitos cujos direitos são defendidos ou promovidos.

Apesar da manifestação e disposição dos jovens para atuarem socialmente, canais de participação novos inexistem. Nessa perspectiva, seria na construção de um lugar ativo, onde realizassem o seu direito de participação, que os adolescentes poderiam se tornar sujeitos e, assim, agentes reguladores de sua própria sexualidade. Ela afirma que o ”empoderamento” destes jovens possibilitaria um comportamento sexual responsável e, na esteira desse processo, permitiria afirmar e reiterar as competências desses sujeitos. “É a afirmação da possibilidade de uma vivência autônoma e prazerosa da sexualidade, que poderá efetivamente proteger os adolescentes da violência e das doenças”, explica.

Ao longo da pesquisa, Vanessa propôs a seus interlocutores a reflexão acerca de “brechas” que poderiam ampliar o escopo das políticas públicas em relação aos adolescentes e à sexualidade. Um dos aspectos levantados pelos Conselheiros é o fato de a sexualidade adolescente estar ligada fundamentalmente às políticas públicas de saúde. Em geral, não articuladas a uma concepção mais integral de saúde. Uma alternativa, aponta a pesquisadora do CLAM, seria ampliar o arco de propostas para além deste campo. “Uma brecha identificada como instrumento para uma afirmação mais positiva da sexualidade adolescente seria a construção de políticas intersetoriais”, sugere, se referindo à área da educação como um campo para onde o tema poderia ser estendido.

A integração do campo de garantia de direitos de crianças e adolescentes com movimentos sociais, como o feminista e o LGBT, também seria uma estratégia para tornar mais visível o tema e, ao mesmo tempo, encontrar novas maneiras para consignar o exercício da sexualidade como um direito. A academia, destaca Vanessa Leite, também se constituiria como uma ferramenta para interferir nos processos e espaços de formulação de políticas públicas.

A concretização desses anseios ainda é um processo, não uma realidade. Existem inúmeros fatores e obstáculos que permeiam as discussões sobre a sexualidade entre os jovens. Dificuldades políticas, sociais e culturais erguem-se diante das tentativas de reconhecimento e afirmação do papel que crianças e adolescentes poderiam alcançar para tornarem-se mais decisivos nas definições de seus direitos. Vanessa Leite ressalta que os adolescentes enfrentam grandes dificuldades para incorporar a sexualidade como um direito. “A postulação enfrenta reações ainda mais violentas e céticas”, lembra.

Em todo caso, ela reafirma sua idéia da sexualidade como um direito fundamental, cujo exercício pode moldar uma nova perspectiva de atuação junto a esse público, focada no prazer, na autonomia, na possibilidade de liberdade, de exercício de outros tantos direitos e, sobretudo, em um novo patamar de cidadania para estas pessoas. “A pesquisa demonstrou que será necessário muito investimento para que esse processo se concretize”. Contudo, a efetivação destas intenções, ainda que transite em vias conflituosas, está em construção, resume.